22 Março 2020
Eucaristia “a portas fechadas” para evitar o contágio: ressonâncias em voz baixa sobre uma escolha de emergência que talvez revele o que realmente pensamos sobre a liturgia e sobre a Igreja celebrante. Terminado o período de isolamento, será preciso voltar a falar sobre isso.
A opinião é da teóloga italiana Simona Segoloni Ruta, leiga da Diocese de Perugia-Città della Pieve, casada e mãe de quatro filhos. É professora de Teologia Sistemática, Teologia Trinitária, Eclesiologia e Mariologia no Instituto Teológico de Assis. Obteve seu doutorado na Faculdade Teológica da Itália Central, com um estudo sobre a recepção do Concílio Vaticano II na teologia italiana. Faz parte da Coordenação das Teólogas Italianas e da Associação Teológica Italiana, sendo membro de seu conselho diretivo.
O artigo foi publicado em Il Regno, 19-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pela primeira vez, a Igreja deve enfrentar uma pandemia gerida com critérios científicos, que aconselham isolar as pessoas. A situação é difícil, às vezes inquietante, e merece todo o nosso respeito e a nossa atenção, começando pela proximidade (como for possível) a quem sofre e está mais sozinho. Não foi nada fácil decidir o que fazer em nível eclesial.
A decisão de suspender todas as atividades e a celebração eucarística, para seguir as indicações dos especialistas que recomendam o isolamento para frear o contágio e salvar a vida de muitos, foi tão fatigante quanto meritória.
Por outro lado, a modalidade como foi realizada merece alguma reflexão, porque nos ajuda a lançar luz sobre o que pensamos sobre a celebração eucarística e a própria Igreja.
Comecemos com a observação de que, na realidade, as celebrações não foram suspensas, mas, no máximo, continuam “a portas fechadas” ou “sem povo”. Essa escolha se baseia na ideia de que a Igreja não pode deixar de celebrar, mas, de fato, declara com extrema facilidade que, para celebrar, não é necessário reunir o povo, se isso não for possível por problemas graves. Os ministros se reúnem entre si (ou com alguns fiéis, para evitar, meritoriamente, celebrar sozinhos), e os institutos religiosos masculinos fecham as portas, realizando uma celebração privada.
Ninguém faria isso se não fosse forçado, concordo, mas o ponto é que pensamos que, embora em uma situação de emergência, isso pode ser feito. E é exatamente isso que deveria nos fazer refletir: talvez, em uma situação de emergência, revelamos aquilo que realmente somos, e é justo tentar ver isso.
Deveríamos saber muito bem que, quando celebramos a eucaristia, acima de tudo, reunimos o povo. Constitui-se uma assembleia, não predeterminada ou selecionada, mas convocada pelo Espírito: esta é a primeira matéria para poder, depois, celebrar. É preciso o povo convocado, antes que o pão e o vinho, e sem aquele não há eucaristia. O ministro que, de vez em quando, preside uma assembleia torna possível, com seu próprio ministério (imposição das mãos e oração), o gesto que a assembleia deve fazer (“tomai e comei”) para ser um só corpo (o corpo de Cristo tornado presente precisamente pelo “ser um” daqueles que comem o único pão). Não é preciso dizer que, se essa é a eucaristia, não é possível que ela seja celebrada se não é possível reunir o povo.
Provavelmente, voltamos a beber do modelo tridentino, segundo o qual o ministro (com ou sem o povo é secundário, assim como o público para os jogos de futebol) oferece o sacrifício a Deus por todos. Não estamos mais diante do ato do povo (este é o significado da palavra “liturgia”), mas de um rito unicamente do presbítero, ao qual outros fiéis presentes ou (sic!) via web podem se associar.
A práxis que escolhemos nesta emergência coloca seriamente em discussão a reforma litúrgica do último Concílio e, com ela, o modelo de Igreja que a sustenta. A mensagem que se passa é que são os ministros que podem pensar em tudo aquilo que é necessário; o povo deve seguir, como os torcedores em relação ao próprio time ou como os “seguidores” em relação aos seus autores de tuítes.
Eu sei que as intenções não são essas, mas as de sustentar a todos com a oração. Por outro lado, a oração pode ser feita independentemente do gesto eucarístico (achamos realmente que a oração de quem fica sem celebração vale menos do que a de quem consegue celebrar?) que, por sua vez, tem uma natureza específica própria, para a qual é essencial reunir o povo para que possa ser tornado um só corpo pelo dom que Cristo faz de si mesmo.
Se declaramos o povo como acessório para a liturgia, voltamos à societas inequalis centrada na prática sacramental: nada de sacerdócio batismal, nada de sinodalidade, nada de centralidade da evangelização.
E, de fato, preocupamo-nos (com as devidas exceções) em transmitir missas em streaming, em não ensinar a rezar em família nem em intensificar a pregação com os canais (aqui sim as tecnologias digitais são uma ajuda) adequados para um processo comunicativo como o que a pregação realiza e que – neste caso, pode-se admitir, porque o ato não é desnaturalizado por causa disto – pode abrir mão da presença física em uma situação de emergência.
As escolhas feitas, em vez disso, que preveem celebrações “sem povo” não apenas contradizem o ato litúrgico eucarístico, mas também dividem a própria comunidade eclesial: temos ministros de um lado, que encontram grupos de religiosos/as ou alguns leigos escolhidos com quem celebram, e todos os outros são mantidos do lado de fora.
De algum modo, repete-se – embora não sendo esta a intenção de ninguém – aquilo que Paulo denunciava na Primeira Carta aos Coríntios (11,17-34) acerca das celebrações que, em vez de realizar o gesto de Cristo (comer juntos o único pão para ser um só corpo), realizavam divisões (um toma a sua própria refeição, e o outro passa fome).
Ocorre o mesmo hoje: alguns celebram, e outros não, e desse modo tornamos a celebração não o lugar do único corpo, mas sim da divisão.
Talvez se todos jejuarem – mas, repito, a situação é totalmente nova e muito difícil, de modo que encontrar o caminho é realmente inacessível – se realizaria de modo mais pleno o gesto de Jesus que deu a si mesmo para que os seus fossem um só corpo e, assim, vivessem no meio dos outros dando a si mesmos como ele, como uma memória perpétua e viva do seu gesto.
Em países de outros continentes, muitas vezes o povo precisa renunciar a celebrar porque não tem quem possa presidir e, portanto, tornar possível o gesto de todos. Nós talvez poderíamos renunciar a celebrar porque não podemos reunir o povo que é o protagonista do gesto eucarístico. Isso não aconteceu porque, talvez, ainda não amadurecemos tal consciência e pensamos que, no fundo, o presbítero é o protagonista da celebração eucarística, portanto, não se pode abrir mão dele (veja-se precisamente os países que forçados a celebrar raramente por falta de ministros), mas do povo, sim. Não são apenas muitos ministros que pensam isso, mas também uma grande parte do povo que prefere saber que alguém “diz missa” à qual é possível se unir “espiritualmente”, em vez de saber que ele é tão indispensável a ponto de não poder haver celebração sem a possibilidade de reunir o próprio povo.
Agora não é o momento, devemos olhar para a emergência em curso e fazer o bem ao nosso alcance. Mas, depois de passada a tempestade, será preciso debater sobre o que vivemos e escolhemos, para fazer gestos coerentes com o significado que eles têm e para crescer na unidade, que sozinha pode tornar o Ressuscitado presente.
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Sem presbítero não, mas sem povo sim? Artigo de Simona Segoloni Ruta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU