07 Março 2020
Tradicionalmente, a mobilização de movimentos sociais brasileiros na data do 8 de Março, Dia Internacional da Luta das Mulheres, traz reivindicações e denúncias das políticas que mais afetam as mulheres no país. Neste 8M, como a data é chamada, o primeiro após a consolidação do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), os ataques aos povos tradicionais, negros, quilombolas e indígenas e como afetam mais diretamente as mulheres serão alguns dos temas que estarão nas ruas.
A entrevista é de Julia Dolce, publicada por Agência Pública, 06-03-3020.
A Agência Pública entrevistou Luciana de Freitas Silveira, integrante do Movimento Negro Unificado (MNU), que faz parte da organização do 8M. Ela é mestranda em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professora do ensino quilombola.
Gaúcha, Luciana vive em Florianópolis há 27 anos, onde acompanha a luta de comunidades e mulheres quilombolas. “A terra é uma coisa muito cara, você finca uma bandeira e se coloca enquanto dono dela. Então essa disputa por espaço, que é a luta das mulheres negras, trans, é uma luta pela territorialidade. São essas mulheres que trabalharam, que cuidam dos lares, que estão à frente da luta e que nesse momento também vem sendo atacadas”, apontou.
Luciana de Freitas Silveira. (Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública)
A educadora ressalta posicionamentos de Bolsonaro que afetam diretamente as mulheres de povos tradicionais brasileiros, como a manifestação de que nenhum centímetro de terra será demarcado para povos indígenas em seu mandato.
Luciana lembra também o protagonismo que as brasileiras tiveram na maior manifestação contra o governo Bolsonaro já realizada até hoje, o movimento que ficou conhecido como “Ele Não”, que teve seu ápice entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais.
“De forma bastante pedagógica e com força, o ‘Ele Não’ foi para a rua mostrar que é preciso diálogo e pensar muito substancialmente sobre o preço que vamos pagar por ter elegido esse governo.”
O que este 8M, após o primeiro ano do governo Bolsonaro, traz de específico em relação à luta das mulheres brasileiras?
Acho que a questão do governo Bolsonaro foi a primeira coisa pautada pelas mulheres que compõem a frente 8M, que é composta por vários coletivos, movimentos, partidos, mulheres autônomas. Essa avalanche de retrocessos que a gente vem passando nos últimos tempos. E eu junto com algumas companheiras pensamos na questão do território, pensando o corpo que é atravessado pelo território.
Vou falar enquanto o MNU aqui de Santa Catarina, que tem 15 anos de luta com as comunidades quilombolas pelo direito ao território. Nós estamos lutando em todos os âmbitos por políticas em benefício dessas comunidades. A terra é uma coisa muito cara para nós, a luta por quem é o dono da terra.
Eu penso muito nessa luta pela territorialidade e como isso se relaciona à luta pelo nosso corpo enquanto mulheres. Essa disputa por espaço, espaço simbólico que é a luta das mulheres negras, indígenas, LGBT. São essas as mulheres que trabalham, que cuidam dos lares, que estão na frente da luta e que nesse momento também vem sendo atacadas.
Só não faz essa ligação quem não consegue conceber uma sociedade na sua pluralidade, uma coisa está conectada à outra. E aí nós saímos com o tema “Viver com Dignidade e Liberdade, Trabalho, Corpo e Território”.
Quando eu digo “”trabalho, não é o trabalho que faz com que sejamos exploradas. As mulheres negras e quilombolas em Santa Catarina trabalham por horas, muito pouco, ou como terceirizadas, ou em casas de mulheres brancas na cidade. Queremos o trabalho que dá a possibilidade para as mulheres, de fato, sustentarem suas famílias.
E aí a gente afinou a conversa nesse tema pensando em toda a América Latina e também como essa política neoliberal, conservadora, de cunho religioso, neopentecostal, vem atacando e vem afetando de forma bem violenta as mulheres de forma geral. Quisemos pensar de que forma a gente dialoga com essa diversidade de mulheres, apontando para a política que está aí. Como dialogar com aquela senhora que é evangélica ou que mora na comunidade há muito tempo. Porque elas vivem a derrocada, elas sentem as políticas públicas, o [fim do] Bolsa Família, o aumento do gás.
Acho que a gente precisa dialogar de uma forma mais serena, mais tranquila, explicando para elas que o que a América Latina vem passando é um projeto político de sociedade em que a necropolítica é a bola da vez. Deixo algumas viverem, outras morrerem. Então, a ideia do 8 de Março é fazer essa disputa de narrativas e dar voz a essa mulher que luta, que se coloca no front todo dia, principalmente as mulheres que não têm voz, mas que estão se colocando.
Temos uma infinidade de exemplos de como se dá a organização das comunidades quilombolas e como essas mulheres são centrais na produção. Na comunidade Invernada dos Negros, são as mulheres que têm uma produção de gado leiteiro. É importante para o território, porque a mulher produz para manter a comunidade, e não para o capital, para o agronegócio. Essas comunidades tradicionais produzem para sua subsistência e para seu etnodesenvolvimento. Então, elas que vão dizer de que forma vão comercializar isso, se vão vender para o comércio da redondeza, se repetem o ciclo econômico pelo qual as comunidades quilombolas sobreviveram nos séculos anteriores, do comércio nas cidades vizinhas.
O governo quer abrir as portas do Brasil para o capital externo se utilizar da nossa terra, do que é nosso maior valor, a troco de aleijar as comunidades tradicionais. É um preço muito caro, principalmente para as mulheres, porque acaba tendo essa coisa da migração para os centros. Aí novamente a favelização. A história é cíclica. Novamente teremos um êxodo rural, as cidades se tornando favelas, favelas se tornando violentas sem políticas públicas. E são os filhos dessas mulheres que morrem, que são assassinados.
Os movimentos do 8M também estão se voltando mais para um trabalho de base depois da eleição deste governo? Esse tema está mais latente?
Eu acredito que isso que tu fala faz sentido, mas eu acho que muito mais no campo político. Político-partidário à esquerda. Essa coisa do afastamento das bases, que o jogo está ganho depois do golpe muda, essa análise é boa mas não para os movimentos sociais de forma generalizada. Eu digo isso porque a gente, no MNU, trabalha só com as bases. Nós temos em quilombos pessoas evangélicas, o mundo não está afastado disso. Estamos envolvidos e imbricados nessas relações. E nosso diálogo com nossas comunidades quilombolas é sempre alertar ou fazer o debate franco e aberto sobre o que seria direita, o que seria esquerda; e pelo menos no pouco que eu convivo, minhas companheiras mais velhas no movimento têm mais experiência com isso.
As nossas comunidades têm muito esse entendimento do que é direita, esquerda, que esse governo não nos representa. No modo geral, essas comunidades têm uma consciência do governo anterior, o que é o atual, o que foi o golpe, e a gente sempre trabalhou nas bases. Porque é a base que alimenta o MNU. Não tem como a gente discutir negritude, consciência negra, nos espaços só acadêmicos, de sindicato. Nós fizemos a crítica, durante os 13 anos do PT, desse abrandamento do trabalho de base, como se o jogo estivesse ganho. Aliás, nosso trabalho no 8M é sempre fazer atividades nas bases também. Mas eu compreendo que muita gente perdeu suas bases e agora está ficando caro fazer esse caminho de volta.
Como as afirmações escancaradamente racistas do governo Bolsonaro têm afetado a luta das mulheres quilombolas?
O governo Bolsonaro traz toda aquela vontade que muita gente tinha de externar aquilo que pensava, e aí é um trabalho dobrado para os movimentos negros, indígenas, LGBT, de mulheres, desconstruir narrativas como essas. A gente se torna a forma policialesca de vigiar o pensamento ou a palavra do outro. É um trabalho dobrado. É cansativo, porque isso se dá principalmente nas redes sociais, e elas são um campo minado. Assim como é importante para a divulgação de posicionamento, de pensamentos de ideias, é também um lugar perigoso, porque você não sabe com quem está falando. O governo bolsonarista aplicou de má-fé uma forma muito traiçoeira e rasteira de fazer política, sem base teórica nenhuma. Não é a esmo que ele se coloca dessa forma infantilizada; então, tem sido uma batalha muito dura para a gente.
Eu sou professora na educação quilombola, no urbano, nossos estudantes ouvem ele na internet, veem a televisão todo dia. E aí todo dia é uma disputa de narrativa dentro da sala de aula, para explicar para os estudantes o que está em voga, porque o sujeito fala dessa forma. Então, é um trabalho mais que dobrado, trazendo a política para sala de aula, para que eles possam levar para suas famílias o que o governo tem querido implementar no Brasil. Não tem sido fácil, mas é um trabalho duro de disputa de narrativa. Temos trabalhado muito mais na questão do discurso e da narrativa do que em outros anos.
Como você enxerga a luta das mulheres no Brasil? Em outros países da América Latina, temos visto manifestações massivas contra governos de direita, e aqui no Brasil nossos movimentos parecem meio paralisados ainda em relação a colocar as pessoas na rua, em uma luta unificada.
Quando você traz movimentos de outros lugares, você traz a etnicidade, mulheres indígenas de determinados países, e, pensando em uma unidade das mulheres, eu sinceramente acho que essa unidade não se dará dessa forma aqui. Porque temos pautas diferentes. Mulheres indígenas, negras e quilombolas, talvez nos aproximemos mais, porque nossa pauta é a questão do racismo, mulheres com deficiência e LGBT é outra pauta. Acho que a gente centralizar uma única narrativa, um único processo de luta se torna difícil. Na história isso não se deu também.
O primeiro livro da Angela Davis traz isso, o direito ao voto das mulheres negras nos EUA: em determinado momento, elas dialogavam com os homens negros, mas, quando isso não foi bom, elas viram as costas para eles também. Essa coisa de você buscar um único eixo tem sido muito difícil, não é fácil falar com as senhoras das comunidades e falar de pautas unificadas. Poderíamos encher ônibus de mulheres quilombolas, mas isso é feito com verbas. Os movimentos sociais de base não possuem estrutura. Os movimentos indígenas também. É caro levar as mulheres indígenas, quilombolas para o 8M. É deslocamento, é alimentação, é estrutura. Então, tudo passa pela questão da estrutura, que é dinheiro, de possibilitar que essas mulheres estejam juntas.
O Brasil teve encontro de mulheres negras grandioso em Brasília, mas o esforço de juntar todas as mulheres para uma grande ação é um esforço além do político, de estrutura. No campo das ideias, é claro que nós temos a tentativa da junção da grande massa das mulheres. Mas nós, enquanto Brasil, temos uma diversidade e complexidade de comunidades e mulheres.
O MNU esteve presente na construção do “Ele Não”? Como você enxerga que a última, e principal, grande manifestação contra o governo Bolsonaro tenha sido organizada por mulheres?
O MNU sempre se coloca presente nas manifestações, chamando sua juventude, indo nas marchas. Acho que o “Ele Não” traz, pensando como professora, essa questão pedagógica. Por que essas mulheres estão se organizando contra esse governo que está sendo eleito democraticamente?
As pessoas estão perdendo, nas universidades, suas bolsas de estudos, há uma diminuição na busca pelos pré-vestibulares populares. A gente vê o esvaziamento das salas de aula durante o semestre – no ano passado foi muito forte –, porque o sujeito pensa que não consegue ir para uma universidade onde não ganhará uma bolsa. Percebemos isso com os estudantes bolsistas. O “Ele Não” trazia todo esse debate que as pessoas só foram digerir depois que o governo se instalou. E paulatinamente vem destruindo cada política pública pensada para a população mais pobre e que mais necessita, mais vulneráveis, principalmente as mulheres. O “Ele Não”, de forma bem pedagógica e com força, veio pra rua mostrar que é preciso diálogo e pensar muito substancialmente o que é esse governo, a que preço ele veio e que nós vamos pagar por ter elegido.
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Para educadora brasileira, este 8M visibiliza resistência de mulheres quilombolas, indígenas e campesinas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU