19 Fevereiro 2020
As convulsões latino-americanas mostram os limites de suas instituições democráticas para canalizar o conflito político e, como se viu na Bolívia, o risco da tentação militar.
O artigo é de María Victoria Murillo, professora de Ciência Política e Estudos Internacionais e diretora do Instituto de Estudos Latino-Americanos na Universidade de Columbia (Nova Iorque), e Steven Levitsky, professor de Ciência Política na Universidade de Harvard e autor de “Como as democracias morrem” (Zahar, 2018), publicado por Nueva Sociedad, edição janeiro/fevereiro de 2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A América do Sul fechou 2019 com meses convulsionados, que nos mostraram os limites de suas instituições democráticas para canalizar o conflito político. Os protestos de rua contra as instituições governamentais da zona andina apontaram a incapacidade das instituições políticas para processar os conflitos que dividem essas sociedades. No entanto, somente na Bolívia os protestos deram lugar a um fim antecipado do mandato presidencial. Neste caso, a decisão do presidente Evo Morales de ignorar tanto a proibição constitucional como o resultado do plebiscito que lhe negavam a possibilidade de se apresentar a uma terceira reeleição incentivou a mobilização da oposição, frente as suspeitas de manipulação provocadas por uma interrupção da contagem rápida de votos. Aos protestos de rua se somaram um aquartelamento policial e a “sugestão” militar de que o presidente renunciasse. Frente a essas circunstâncias, Morales partiu ao exílio dois meses antes de terminar seu mandato.
A desaceleração do crescimento econômico agudizou as tensões sociais em toda América do Sul, mas o protagonismo das forças de segurança distingue o caso boliviano. Mais ainda, na Bolívia, as Forças Armadas demandaram inicialmente um decreto de impunidade pelas consequências da repressão, que teve ser revogado pela pressão internacional de organizações de direitos humanos. Se a ação dos militares bolivianos estivesse apontando para um retorno dos exércitos latino-americanos ao papel de árbitros políticos que os caracterizou durante a maior parte do século XX, estaríamos frente a um fenômeno cujos riscos não podem ser subestimados. A possibilidade de golpear a porta dos quartéis oferece uma alternativa à negociação democrática. Isso reduz os incentivos dos políticos para buscar compromissos e para investir no funcionamento das instituições democráticas. Isto é, se poderiam voltar a gerar ciclos de instabilidade institucional como o que experimentou a própria Bolívia entre 1920 e 1980, período em que sofreu 13 golpes militares.
Por outro lado, quando carecem de opção militar, os políticos veem-se obrigados a investir em soluções democráticas inclusive frente às crises profundas. Os compromissos políticos que se produzem em consequência reduzem os níveis de violência e geram ensinamentos que permitem avançar na construção de instituições mais duradouras, apesar dos legados regionais de fraqueza institucional. É por isso que o risco de um retorno à arbitragem militar significaria jogar fora o esforço de construção democrática que, com ziguezagues, encararam a maior parte dos países da região nas últimas décadas. Essa possibilidade é especialmente preocupante dado o aumento no apoio da opinião pública aos militares. Segundo o Projeto de Opinião Pública da América Latina (lapop, sigla em inglês) da Universidade Vanderbilt, a média de apoio aos golpes militares na América Latina é 39% em resposta ao incremento do crime, e 37% como reação ao aumento na corrupção. Mais ainda, o crescente prestígio das Forças Armadas contrasta com o desprestígio dos partidos políticos na opinião pública regional.
O caso boliviano foi caracterizado pela grande polarização gerada pela experiência populista que liderou Evo Morales, experiência que foi abruptamente terminada por uma mobilização social apoiada pelas forças de segurança. É por isso importante entender as limitações que tiveram os golpes contra governos populistas que tinham sido eleitos por maiorias para reduzir a polarização que os precede. Quando os militares se tornam árbitros dos conflitos políticos em sociedades polarizadas, o resultado costuma ser uma intensificação dos conflitos políticos. Isto é, os golpes contra os governos populistas costumam atiçar a polarização e gerar perseguições que dividem a sociedade e dificultam o estabelecimento tanto de compromissos políticos como de democracias efetivas. Ainda que estão por se ver as consequências do golpe na Bolívia, o grau de revanchismo mostrado em curto prazo pelo governo de Jeanine Áñez, que substituiu Morales, é preocupante.
Discutimos nas seguintes seções tanto o impacto dos golpes militares sobre a estabilidade política como suas consequências quando o governo substituído era populista. Pensando na experiência latino-americana contemporânea e no contexto internacional que a rodeia, concluímos chamando a atenção sobre os riscos potenciais que implica um retorno à tentação militar.
O abrupto final da terceira presidência de Morales gerou inumeráveis debates sobre a natureza. A candidatura de Morales para uma terceira reeleição ignorou não somente uma proibição constitucional, mas também o resultado negativo de um referendo que o mesmo havia convocado para acabar com esse limite. Mais ainda, o mecanismo para eludir o resultado eleitoral foi apelar a uma sentença judicial absurda que declarava que esse limite era uma contravenção a seus direitos como ser humano, que incluíam eleger e ser eleito – um argumento que não é a primeira vez que é utilizado na região. Neste contexto, quando a recontagem provisória de votos da eleição presidencial foi interrompida com Morales abaixo dos dez pontos de diferença do seu adversário, o que forçaria um segundo turno, seus opositores começaram a denunciar fraude. Na recontagem definitiva conhecida no dia seguinte, a diferencia havia crescido o suficiente para evitar um segundo turno, no qual as pesquisam sugeriam derrota de Evo. A mobilização da oposição com eixo em Santa Cruz de la Sierra e Potosí estourou com denúncia de fraude eleitoral. Quando, duas semanas depois, a Organização dos Estados Americanos (OEA) anunciou em um informe que havia encontrado irregularidades eleitorais e Evo Morales ofereceu chamar novas eleições com uma nova autoridade eleitoral, sua oferta não encontrou eco na oposição, a política havia se amotinado e as mobilizações vinham se radicalizando, enfraquecendo o ex-presidente Carlos Mesa, segundo mais votado nas eleições de 2020, e favorecendo Luis Fernando Camacho, o presidente do Comitê Cívico Pro Santa Cruz e representante da ala mais conservadora e radical da oposição. Nesse momento, o Exército “sugere” a renúncia para Morales. Ou seja, frente a uma polícia e Forças Armadas que abandonaram sua subordinação ao presidente, este se viu forçado a renunciar, o que nos leva a classificar esse episódio como golpe militar. Não são as características do governo Morales, mas sim a forma em que terminou, as quais nos induzem a essa classificação.
Esse golpe ignora as trágicas lições que deixou o pretorianismo na região. Apesar de no novo milênio terem sido escassas as intervenções militares, este não é o único caso em que os civis voltaram a bater nas portas dos quartéis. No Equador em 2000, na Venezuela em 2002 e em Honduras em 2009, setores da oposição também aplaudiram intervenções militares de diferentes símbolos políticos porque percebiam os governos no poder como ineptos, corruptos ou autoritários. Nos casos de Venezuela, Honduras e Bolívia, ademais, onde os governos no poder eram ou são populistas, a oposição aplaudiu a intervenção militar como um mecanismo democrático. Salvo exceções, os golpes militares não tiveram resultados democratizantes. E essas exceções ocorrem geralmente em ditaduras conservadoras, como o golpe contra o general Marcos Pérez Jiménez, na Venezuela (1958), ou contra o general Alfredo Stroessner, no Paraguai (1989). Os golpes contra governos populistas eleitos por amplas maiorias, inclusive se esses governos mostraram tendências autoritárias que minaram a democracia, geralmente incentivam a polarização, provocam repressão, geram maior instabilidade política e instalam líderes que costumam aproveitar do seu acesso ao poder para estabelecer medidas revanchistas para seus antecessores. Essas dinâmicas costumam gerar não somente uma grande volatilidade nas políticas públicas, como também perseguição contra os políticos depostos e seus seguidores. Se esses se radicalizam e se mobilizam contra as novas autoridades, a consequência é uma espiral de violência e radicalização que dificilmente gera as condições para o estabelecimento de uma democracia estável.
O caso paradigmático é o golpe de 1955 contra o governo do general Juan D. Perón, na Argentina. Embora tenha iniciado sua carreira graças a um golpe militar e em um governo de fato, Perón foi eleito em 1946 como candidato a uma coalizão política que incluía os sindicatos e representava a classe trabalhadora. Suas políticas sociais e trabalhistas geraram paixão entre seus seguidores, que se beneficiaram de pensões, acesso à saúde, educação, moradia e férias. Essa mesma paixão, mas na direção oposta, caracterizou seus detratores, que o acusaram de introduzir o culto à personalidade, limites à liberdade de imprensa e restrições à dissidência e impor a obrigação de todos os funcionários públicos de pertencer ao partido peronista. Esses setores aplaudiram o golpe militar de 1955, muitos deles aguardando uma transição democrática como a anunciada pelo general Eduardo Lonardi quando disse: "Não haverá vencedores, nem derrotados". No entanto, o governo que se seguiu foi brutal na repressão a qualquer coisa associada ao peronismo, além de reverter muitas de suas políticas públicas.
Perón teve que se exilar, seu partido foi banido, o corpo de Eva Perón foi roubado e a menção ao nome "Perón" se transformou em crime (ele foi nomeado no discurso oficial como o "tirano fugitivo"). No entanto, como é sabido, os esforços para desperonizar a Argentina (e especialmente os sindicatos) falharam e o jogo impossível de uma maioria peronista que não pôde participar eleitoralmente devido à proibição de seu partido resultou em mais golpes militares e maior instabilidade política nos anos seguintes (exacerbada pelas intervenções de Perón no exílio).
O golpe contra Evo Morales tem um gosto semelhante à experiência do peronismo histórico. O governo que o substituiu, liderado pela senadora Jeanine Añez, impôs um gabinete dominado por conservadores do leste boliviano. Eles rejeitam o indigenismo que marcou o governo anterior, que foi substituído por uma extrema religiosidade cristã — o golpe foi caracterizado como um "retorno da Bíblia ao palácio presidencial". Inicialmente, a resposta à reação dos seguidores do Movimento ao Socialismo (MAS) foi uma repressão brutal que produziu 30 mortes, acompanhada por uma dramática mudança nas políticas simbólicas. Após um acordo com o MAS, que continua a controlar o Parlamento, para exigir novas eleições sem a participação de Morales, o novo governo solicitou a captura do ex-presidente, refugiado na Argentina, sob a acusação de sedição e terrorismo, e ele perseguiu muitos de seus seguidores. O governo mexicano até protestou contra o "cerco" de sua embaixada na Bolívia por forças de segurança que buscam a captura de políticos que já receberam asilo. Embora a participação do MAS nas eleições de maio próximo abra a possibilidade de escapar dos piores legados dos golpes antipopulistas, parece não reduzir o nível de polarização, cujas consequências a longo prazo são preocupantes. Portanto, há incerteza sobre o futuro da Bolívia, mas mesmo que o retorno à democracia seja bem-sucedido, a carta militar voltou ao convés e poderá ser jogada no futuro. Isso muda as escolhas dos atores políticos, que, somados à crescente polarização, criam a ameaça de um retorno ao pretorianismo, em vez de uma democracia estável. A experiência recente de Honduras é importante como ponto de comparação.
O golpe militar que encerrou a presidência de Manuel Zelaya em 2009 é o caso recente mais semelhante ao boliviano, apesar das diferenças entre os governos de Zelaya e Morales. Embora provenha de um partido tradicional, Zelaya virou à esquerda se aproximando do governo de Hugo Chávez e ingressou na Aliança Bolivariana pelos Povos de Nossa América (ALBA). Seu crescente populismo e políticas redistributivas assustaram a elite hondurenha. Quando Zelaya tentou fazer um referendo para consultar uma reforma constitucional que facilitaria a reeleição presidencial (que a Constituição não permite modificar pelos procedimentos de reforma), contra o Congresso e a Suprema Corte, a reação da elite foi recorrer às forças armadas, que terminou com o mandato e o fez se exilar. Embora os governos da região e até os dos Estados Unidos tenham denunciado o golpe de estado, a oposição da elite a Zelaya foi firme e não sucumbiu à pressão internacional. Apesar dos argumentos apresentados, esse golpe não resultou em uma democracia estável. Tanto os seguidores de Zelaya como a esquerda foram reprimidos. As eleições de 2010, vencidas pelo candidato liberal Porfirio Lobo, são consideradas competitivas, mas o regime demonstrou uma crescente erosão democrática. O sucessor de Lobo, Juan Orlando Hernández, semelhantemente a Morales, ignorou a proibição constitucional de reeleição e apelou a uma decisão judicial duvidosa de um Supremo Tribunal aliado para concorrer novamente como candidato à presidência em 2017.
Nesse caso, a eleição também foi marcada por irregularidades, protestos populares e um pedido de contagem de votos. No entanto, o apoio dos militares agora politizados (e o governo de Donald Trump) permitiu a Hernández permanecer no poder, apesar do aumento da repressão e da direção claramente autocrática que Honduras tomou. O golpe militar que acabou com o populismo incipiente não reduziu a polarização ou resultou no estabelecimento de uma democracia estável. Esses legados são preocupantes no caso da Bolívia.
Ceder à tentação militar tem efeitos a longo prazo na estabilidade democrática, e resistir a ela ajuda a construir instituições mais estáveis, mesmo em contextos marcados por crises recorrentes. Lembre-se de que os países latino-americanos foram caracterizados pela instabilidade política da independência até o final do século XX. Nesse período, a intervenção militar era comum e a ameaça de intervenção era um poderoso impedimento para os atores políticos. Na maioria dos países da região, as Forças Armadas eram árbitros dos conflitos que dividiam suas sociedades. As intervenções militares não apenas interromperam os processos democráticos, mas também reduziram os incentivos para investir na construção de instituições políticas, uma vez que o recurso ao quartel frequentemente parecia ser uma opção melhor para mudar o equilíbrio do poder político. Ou seja, golpes militares não afetam apenas as instituições democráticas no curto prazo, mas também têm efeitos a longo prazo que as tornam mais fracas e, assim, geram incentivos para retornar à intervenção das Forças Armadas.
O processo de consolidação da democracia implica a subordinação dos militares ao poder civil e envolve modificações legais e culturais. Se os cidadãos confiam mais nas Forças Armadas do que nos legisladores, os incentivos para ir até eles são mais fortes. Se os cidadãos percebem dificuldades em sustentar a ordem pública, as forças de segurança que prometem "ordem" se tornam mais atraentes aos seus olhos. Se os políticos sucumbem à tentação militar diante da polarização, é mais difícil construir instituições democráticas. Este é um momento crucial para a região. As democracias latino-americanas não são mais tão jovens e, no processo de desaceleração econômica, mostraram claras limitações para fornecer as respostas que os cidadãos desejam. Com uma opinião pública insatisfeita com a elite política, que em muitos casos é menos respeitada que o Exército, e em um contexto de crescentes protestos e dificuldade em manter a ordem, a tentação militar parece aumentar e, com ela, os riscos para a estabilidade democrática na região.
Nesse contexto, é fundamental não sucumbir à tentação militar e recorrer a instituições políticas, mesmo com criatividade, para sustentar processos democráticos. No segundo semestre de 2019, com economias em recessão como a Argentina ou com crescimento mínimo como o Uruguai, a polarização nesses países foi expressa eleitoralmente e sem violência. Nos dois casos, o resultado foi uma alternância de poder (com votação no caso do Uruguai). Na Argentina, perdeu uma coalizão de centro-direita (liderada pelo agora ex-presidente Mauricio Macri) e no Uruguai, uma de centro-esquerda (Frente Amplio). Na Argentina, novamente à beira da inadimplência de sua dívida externa, a crise econômica implicou uma redução de 3% no PIB, com uma inflação de 50% em um ano eleitoral. Venceu o peronismo, com o kirchnerismo como o centro de gravidade interior. No Uruguai, a desaceleração econômica foi mais limitada, mas a Frente Amplio já possuía três mandatos no governo, com as quais havia gerado algum cansaço na sociedade. Venceu o Partido Nacional (com apoio do Partido Colorado e de outros partidos da oposição na votação). Nos dois casos, as eleições permitiram prometer aos cidadãos uma mudança sem a necessidade de protestos nas ruas e sem recorrer aos militares. Nos dois casos, essas não foram uma opção para os atores políticos depois das últimas ditaduras sangrentas vividas pelos dois países, que no caso argentino incluíram uma derrota militar contra tropas britânicas nas Ilhas Malvinas.
Sem a opção militar, os políticos carecem de atalhos e são forçados a negociar com os instrumentos que o sistema político lhes dá. Embora a ausência da opção militar não impeça crises, ela serve para gerar incentivos que ajudam a encontrar soluções negociadas. A experiência da crise argentina de 2001 é um bom exemplo de um país onde a grande insatisfação com o sistema político foi resumida na frase de um cidadão exigindo "que se vayan todos", mas essa demanda não resultou na ocupação militar do vácuo político. No caso argentino, o repúdio popular à intervenção militar como resultado da última ditadura e o custo da justiça de transição para os militares foram fundamentais para explicar por que a classe política não recorre ao Exército e por que não quer interferir também em crises políticas. Após a sucessão de golpes militares que começaram com a derrubada de Perón em 1955 e culminaram nos anos 70 com a ditadura mais violenta da história da Argentina, que também levou o país a uma derrota militar na Guerra das Malvinas, a opinião pública deixou de confiar nas forças armadas. Os julgamentos por violações de direitos humanos e os relatórios sobre a repressão brutal e o fiasco militar que foram divulgados durante o primeiro governo democrático informaram a sociedade sobre o fracasso das forças armadas no poder. Isso facilitou o surgimento de um consenso político e social contrário à intervenção militar que atravessa os partidos políticos. Apesar de várias revoltas militares para resistir à justiça de transição que investigou as violações dos direitos humanos e as oscilações que elas geraram, o consenso político não mudou em relação às intervenções militares e os políticos resistiram a bater nas portas dos quartéis, apesar das profundas crises que em períodos anteriores teriam resultado na convocação das Forças Armadas. Em 1989, a combinação de hiperinflação e roubos foi resolvida através do avanço das eleições e da transferência antecipada de poder para o novo governo, mas sem recorrer às forças armadas. Doze anos depois, um colapso da economia que levou metade da população à pobreza e a Argentina a inadimplir sua dívida gerou uma rebelião popular maciça contra a classe política. A renúncia do presidente e vice-presidente complicou a sucessão na democracia, como foi demonstrado pela sucessão de presidentes que o país teve no início de 2002. No entanto, o Congresso finalmente nomeou um sucessor aceito por todos os partidos, que encerrou o mandato presidencial demonstrando uma criatividade democrática que escapou à tentação militar.
No Panamá, onde a Guarda Nacional era a força política dominante há 30 anos, a invasão dos EUA em 1989 causou seu desmantelamento com resultados semelhantes. Sem as Forças Armadas às quais recorrer, os políticos panamenhos foram forçados a recorrer a procedimentos eleitorais para resolver seus conflitos. Essa limitação os forçou a investir em instituições democráticas. A democracia panamenha já completou 30 anos, que é o período democrático mais longo de sua história. Ou seja, quando a porta para a intervenção militar é fechada, as condições para a consolidação democrática são favorecidas.
Concluindo, a tentação militar abre possibilidades que geram maior instabilidade institucional. Quando essa alternativa é fechada, o sistema político se fortalece porque seus protagonistas são forçados a aprender a canalizar soluções para conflitos sociais por meio de negociação e compromisso democrático, mesmo quando se tornam mais agudos, como está acontecendo agora na região. No caso dos golpes contra governos populistas, mesmo quando eles já mostravam tendências autocráticas e desdém pelas instituições democráticas, a intervenção militar tende a aguçar a polarização a longo prazo. É difícil, por esse motivo, que surja uma democracia estável, uma vez que os profundos conflitos sociais não são resolvidos e não é estabelecido um consenso sobre como resolvê-los, exceto a tentação militar.
Em um contexto regional e internacional com crescente volatilidade e maior dificuldade em estabelecer consenso democrático, a definição de cada Estado sobre as regras do jogo se torna mais urgente. Como ficou evidente no caso boliviano, a região não teve destaque para controlar a crise e a maioria dos governos reagiu de acordo com sua própria dinâmica política. A reação americana também seguiu esse padrão: assim como George W. Bush reconheceu o governo que emergiu do golpe contra Hugo Chávez em 2002, confirmando o discurso anti-imperialista de chavismo, o atual governo do mesmo sinal se apressou em reconhecer o governo de Añez, apesar da dúbia sucessão presidencial que se seguiu à partida de Morales. O contraste com a reação do governo de Barack Obama ao golpe em Honduras mostra a importância da política doméstica dos EUA para entender a realidade latino-americana.
A crescente polarização de toda a região e o surgimento de protestos sociais apenas acentuam a urgência de se estabelecer consenso em cada país sobre a necessidade de evitar a tentação militar.
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A tentação militar na América Latina. Artigo de Steven Levitsky e María V. Murillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU