22 Janeiro 2020
2019 foi um péssimo ano para os anticapitalistas, porém também foi para o capitalismo. É possível avançar a uma sociedade realmente liberal, pós-capitalista, tecnologicamente avançada? Como pode se desenvolver uma ‘imaginação pós-capitalista’ nesta nova década?
O artigo é de Yanis Varoufakis, economista e ex-ministro de Finanças da Grécia, publicado em inglês por Project Syndicate, 27-12-2019, e em espanhol por Nueva Sociedad, janeiro de 2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Enquanto a derrota do Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn no Reino Unido, em dezembro passado, subtraiu o ímpeto da esquerda radical, particularmente nos Estados Unidos (onde estão as primárias para as eleições presidenciais), o capitalismo recebeu críticas de lugares inesperados. Milionários, executivos de negócios e até a imprensa financeira reuniram intelectuais e líderes comunitários em uma sinfonia de arrependimentos pela brutalidade, insensibilidade e insustentabilidade do capitalismo rentista. A incapacidade de continuar fazendo negócios como sempre foram feitos parece ser uma ideia difundida nas salas de reunião das maiores corporações do mundo.
Cada vez mais pressionados e justificadamente culpados, os ultra-ricos (ou pelo menos os mais razoáveis entre eles) sentem-se ameaçados pela avassaladora precariedade em que a maioria está afundando. Como Karl Marx previu, eles formam uma minoria com poder supremo, incapaz de liderar sociedades polarizadas que não podem garantir uma existência digna àqueles que não possuem ativos.
Presos em seus condomínios fechados, os mais inteligentes dos ricos defendem um novo "capitalismo de partes interessadas" e até pedem impostos mais altos para a sua classe. Eles entendem que a democracia e o estado redistributivo são a melhor apólice de seguro possível. Mas, infelizmente, ao mesmo tempo, eles temem que, como classe, esteja na sua natureza evitar pagar o prêmio.
Os remédios propostos variam de insignificantes a ridículos. A ideia de que os conselhos de administração não pensem somente no valor para os acionistas seria maravilhosa se não fosse um detalhe: a remuneração e a designação das reuniões são de decisão exclusiva dos acionistas. Além disso, os apelos para limitar o poder exorbitante das finanças seriam grandes se não fosse o fato de a maioria das empresas responder a instituições financeiras que possuem a maior parte de suas ações.
Confrontar o capitalismo rentista e criar empresas para as quais a responsabilidade social não é apenas um golpe publicitário exige nada menos do que reescrever o direito das empresas. Para entender a magnitude da tarefa, é conveniente voltar ao momento da história em que o surgimento de ações negociáveis transformou o capitalismo em arma e nos perguntamos: estamos prontos para corrigir esse "erro"?
Esse momento ocorreu em 24 de setembro de 1599. Em um prédio de madeira nos arredores de Moorgate Fields, não muito longe de onde Shakespeare estava ocupado terminando Hamlet, foi fundada a Companhia das Índias Orientais, um novo tipo de empresa cuja propriedade era subdividida em pequenos fragmentos que podiam ser comprados e vendidos livremente.
As ações negociáveis possibilitaram o surgimento de empresas privadas maiores e mais poderosas que os Estados. A hipocrisia fatal do liberalismo era usar os elogios dos virtuosos açougueiros, padeiros e cervejeiros do bairro para defender os piores inimigos do livre mercado: as empresas das Índias Orientais, que nada sabem sobre comunidades ou ética, que decidem preços, devoram concorrentes, governos corruptos e transformar liberdade em farsa.
Então, no final do século XIX, com a formação das primeiras megaempresas interconectadas (como Edison, General Electric e Bell), o gênio divulgado pela ação negociável deu outro passo. Como nem os bancos, nem os investidores tinham dinheiro suficiente para alimentar o motor dessas novas megaempresas conectadas, o megabanco apareceu, na forma de um cartel global de bancos e fundos escuros, cada um com seus próprios acionistas.
Um nível nunca antes visto de dívida foi criado para transferir valor para o presente, com a esperança de que os lucros seriam suficientes para pagar no futuro. O resultado lógico: megafinanças, megacapital, megafundos de pensão, megacrises financeiras. Os fracassos de 1929 e 2008, a ascensão incontrolável da grande tecnologia e os outros ingredientes do atual mal-estar contra o capitalismo tornaram-se inevitáveis.
Neste sistema, as vozes que se erguem para pedir um capitalismo mais amável são somente modas passageiras, sobretudo na realidade posterior a 2008, que deixou claro que megaempresas e megabancos têm o controle total da sociedade. A menos que estejamos dispostos a anular a criação de 1599, a ação negociável, não haverá mudanças apreciáveis na distribuição atual do poder e da riqueza. Para imaginar como poderia ser na prática superar o capitalismo, há que se reconsiderar o modelo de propriedade das corporações.
Imaginemos que as ações fossem como um direito a voto, que não se pode comprar, nem vender. Assim como ao entrar na universidade recebe-se o carnê da biblioteca, uma equipes novas nas empresas receberiam uma única ação por pessoa que garantisse o direito a emitir um voto em eleições abertas a todos os acionistas, nas quais se decidirão todos os assuntos da corporação: desde as questões de gestão e planejamento até a distribuição de lucros líquidos e bonificações.
De repente, a distinção entre lucros e salários não faria mais sentido, e as empresas são reduzidas a um nível que estimula a concorrência no mercado. Para cada pessoa nascida, o banco central concede automaticamente um fundo fiduciário (ou uma conta pessoal de capital), onde um dividendo básico universal é periodicamente depositado. Quando a adolescência chega, o banco central adiciona a uma conta corrente gratuita.
Os trabalhadores mudam de empresa com total liberdade, levando consigo o capital de seu fundo fiduciário, que eles podem emprestar à empresa em que trabalham ou a outros. Como não há necessidade de turbinar ações com a emissão de capital fictício em larga escala, as finanças tornam-se deliciosamente entediantes (e estáveis). Os Estados eliminam impostos pessoais e de vendas e apenas tributam lucros, terras e atividades corporativas que são prejudiciais ao bem público.
Mas nós já sonhamos o suficiente. A ideia é sugerir, neste novo ano, as maravilhosas possibilidades de uma sociedade verdadeiramente liberal, pós-capitalista e tecnologicamente avançada. Aqueles que se recusarem a imaginar isso serão escravos do absurdo que meu amigo Slavoj Žižek apontou: ter mais facilidade para conceber o fim do mundo do que imaginar a vida após o capitalismo.
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Imaginemos um mundo sem capitalismo. Artigo de Yanis Varoufakis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU