07 Fevereiro 2020
Eu li com atenção o Preâmbulo que dom Pierantonio Pavanello, bispo de Adria-Rovigo, na Itália, propôs, no dia 1º de fevereiro, perante o Tribunal Interdiocesano Piemontês. O tema é (aparentemente) central: “Declaração de nulidade do matrimônio e discernimento de consciência: caminhos diferentes e complementares para o cuidado pastoral das situações matrimoniais ‘irregulares’”.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado em Come Se Non, 04-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Parece-me útil fornecer a linha fundamental de reflexão proposta pelo canonista e mostrar os seus limites históricos e pastorais em relação ao desígnio proposto com autoridade pela Amoris laetitia.
Em resumo, pode-se destacar que as 10 páginas propostas à reflexão identificam com precisão a questão levantada de modo novo pela Amoris laetitia: ou seja, uma nova relação entre “foro externo” e “foro interno”, entre forma judiciária de avaliação do “vínculo” e discernimento de consciência do sujeito.
O orador parece consciente do fato de que a insistência no lado objetivo, que caracterizou a tradição magisterial até a Familiaris consortio, encontra agora, com a Amoris laetitia, uma nova consideração do sujeito e da sua consciência.
O que isso significa para o “cuidado pastoral”, no entanto, parece permanecer bastante na sombra. Por um lado, fazem-se grandes afirmações sobre a necessidade de uma “consideração mais ampla das questões”, mas, concretamente, essa amplitude de olhar, de fato, é impedida por “categorias bloqueadas”. As categorias inadequadas prejudicam o julgamento e, de fato, asseguram um resultado substancialmente de uma total confirmação do que ocorreu até agora.
Com uma aceleração final do discurso, até se reitera o julgamento que, no ano 2000, havia sido feito pelo Pontifício Conselho para os Textos Legislativos sobre a “obstinada perseverança em pecado grave manifesto”. Tal texto foi superado pela nova interpretação do texto paulino que AL 185 fornece como esclarecimento e do qual, evidentemente, o orador parece permanecer no escuro.
O certo é que essa passagem problemática ajuda o orador a concluir com uma síntese, da qual vaza, de modo evidente, uma pré-compreensão gravemente redutiva.
De fato, ele escreve:
“A esse propósito, considero útil assinalar a diferença em relação ao itinerário penitencial que havia sido proposto durante os dois Sínodos sobre a família de 2014 e 2015 e que, no modelo do que ocorre nas Igrejas ortodoxas, teria constituído uma solução ‘em foro externo’, concluindo-se com um ato público de readmissão aos sacramentos. O caminho indicado pela Amoris laetitia é muito diferente: o discernimento se caracteriza precisamente por ser um caminho feito no âmbito da consciência (e, portanto, pessoal, embora possa servir de ajuda a participação em percursos em grupo) e que leva a um julgamento de consciência, que, como tal, não tem relevância pública e exterior na comunidade” (p. 8).
O ponto-chave problemático é justamente essa conclusão sobre a “irrelevância pública e comunitária” da consciência. De fato, essa leitura, apesar de todas as boas intenções expressadas nas páginas iniciais, sanciona uma visão da questão que é elaborada de acordo com uma “irrelevância pública da consciência” que é típica da sociedade fechada e de uma visão da Igreja como “societas inaequalis”.
Como ocorre frequentemente, alguns canonistas cultivam, no coldre dos seus raciocínios formais, a secreta nostalgia de poder enfrentar as questões eclesiais e matrimoniais conservando uma rígida distinção entre consciência e instituição, permanecendo, assim, aquém da Igreja que reconhece a “liberdade de consciência” como um componente essencial da comunidade e da própria esfera pública.
Por isso, é preciso reconhecer que, na raiz dessa análise insuficiente, há categorias de linguagem e de pensamento que não são mais capazes de falar da realidade e que devem se tornar objeto de cuidadosa reelaboração.
Como eu disse, o primeiro ponto sobre o qual devemos trabalhar, eclesial e pastoralmente, é precisamente o das categorias que utilizamos. E isso cabe a todos, mas, em primeiro lugar, aos pastores e aos canonistas.
Os pastores e os canonistas devem fazer a coisa certa e não se deter nas quinquilharias. A primeira coisa a ser feita é não virar de cabeça para baixo o discurso da Amoris laetitia.
Na Amoris laetitia, de fato, há a abertura de um horizonte novo, pensado ainda com as categorias clássicas, mas levadas ao seu limite, pedindo a quem recebe o seu significado que se movam “além”. Se, em vez disso, formularmos a questão como uma “tensão entre declaração de nulidade e consciência”, permanecemos totalmente dentro do sistema de “justiça” e de “verdade”, que não assegura mais nem justiça nem verdade.
Precisamente a relevância da “consciência” não é um pequeno aditivo, uma pitada de pimenta ou de orégano que se acrescenta à sopa requentada do “processo canônico” ou da “confissão sacramental”. Pelo contrário, é o elemento que redefine o horizonte e impõe uma “terceira dimensão”, ou seja, aquele “foro pastoral”, em que o exterior determina o interior, e o interior tem efeito sobre a comunidade e no plano público.
Precisamente aí, parece-me, o uso distorcido das categorias clássicas, em vez de assegurar inteligência, bloqueia de modo autorreferencial a possibilidade de “tocar o real”. Se eu falo da consciência – e fala-se dela em cinco ou seis páginas –, mas chego à conclusão de que a referência à consciência não pode, de modo algum, incidir sobre a estrutura institucional, valorizo um “primado do escândalo” que bloqueia o sistema anterior à Amoris laetitia.
É claro que, nessa matéria, é preciso “prudência”. Mas o conceito de “prudência” que a Amoris laetitia finalmente reafirmou não é “evitar o escândalo da nova união”, mas também e talvez acima de tudo “evitar o escândalo de não saber reconhecer novas condições de comunhão”. E reconhecer não significa apenas pronunciar a palavra de autoridade sussurrada no confessionário, mas também ser capaz de um ato eclesial e de um documento de reconhecimento oponível a terceiros.
Este é o ponto decisivo: há uma “oponibilidade aos terceiros” das novas condições de vida que torna a lógica do “libelo” – cuja natureza paternalista ainda não consegue ser totalmente superada – uma categoria que merece uma discussão acurada e não superficial.
Deve-se acrescentar a isso que a referência à consciência, tão insistente quanto ineficaz, não pode se separar da referência à história. Os cônjuges que vivem o matrimônio, e que, nessa história, entram em crise não têm apenas uma consciência, mas têm também uma história. O seu “vínculo” tem uma história, que não pode ser compreendido apenas no seu início.
A “história do vínculo” é uma palavra quase “incompreensível” para as categorias dos canonistas. Enquanto eles não souberem se dar as palavras e as formas institucionais para se abrirem a essa realidade, que é a relevância da história dos sujeitos, eles saberão apenas construir modelinhos de brinquedo, com os quais tentarão – se der certo – ler a realidade ou que usarão apenas como espelhos nos quais possam refletir a sua reconstrução abstrata e pedagógica do real.
No momento em que reconhecermos que a “história do vínculo” tem uma relevância comunitária e institucional, descongestionaremos essa “corrida à declaração de nulidade”, que parece o modo mais simples de ajeitar as coisas, embora seja apenas o abuso institucionalizado de um remédio raro e excepcional, que pretende retroceder – e forçar todos a retroceder – a um “início” em que tudo havia começado – talvez sem nunca começar de verdade.
Se o nosso problema é a relação do matrimônio com a consciência e com a história, é fácil demais voltar apenas ao ponto em que a consciência é reconhecida como “falsa”, e a história, ainda “inexistente”. Mas essas são as categorias com as quais muitos canonistas e grande parte dos bispos ainda pensam. E essas são as categorias que, acima de tudo, devemos submeter a revisão, porque distorcem tudo, os objetos e os sujeitos ao mesmo tempo: ou seja, tanto os cônjuges como objetos de exame, quanto os canonistas e os bispos como sujeitos de tal exame.
Gostaria de dizer ao bispo-canonista, se for lícito usar uma linguagem muito franca: faça a coisa certa! Acima de tudo, trabalhe sobre você e mude as categorias graças às quais você inventa um mundo que não existe e por causa das quais você não consegue ver o mundo que existe.
Obviamente, o “trabalho” que a Amoris laetitia nos pede não pode ser jogado apenas sobre as costas dos bispos e dos canonistas, embora tenha, nas suas competências e na sua autoridade, uma mediação incontornável.
Para evitar um efeito que eu chamaria de “dispositivo de bloqueio” e que gera substancialmente uma paralisia eclesial, na qual só é considerado como “autorizado e justificado” aquilo que se fazia antes da Amoris laetitia, é preciso se referir a dois “faróis” que teólogos e cônjuges podem colocar sob a lente e estudar com cuidado apaixonado:
a) o primeiro é a assunção do verdadeiro núcleo da Amoris laetitia, que é a superação de uma leitura primordialmente jurídica do matrimônio. Uma leitura escatológica do matrimônio coloca o seu significado e a sua verdade não em um “início formal”, mas sim em um “cumprimento prometido e final”. Essa bela tradução da doutrina matrimonial em um “processo” implica uma profunda revisão de categorias que “asseguram” o sacramento apenas em um “ponto inicial já cumprido”. O fato de o vínculo ter uma história é uma verdade escatológica, que o direito canônico atual não consegue reconhecer suficientemente e que deve fazer com que se possa honrá-lo com novas categorias.
b) Precisamente essa primeira assunção implica uma segunda, de caráter técnico-jurídico, e que implica não apenas uma “reforma do direito processual”, mas também do próprio “direito substancial”. E aqui gostaria que os canonistas e os bispos recordassem que um bom especialista em leis, até mesmo em leis canônicas, deve sempre raciocinar “de lege condita”, mas também “de lege condenda”. A Amoris laetitia nos pede para caminhar em uma nova direção. Se o direito é um obstáculo, deve-se mudá-lo, para poder caminhar e para poder reconhecer que a consciência dos esposos e a sua história de vida real é capaz de mudar a comunidade e a percepção pública que a Igreja tem de si mesma. Se, em vez disso, encerra-se o ditado da Amoris laetitia nas espirais apenas da “lex condita”, obtém-se o efeito paradoxal de excluir por princípio precisamente aquilo que a realidade e o magistério recente nos pedem que saibamos honrar. E nos pedem isso de modo exigente, até mesmo às custas de pôr em discussão os mais enraizados dos nossos hábitos jurídicos e pastorais. E eu não acho que a melhor maneira de tratar o cavalo de raça que é a Amoris laetitia seja o de domesticá-lo e entristecê-lo no pequeno recinto das categorias jurídicas do século XIX.
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“Faça a coisa certa”: a recepção da Amoris laetitia e as categorias dos canonistas. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU