06 Fevereiro 2020
"O terror do contato coincide com o terror do contágio. Em primeiro plano, emerge uma angústia primária de intrusão. As nossas fronteiras serão suficientes para garantir a proteção da nossa vida diante da ameaça do estranho?".
A pergunta é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 05-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em “Massa e potere” [Massa e poder, em tradução livre], Elias Canetti começa refletindo sobre o atávico temor do homem de ser tocado pelo desconhecido. Por toda a parte, o ser humano evita ser tocado por aquilo que lhe parece estranho. Esse temor do contato pode chegar ao ápice do pânico quando se percebe a impossibilidade do afastamento ou da fuga.
Não por acaso, as crises de pânico ocorrem em lugares lotados ou em situações – túneis, cinemas, elevadores – em que o sujeito percebe a sensação de estar preso, sem possibilidade de fuga.
A epidemia é uma figura que deveria ser inscrita por direito na fenomenologia do medo humano pelo contato. Não por acaso, na cidade chinesa afetada pelo vírus, o primeiro apelo das autoridades foi o de evitar os locais públicos: fechar-se nas próprias casas, barrar o acesso do estranho ao nosso lugar mais privado é outro gesto fundamental relacionado ao medo do contato. Somente na nossa casa nos sentimos seguros. O fechamento na própria casa subverte a nossa exposição ao perigo do contato com o estranho.
Para Freud, trata-se de uma pulsão primária do ser humano: erguer barreiras protetoras diante do caráter estranho e hostil do mundo – fonte de estímulos perturbadores – é um movimento fundamental da vida que se defende do caráter ingovernável da própria vida.
No tempo mais original da vida psíquica, o estranho e o hostil coincidem. O terror do contato coincide com o terror do contágio. Em primeiro plano, emerge uma angústia primária de intrusão. As nossas fronteiras serão suficientes para garantir a proteção da nossa vida diante da ameaça do estranho?
O risco da epidemia e do contágio reflete essa angústia primária da intrusão; o vírus, a partir desse ponto de vista, é a encarnação mais temível do estranho, porque não tem rosto, não é visível, não tem corpo. Ele pode irromper na nossa casa, pode perfurar as fronteiras da nossa existência, pode jogar a nossa vida na morte. A sua difusão é tão mais ameaçadora quanto mais difícil é registrá-la objetivamente.
Não por acaso a atual mobilização do discurso médico e do político que administra os fluxos dos corpos no nosso território visa a possibilitar a identificação do vírus e dos seus portadores humanos. Nenhuma figura mais do que a epidemia evidencia esse impulso primário do humano ao evitamento do contato e ao fechamento.
Aqui tocamos o limite da clássica definição aristotélica do homem como ser social. A pulsão não é só abertura vital para a vida, mas também tendência claustral, tensão securitária que rejeita a exposição da vida. Não por acaso os regimes ditatoriais sempre utilizaram metáforas médicas para definir o inimigo, como vírus, infecção, bactéria. Acima de todos, o regime nazista. Hitler se propôs como médico da Grande Alemanha, encarregado de extinguir do seu corpo os vírus dos judeus, dos comunistas, dos liberais, dos homossexuais.
Na realidade, toda epidemia exalta o caráter primário da pulsão securitária. Essa pulsão defende a vida contra a ameaça da morte, contra o perigo da intrusão da morte na vida. Freud a define, não por acaso, como uma pulsão de autoconservação. O seu correspondente político é a inclinação paranoica que identifica o estranho como uma ameaça à integridade do corpo da nação.
Não se trata de analfabetismo político, nem barbárie incivilizada. Mas sim de uma mobilização das angústias mais profundas: ser contagiado, corroído, morto, violentado, agredido pelo estranho. Não se deve zombar desse medo como simples fruto da ignorância. Em cada ser humano, jaz uma inclinação xenofóbica que a atualidade do coronavírus reativa fatalmente.
Não por acaso, nesses dias, o alvo de ataques racistas não é o africano, mas sim o chinês. Nessa conjuntura, é o corpo do chinês que encarna o flagelo mortal do vírus. A necessária batalha da ciência e da política contra a difusão da doença e da morte não pode reter os seres humanos do impulso securitário a identificar em uma raça a causa do mal. E esse impulso é facilmente alimentado por uma época como a nossa, que fez do muro uma tentação coletiva.
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Racismo psicológico: quando a mente se fecha devido a um vírus. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU