04 Fevereiro 2020
Somente se admitirmos que o ato de fé e de culto é “ação comum” de toda a Igreja é que podemos conceber corretamente o sacerdócio ordenado, sem isolá-lo em uma relação solitária com Cristo.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 31-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A ocasião para esta reflexão me foi dada hoje pela leitura de um texto, que me foi sugerido por um amigo atento. De fato, foi publicada no jornal Avvenire uma resenha do livro “Do fundo de nossos corações” [em tradução livre], na qual o professor Fulvio De Giorgi, de modo acidental, deixa cair uma afirmação que imediatamente chamou a minha atenção. Ele afirma que:
“Ratzinger não aborda aqui o sacerdócio comum: mas, pelo fato de não falar disso, não se pode absurdamente afirmar que ele o negue.”
Acredito que essa afirmação revela um certo modo de considerar as questões teológicas, que é bastante generalizado e que leva inevitavelmente a consequências muito unilaterais.
Deve-se especificar que a frase deve ser lida no contexto de uma resenha que parece não reconhecer que a teoria do sacerdócio, oferecida pelo livro em questão, é totalmente “pré-conciliar”, para não dizer “anticonciliar”. Da minha parte, acredito que não é totalmente “absurdo” considerar que uma teoria do sacerdócio ministerial, que não fale do sacerdócio comum, é uma leitura gravemente comprometida do sacerdócio ministerial, porque não aprendeu nada de decisivo com o Vaticano II. E esse é o ponto crucial.
A partir do Vaticano II, não é possível propor uma teoria do sacerdócio ordenado católico sem “ordená-lo”, conforme é pedido pela Lumen gentium, pela Sacrosanctum concilium e pelo Presbyterorum ordinis, ao sacerdócio comum.
Considerar como “absurdo” a pretensão de que, em um discurso sobre o “sacerdócio católico”, se deva necessariamente falar do sacerdócio comum, além do sacerdócio ministerial, parece bastante surpreendente. A menos que o revisor tenha se imergido de tal modo no tom do texto revisado a ponto de perder a referência normativa que um discurso “católico” deve conservar com grande cuidado e que, em caso algum, pode “silenciar”.
De fato, o termo “católico”, na sua acepção atualizada dos textos e das experiências do Concílio Vaticano II, exige uma compreensão mais ampla e mais articulada do sacerdócio. Ela deriva de uma compreensão mais profunda da Igreja e da liturgia. Se a Igreja é acima de tudo “povo de Deus”, e a liturgia é “ação comum de Cristo e da Igreja”, uma teoria do sacerdócio que não capte a necessária prioridade da “comunidade sacerdotal” (LG 11) e da “ação participativa” (SC 48) constrói um modelo de Igreja e de liturgia que podem abrir mão de toda e qualquer reforma. Assim, oferecem-se pretextos a quem quer a pirâmide hierárquica não invertida e a liturgia indiferentemente nova ou antiga, ad libitum.
Se dizemos que o sacerdote ordenado pode ser entendido “em si mesmo” e não em relação ao sacerdócio de todos os batizados, perdemos o único terreno no qual faz sentido a reforma litúrgica, a sinodalidade, a inculturação. Não é por acaso que o livro aqui resenhado tenha sido publicado, no fundo, contra um resultado do Sínodo sobre a Amazônia. Porque somente abstraindo do real histórico e geográfico, somente se o mundo pode ser uma variável irrelevante, somente se os eventos e as experiências de homens e mulheres forem apenas fumaça e cinzas é que é possível pensar em “conservar a tradição” mantendo as estruturas mentais e instituições do Concílio de Trento.
Mas somente se admitirmos que o ato de fé e de culto é “ação comum” de toda a Igreja é que podemos conceber corretamente o sacerdócio ordenado, sem isolá-lo em uma relação solitária com Cristo.
Por essa razão eclesiológica e litúrgica, que é plenitude pneumatológica e cristológica, não se pode dizer que é “normal” falar de sacerdócio hierárquico sem falar nada do sacerdócio comum. Pela mesma razão, o silêncio, precisamente o silêncio, torna-se uma omissão irremediável, porque distorce o sacerdócio. Ela torna a Igreja imune a reformas, por ser garantida simplesmente pelos padres. É o que Rosmini já denunciava em 1832.
Por isso, absolutamente não é absurdo interpretar o silêncio sobre o sacerdócio comum como algo grave demais para ser tão facilmente atribuível a um cardeal e a um bispo emérito de 2020. Por outro lado, se fosse “absurda” a preocupação que diversos comentaristas levantaram, como é possível que, em um dos manuais mais credenciados – e justamente mais fiel ao Vaticano II – como o de Erio Castellucci, diga-se, apertis verbis e, além do mais, em um título, que, para compreender o ministério cristão ordenado, utilizou-se “um ponto de ligação bíblico inadequado: o sacerdócio” (p.12)?
Quando não correlacionado ao “sacerdócio comum dos batizados”, o “sacerdócio” é um título gravemente inadequado. Porque reconstrói o padre, a liturgia e a Igreja como se o Concílio nunca tivesse existido. Isso é o que me parece realmente absurdo em 2020.
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Um “sacerdócio católico” imunizado do sacerdócio comum? A “reductio ad absurdum” de um problema verdadeiro. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU