03 Março 2018
‘Chaves para interpretar a Amoris Laetitia’ é o nome do curso a distância oferecido pelo Boston College para colocar à disposição de quem quiser, crente ou não, “os grandes temas que o Papa Francisco nos oferece em sua Exortação Apostólica”. Rafael Luciani, membro da Equipe Pastoral Teológica do CELAM e professor da Escola de Teologia e Ministério do Boston College, explica os objetivos desta iniciativa: “Queremos colaborar com o processo de reformas promovido pelo Papa Francisco. É um apelo para colocar em prática o Concílio Vaticano II”.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 26-02-2018. A tradução é de André Langer.
Em que consiste o curso a distância 'Chaves para interpretar a Amoris Laetitia’?
Com este curso queremos aprofundar os grandes temas que o Papa Francisco nos oferece na Exortação pós-sinodal Amoris Laetitia, com o objetivo de compreender a centralidade do amor na vida cotidiana. O amor define nossa vocação como seres humanos, mas se expressa e se encontra de muitas maneiras. O curso quer oferecer critérios para discernir moralmente nossos estilos de vida, tendo em mente, como nos recorda o Papa na Exortação, que a vida cristã não pode se tornar um moralismo asfixiante incapaz de acompanhar e integrar o maior número possível de pessoas dentro da Igreja.
Este curso inscreve-se naquilo que o Papa entende como a reforma das mentalidades, para que aprendamos a curar as feridas daqueles que vivem nas periferias existenciais e abandonemos as atitudes de acusação e de condenação que tanto mal nos causaram. Pode-se ver isso, com muita dor, nos maus-tratos a que são submetidas as pessoas que vivem em situações irregulares e não podem acessar os sacramentos da reconciliação e da comunhão, como veremos no curso. Este é um dos vários pontos polêmicos que iremos estudar no curso.
Quem são seus destinatários?
A oferta de formação continuada da Escola de Teologia e Ministério do Boston College destina-se a todas as pessoas, crentes ou não. São temas que nos ajudam a compreender melhor nossas vidas e a assumir os grandes desafios que precisamos enfrentar nesta época. Mais de 10 mil pessoas, de cerca de 30 países, já passaram por nossos cursos. Entre os inscritos estão bispos, o clero diocesano, religiosas e religiosos, agentes de pastoral e também muitos leigos que não pertencem a movimentos eclesiais, mas querem saber mais sobre essas questões porque se sentem atraídos pela mensagem do Papa Francisco. Por isso, convidamos todos e todas a se inscreverem através do portal.
O que o Boston College pretende com um curso que tem essas características?
Queremos colaborar com o processo de reformas promovido pelo Papa Francisco. É um apelo para implementar o Concílio Vaticano II. Por esse motivo, os jesuítas do Boston College quiseram investir neste projeto, para formar muitas pessoas que não têm acesso a uma formação religiosa desse nível, seja por causa da distância geográfica ou devido às limitações financeiras que possam ter. Esta é também uma maneira concreta de apoiar muitas paróquias e instituições que não possuem programas de formação, uma vez que exigiriam pessoas bem qualificadas e elevados recursos econômicos. A universidade viu neste projeto a extensão de sua missão e identidade, como uma forma ir ao encontro da sociedade e fomentar o diálogo e o discernimento dos problemas que mais nos afetam.
Quem são os professores?
Nossos professores são teólogos das Faculdades de Teologia mais importantes do mundo. Para o curso sobre a Amoris Laetitia, contamos com o aval da Federação Internacional de Universidades Católicas, do CELAM, da Pontifícia Universidade Gregoriana, da Pontifícia Universidade Javeriana, da Universidade Iberoamericana, do CISAV (Centro de Pesquisa Social Avançada) e da Unicap, entre outros. Desta forma, o Boston College quis assumir o apelo do Papa Francisco feito na Veritatis Gaudium para criar pontes entre as faculdades eclesiásticas com vistas a servir para o bem comum da sociedade.
Esta é uma maneira de colocar os recursos acadêmicos e financeiros dessas instituições de grande prestígio a serviço da formação religiosa e do crescimento humano de todos. Por esta razão, neste curso, somos acompanhados por professores da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, da Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá e do Centro de Pesquisa Social Avançada de Querétaro, do México. Alguns dos professores participaram do Sínodo que deu origem a esta Exortação. No portal do curso pode-se ver o currículo acadêmico e a trajetória eclesial de cada um dos professores.
O curso terá um lado prático em termos de fornecer chaves de leitura e critérios para a aplicação da exortação apostólica de Francisco?
Sim, há temas que tratam de casos concretos e abordam os textos mais polêmicos da Exortação. A ideia é ajudar, tanto quanto possível, as pessoas a se aproximarem do texto sem preconceitos, estudá-lo e tirar suas próprias conclusões. Muitos daqueles que criticam a Exortação não a leram ou estudaram; eles apenas repetem o que os críticos do Papa Francisco dizem ou publicam em alguns meios de comunicação. Esta é uma oportunidade para conhecer a Exortação com a ajuda de pessoas que se dedicaram ao seu estudo e que participaram do Sínodo que está na sua origem.
Além disso, o curso irá proporcionar uma série de leituras com vistas a complementar visões e o aprofundamento da reflexão no futuro. Há muitas pessoas que seguem sendo excluídas sem nenhuma razão da participação na plena comunhão eclesial, motivo pelo qual o curso terá uma especial atenção ao que é a moral do discernimento e do acompanhamento, para ajudar a curar feridas e redescobrir a qualidade humana da nossa fé.
Qual é, na sua opinião, a razão última das resistências que a Amoris Laetitia está encontrando nos setores eclesiásticos mais conservadores?
O Papa Bento XVI criticou duramente o moralismo que existe na Igreja católica. Ele dizia que é uma atitude que reduz o cristianismo a um simples julgamento ético onde os raciocínios são do tipo preto ou branco. Isso fez com que o cristianismo seja visto como um ideal abstrato e inatingível e em que muitos sacerdotes acreditam ser os donos das consciências dos leigos. O Papa Francisco, quando era cardeal em Buenos Aires, seguindo essa crítica, falava da moralina dos sacerdotes, ou essa atitude que tende a colocar todos no mesmo pote, a julgar sem oferecer saídas e a condenar em vez de reconciliar.
Aqueles que queriam converter a moral em dogma, encontram-se hoje com um dos mais belos princípios evangélicos, mas difícil de assimilar, como é o discernimento moral de cada situação e de cada caso em concreto. O próprio João Paulo II, que eles usam para criticar Francisco, falou da lei da gradualidade, entendendo que nenhuma norma moral pode ser generalizada, nem aplicada igualmente a todos, sem levar em consideração as circunstâncias da vida de cada pessoa. Caso fosse assim, perderíamos a centralidade da dignidade humana e invadiríamos o foro interno das pessoas.
Basicamente, o problema reside naqueles que permanecem apegados a uma conservação pastoral baseada apenas na sacramentalização da vida de fé e não veem a necessidade evangélica de provocar uma conversão pastoral das estruturas eclesiais. Por esta razão, Francisco chama para construir uma Igreja em saída, sem clericalismos moralizantes, com pessoas capazes de colocar-se no lugar do outro e compartilhar seus sofrimentos. Convida para pensar a moral a partir do discernimento de cada caso, porque somente assim é possível gerar processos de acolhida e integração de todas e todos, sem exceção.
Em Chicago, acaba de ser lançada outra iniciativa sobre a Amoris Laetitia. Significa isso que os cardeais O'Malley e Cupich se apresentam publicamente como defensores da Amoris Laetitia?
A iniciativa é do cardeal Cupich, de Chicago. Ele convocou alguns bispos e universidades nos Estados Unidos para oferecer algumas conferências sobre a Amoris Laetitia. Isso mostra que, mesmo nas Igrejas mais conversadoras, há bispos que reconhecem que a Amoris Laetitia responde ao Evangelho e atualiza o Concílio Vaticano II. No entanto, é uma iniciativa que ainda não tem o apoio da Conferência Episcopal Estadunidense, nem o aval das arquidioceses e das dioceses do país.
A Igreja nos Estados Unidos é uma das Igrejas locais mais polarizadas e menos receptivas ao processo de reforma realizado pelo Papa Francisco, porque não consegue sair da sacramentalização como único meio de presença na sociedade. Há dioceses inteiras em que os únicos serviços que são oferecidos são a missa e a catequese, ao passo as paróquias protestantes oferecem alimentação e abrigo aos pobres e aos imigrantes. Além disso, estamos falando de uma Igreja que, dentro de alguns anos, passará a ser de maioria hispânica. Isto significa, em termos da Amoris Laetitia, que a realidade da família será um fator determinante se alguém quiser entender a especificidade da cultura latina e a forma como ela vive a sua participação eclesial.
Existem resistências à Amoris Laetitia em outros setores da hierarquia dos Estados Unidos?
Aqueles que criticam a Exortação alegam que é um documento pastoral e que, portanto, não é normativo para a vida da Igreja. O mesmo aconteceu com o Concílio Vaticano II. Isso é típico de muitos movimentos e mentalidades neoconservadoras que buscam a restauração de uma antiga ordem do cristianismo que lhes devolva poder e status. Mas, no fundo, não estão se opondo ao Papa, mas à aplicação do próprio Concílio Vaticano II que Francisco decidiu colocar em prática.
Isso é muito sério porque, nesse caso, diferentes modos de ser católico estão em conflito, a ponto de alguns poderem ser católicos, mas não cristãos, ou seja, viver uma religião sem o Evangelho, sem seguir Jesus, fechado em uma bolha eclesial acreditando-se os donos das consciências dos outros. Daí a importância de entender que a Igreja é missionária, que deve sair e tocar a realidade do outro, e este é um mandato evangélico que leva à conversão pessoal e estrutural.
O grande problema para compreender a Amoris Laetitia é daqueles que se distanciaram da realidade concreta das pessoas e pregam uma moral sem bondade ou compaixão, que mata todas as esperanças em um processo gradual de mudança. Para esses, a moral tornou-se uma ideologia e deixou de ser curadora da vida.
Além de professor no Boston College, você é venezuelano e professor, também, na Universidade Andrés Bello de Caracas. A situação na Venezuela está piorando? Existe um risco de guerra civil?
Publiquei, recentemente, um artigo na revista SIC do Centro Gumilla de Caracas, que também foi publicado por este sítio (Religión Digital). O título é: “O pecado estrutural na Venezuela de hoje”. Nesse artigo, exponho a gravidade da crise, mas não apenas da conjuntura atual, mas do processo que vivemos nos últimos 18 anos. Há fome na Venezuela e as pessoas estão morrendo por falta de remédios. É uma realidade inegável e causada pelo modelo ideológico-político que foi imposto por uma esquerda fracassada que não quis fazer uma autocrítica.
Sobre isso podemos ter opiniões contraditórias, mas basta visitar as áreas mais pobres ou os hospitais, ou entrar em uma farmácia, e vão descobrir o drama terrível que uma grande parte da população está vivendo. Somente nestes últimos cinco anos a pobreza aumentou para níveis superiores aos que tínhamos antes de Chávez. Muito superiores. Hoje, mais de 70% do país vive em níveis de pobreza e há 80% de desabastecimento de medicamentos em todo o país. Na diocese de La Guaira, perto de Caracas, por exemplo, mais de 60% das crianças sofrem de alguma forma de desnutrição. Jamais se tinha visto algo parecido na Venezuela. O mais triste é que o governo não permite a entrada da Caritas Internacional sabendo que enviariam os medicamentos que precisamos.
O que você acha do papel que o ex-presidente espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, está exercendo na Venezuela?
É muito triste, como ser humano e como político. Dom Marío Moronta declarou uma coisa que é compartilhada por todos os bispos venezuelanos: o ex-presidente espanhol Rodríguez Zapatero apoia o governo e perdeu toda a credibilidade para obter a mediação.
O triste é que uma pessoa tão importante como ele tenha se prestado a isso, quando há pessoas que morrem todos os dias ou que são perseguidas por suas posições políticas. Ele poderia ter feito algo para mudar esse drama. Agora, passará para a história como alguém que ajudou a consolidá-lo.
Pouco tempo atrás você esteve com o Papa em Roma. Francisco está preocupado com a situação na Venezuela?
É claro que ele está preocupado, embora muitos tenham a sensação de que não foi suficientemente explícito na questão humanitária. Nas relações internacionais, deve-se reconhecer que foi o Papa Francisco quem, por intermédio de seu secretário de Estado e ex-Núncio em Caracas, o cardeal Parolin, definiu as condições que o governo não quer cumprir, o que desencadeou uma forte rejeição internacional do regime. O Vaticano exigiu a convocação de eleições gerais, a renovação do Conselho Nacional Eleitoral, o reconhecimento da única Assembleia Nacional eleita popularmente e a abertura do canal humanitário. Isto é o que até agora a oposição também continua reclamando.
O governo não apenas negou cada uma dessas condições, mas também instalou de fato uma Assembleia Nacional Constituinte com poderes supra-constitucionais e destituiu alguns governadores da oposição que não queriam juramentar-se perante essa Assembleia inconstitucional. Também é importante reconhecer que o Papa, como Chefe de Estado, ainda não encontra um interlocutor único na oposição, ao passo que o governo o tem.
A posição da Conferência Episcopal da Venezuela recebeu um forte apoio do Papa quando lhes disse que a voz dos bispos na Venezuela era a voz do Papa. Esta posição não é um jogo de palavras. No atual processo de reformas eclesiais realizadas por Francisco, espera-se dar maior poder e autonomia às Conferências Episcopais locais. Normalmente, em pontificados anteriores, muitas orientações políticas vinham de Roma e os bispos locais só tinham o trabalho de segui-las. Agora, o Papa deseja que as igrejas locais assumam sua posição de liderança, como deveria ser, já que são elas que conhecem e sofrem os problemas e podem exigir mudanças.
O Papa, neste caso, apoiou os bispos venezuelanos, expressando sua profunda comunhão com tudo o que disseram sobre o atual regime, a ponto de o Vaticano e os bispos venezuelanos serem os primeiros a não reconhecer a atual Assembleia Nacional Constituinte imposta pelo regime e a pedirem condições claras antes de entrar em qualquer processo eleitoral. O desafio permanece na oposição para manifestar sua maturidade assumindo uma posição unitária e coerente.
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Curso a distância ‘Chaves para interpretar a Amoris Laetitia’. “Queremos colaborar com o processo de reformas promovido pelo Papa Francisco”. Entrevista com Rafael Luciani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU