20 Março 2020
A disseminação da Covid-19 é uma catástrofe humana. Mas, paradoxalmente, pode ser um tempo de graça para a Igreja, assim como um tempo de tribulação.
A reportagem é de Christopher Lamb, publicada em The Tablet, 18-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O bispo de Roma, acompanhado apenas pelos seus seguranças, caminhou por uma deserta Via del Corso, o principal distrito comercial da Cidade Eterna. Em um domingo normal, a rua é uma via movimentada e cheia de turistas. Eu já tive que enfrentá-la várias vezes e normalmente tento evitá-la em um fim de semana devido ao congestionamento.
A pandemia de coronavírus mudou completamente isso. Enquanto o papa Francisco passava pelo Palácio Doria Pamphilj, lar da maior coleção de arte privada de Roma, um ciclista solitário passou por ele. Meu banco fica na Via del Corso. No dia em que o papa passou por lá, recebi um e-mail deles dizendo que estavam fechando temporariamente. A Cidade Eterna foi esvaziada pela quarentena imposta para impedir a propagação da Covid-19. Os italianos receberam a ordem de ficar em casa, de parar de socializar e de se aventurar apenas para ir à farmácia ou ao supermercado.
O papa deixou o Vaticano para fazer uma peregrinação individual à Igreja de São Marcelo, onde rezou na frente de um crucifixo que supostamente teria acabado com a praga de 1522. No caminho, ele visitou a Basílica de Santa Maria Maior, onde ofereceu orações pelo fim da pandemia na frente do antigo ícone da Virgem Maria, a Salus Populi Romani (“Protetora do Povo Romano”). Foi um sinal muito pessoal de solidariedade com seus vizinhos.
Algumas horas antes, ele estava na sacada do Palácio Apostólico para proferir a sua costumeira bênção dominical no Ângelus. Normalmente ele abençoa uma multidão de milhares de pessoas – desta vez, nenhuma alma estava presente na Praça São Pedro. Ele estava abençoando todos os que estavam confinados em suas casas. Foi um momento doloroso para um papa que constantemente busca formas de se aproximar do povo, que procura abraçar a todos e que exorta os padres e os bispos a terem o “cheiro das ovelhas”.
As medidas que estão sendo tomadas na Itália para impedir a propagação da Covid-19, que incluem isolamento forçado e distanciamento social, fizeram com que a celebração dos sacramentos fosse severamente reduzida. Assim como o restante do país, a Igreja está quase completamente bloqueada, com todos os serviços religiosos – incluindo missas e funerais – suspensos até pelo menos o dia 3 de abril. Eles também foram suspensos na Irlanda, Espanha, Alemanha, Estados Unidos e em outros lugares.
O Vaticano tomou a decisão sem precedentes de anunciar que as celebrações da Semana Santa deste ano, tradicionalmente presididas pelo papa, ocorrerão “sem a presença física dos fiéis” e serão transmitidas ao vivo. A missa matinal de Francisco, o Ângelus aos domingos e a Audiência Geral semanal estão sendo transmitidos ao vivo. Com 170 milhões de pessoas já fechadas em casa na Europa e na América do Norte, a celebração da liturgia está se tornando digital.
Apesar das restrições ao culto divina, o vírus tem revelado que a missão da Igreja é mais necessária do que nunca. Enquanto a Covid-19 continua se espalhando, amar o próximo não é apenas um bem social, mas também uma questão de vida ou morte. A pandemia também está reforçando a necessidade da comunidade e da solidariedade.
“Nos últimos anos, condenamo-nos a uma espécie de autoisolamento”, disse o bispo de Bérgamo, Francesco Beschi, cuja diocese está no centro da crise. “Todo mundo pensava em si mesmo. Neste momento em que vivemos um isolamento imposto, damo-nos conta de como a partilha é necessária.”
Alguns italianos estão cantando uns aos outros nas janelas para manter o alto astral, enquanto os sinos das igrejas estão tocando todas as noites pelas ruas vazias de Roma. A tradição monástica tem muito a dizer sobre o que podemos aprender quando permanecemos parados. “Vá, sente-se na sua cela”, disse o Abbá Moisés, um dos Padres do deserto, “e sua cela lhe ensinará tudo”.
Ser confrontado com a fragilidade da vida pode levar mais pessoas em uma cultura pós-cristã a refletir sobre questões religiosas. Callum Brown, o principal historiador da secularização na Grã-Bretanha, descobriu que ir à igreja estava no auge nos anos imediatamente após a Segunda Guerra Mundial.
Paradoxalmente, este é um tempo de graça e também um tempo de tribulação. Ele oferece uma oportunidade para que a Igreja abandone a sua zona de conforto do presbitério e do palácio episcopal e se torne peregrina, um corpo missionário voltado para o exterior que o papa sempre vem pedindo durante o seu pontificado de sete anos. As apostas são altas.
Durante o seu discurso no Ângelus do fim de semana passado, ele agradeceu aos padres por encontrarem maneiras “criativas” para ministrar às pessoas durante a crise. Mas ele também emitiu um alerta. “Vocês não devem ser o Pe. Abbondio”, disse o papa ao clero, referindo-se ao padre covarde e hipócrita de “Os Noivos”, o grande romance de Alessandro Manzoni, que descreve vividamente a praga de Milão em 1630. Ele é contrastado ao altruísta e corajoso frade capuchinho Frei Cristóvão e ao cardeal Carlos Borromeo.
Podemos estar vendo o ministério corajoso da “Igreja hospital de campanha”, com a qual Francisco sonha, começando a surgir. Em Bérgamo, seis padres já morreram por causa do vírus. O bispo Beschi disse que eles “expuseram a si mesmos” ao coronavírus para que pudessem ficar “perto da sua comunidade”. Esse ministério tem suas raízes na maneira como os cristãos primitivos iam ao encontro dos doentes e moribundos, independentemente dos riscos para si mesmos durante as pragas que varreram o Império Romano nos séculos II e III.
“Sem se preocuparem com o perigo, eles cuidavam dos doentes, atendendo a todas as suas necessidades e ministrando-os em Cristo, e com eles partiam desta vida serenamente felizes”, escreveu São Dionísio de Alexandria no ano 260.
“Que os nossos sacerdotes tenham a coragem de sair”, disse o papa durante a missa matinal na semana passada, “indo ao encontro dos doentes, levando a força da Palavra de Deus e a Eucaristia.” Depois, o Vaticano esclareceu que isso deve ser feito de acordo com os protocolos de saúde.
Isso evidenciou outra tensão na resposta da Igreja à Covid-19. Embora o papa queira que os padres ministrem, ele não quer pôr em risco a saúde de ninguém. Há um ato de equilíbrio complicado entre a missão da Igreja e a política do governo; o papa – que é, ele próprio, chefe de Estado – não quer parecer que está encorajando as pessoas a desrespeitar as diretrizes de distanciamento social do governo italiano. O papa ofereceu seu apoio às autoridades para tomar medidas duras em prol da saúde pública, mas também argumentou que “medidas drásticas” não funcionam.
Quando o cardeal Angelo De Donatis, que dirige a Diocese de Roma para o papa, anunciou o fechamento das igrejas da Cidade Eterna, a decisão foi rapidamente revertida. Francisco, segundo fontes, não ficou satisfeito com a decisão de fechar as portas.
Uma mensagem de WhatsApp enviada aos amigos padres pelo secretário do papa, o padre Yoannis Lahzi Gaid, reflete o pensamento dentro da Casa Santa Marta. “Eu penso nas pessoas que certamente abandonarão a Igreja quando este pesadelo tiver acabado, porque a Igreja as abandonou quando precisavam”, dizia-se. “Que nunca se diga: ‘Não vou a uma Igreja que não veio me encontrar quando eu precisava.” A mensagem instava os padres a agirem como pastores, em vez de “assalariados”, e relembrava a história de São Pedro que abandonou Roma sob a perseguição do imperador Nero. “Pedro, humanamente falando, tinha todo o direito de fugir para salvar a sua vida da perseguição e talvez para poder fundar outras comunidades”, escreve o secretário de Francisco, “mas, na realidade, ele agia de acordo com a lógica do mundo, como Satanás, isto é, pensando como os homens e não segundo Deus.”
O vírus é uma catástrofe humana. Também está levando a Igreja a um ressourcement [refontalização], recorrendo à tradição cristã primitiva, e ao desenvolvimento, para atender às necessidades em mudança do presente e do futuro.
Em toda a Itália e em outros lugares da Europa, a luz da fé está sendo mantida viva nos lares das pessoas, através da oração e de atos de solidariedade. De certa forma, é um retorno às catacumbas. E, ao mesmo tempo, a tecnologia digital está oferecendo novas maneiras de a Igreja se conectar com as pessoas e de unir as pessoas, possibilitando que participem da missa e dos sacramentos, mesmo quando é impossível que elas estejam fisicamente presentes.
O que está ficando óbvio é que não é mais possível que o ministério da Igreja de cuidar dos doentes e moribundos seja deixado apenas aos padres. Muitos deles na Europa têm 70 anos ou mais e são particularmente vulneráveis a infecções. O clericalismo não pode sobreviver a essa epidemia. Os padres e o povo estão trabalhando juntos. Eles não têm escolha.
Quando a crise diminuir e as coisas voltarem ao normal, o impacto do coronavírus ainda será sentido. O modelo sinodal da Igreja que Francisco sempre defendeu será mais uma realidade do que uma teoria. A Igreja hospital de campanha, com a qual Francisco sonha, que “cura feridas e aquece os corações dos fiéis; que tem proximidade”, está pronta para abrir.
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O “hospital de campanha” está aberto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU