22 Outubro 2019
Para entender a gênese da situação no Chile, o primeiro é descartar que a rebelião social – que já custou a vida de 11 pessoas, a destruição e saque de centenas de supermercados e outros negócios, além da perda de milhões de dólares em danos à infraestrutura – se deve somente ao aumento da passagem do metrô. Uma análise do jornal El Mercurio, o jornal de direita mais influente do país explica assim: “Em um cenário em que as instituições políticas, judiciais, militares e religiosas estão questionadas, surge logo protestos com um vandalismo que ataca os bens de uso comum. Enquanto isso, se mantém a fragmentação política, sem consenso frente a forma de combater a violência”.
A reportagem é de Christian Palma, publicada por Página/12, 22-10-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ao menos onze pessoas morreram desde que começou a rebelião social.
“Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada e ninguém e que está disposto a usar a violência e a delinquência sem nenhum limite, que está disposto a queimar nossos hospitais, metrô, supermercados, com o único propósito de produzir o maior dano possível”. Com essas palavras, o presidente de Chile, Sebastián Piñera tentou acalmar os cidadãos na noite de domingo, quando as manifestações e os panelaços, saqueavam, assaltavam, vandalizavam e destruíam, em multidões dispostas a tudo. A desafortunada frase do mandatário se somou a seguir desacertos comunicacionais dos seus ministros que em vez de acalmar os ânimos, incendiaram mais a pradaria a níveis não vistos desde a ditadura de Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990.
Porém estamos em 2019 e os tempos mudaram, ao menos isso estimam as pessoas que se omitiram aos toques de recolher e às medidas de exceção decretadas para Santiago e as principais cidades do país, mantendo-se nas ruas, alguns protestando de maneira pacífica e outros delinquindo.
“Que se vayan los milicos” e “Chile despertou!”, gritavam os manifestantes na central praça Itália, frente aos Carabineros dispostos em um grande operativo de segurança no centro da capital chilena, que continua sob estado de emergência.
Mais de vinte organizações sociais convocaram a se manifestar em apoio à reivindicação estudantil e denunciar “a repressão e o uso da força desmedida” exercida pelos Carabineros. Para essa quarta-feira convocaram uma greve geral.
“Porque não é somente pelos estudantes, é por nossos pais e mães. Por nossos avós. É por todos os abusos e violações aos direitos humanos, pela repressão contra a luta justa do povo, pela dignidade da vida, digamos forte e claro #PiñeraRenuncia”, defenderam desde a Federação de Estudantes da Universidade do Chile.
Nesse cenário de revolta, onde se mesclam os que reivindicam com razão, como os aposentados, os doentes que não têm cama em um hospital, os jovens que veem que não conseguirão estudar, os que não têm dinheiro para chegar ao fim do mês ou os que os pesos não chegam para pagar um metrô de mais de um dólar, com outros que aproveitam o caos para saquear. Foi um militar que pôs algo de sensatez na manhã da segunda-feira.
O chefe da Defesa Nacional, general Javier Iturriaga, se desvencilhou cedo de Piñera: “sou um homem feliz e na verdade, não estou em guerra com ninguém”. Com isso pôs panos frios à situação e deu um balanço positivo sobre o funcionamento de Santiago, a capital do país durante o início da jornada depois que as seis da manhã se levantou o toque de recolher. Depois de sobrevoar a cidade, o militar assegurou que “estamos muito conformados com o que vimos. Foi um despertar lento da cidade, em calma, em paz, o que nos deixa certamente muito tranquilos, porém ao mesmo tempo muito alerta para solucionar qualquer inconveniente que puderem provocar alguns desadaptados... temos forças necessárias para prever qualquer situação de risco ou algum desmando que puderem produzir durante a manhã”.
Depois, às 16h, o militar se manifestou justamente quando se anunciou que Piñera falaria mais tarde e as manifestações recrudesciam.
“Não corresponde especular sobre uma frase que eu disse hoje pela manhã. Em minhas palavras nunca houve uma dupla intenção”, disse lendo um comunicado ao tempo que assegurou entender “perfeitamente” seu cargo e a “a autoridade máxima que representa o Presidente”. Também anunciou um novo toque de recolher dado que as mobilizações em Santiago e em várias cidades do país não pararam com a presença dos militares nas ruas.
Desde que começaram as mobilizações ao final da semana passada, primeiro com o aumento do valor do metrô e as invasões massivas espontâneas que essa medida causou, os panelaços e posteriores excessos, muita gente, assustada e cansada de ver como se destruía seu entorno, decidiu se armar e cuidar dos seus pertences e instalações privadas. Nesse cenário, Iturriaga pediu à população que “não se defenda por si mesma. Nós somos os responsáveis de dar essa proteção e estamos fazendo todos os esforços para chegar a todos os cantos da cidade”, isso apesar que defenda que os 8.700 uniformizados postos nas ruas “são insuficientes para toda a Região Metropolitana. Sempre haverá atos de vandalismo, aos quais vamos chegar seguramente com maior lentidão, porém estamos fazendo todos os esforços para dar tranquilidade à população”.
Pela noite, Piñera se referiu novamente à crise que se vive no país e anunciou que nesta terça-feira se reunirá com presidentes de partidos políticos de todos os setores. “Esperamos amanhã analisar nossas ideias e as que nos propõem tanto nossos partidos, como os da oposição. Estamos trabalhando em um plano de reconstrução”, destacou o mandatário.
Junto a isso, sustentou que “às vezes falo duro... faço porque me indigna ver o dano e a dor que esta violência provoca”. Ademais, anunciou uma mudança de ministros e uma agenda rápida para sair do caos atual.
“Hoje estamos trabalhando em um conjunto de medidas, para poder potencializar a melhoria das pensões, baixar o preço dos medicamentos, reduzir as listas de espera, melhorar a qualidade na atenção da saúde e também implementar um seguro catastrófico para controlar o que significa o gasto com medicamentos”, adicionou Piñera sem dar maiores detalhes dessas ações.
Em paralelo, o presidente do Senado, Jaime Quintana, pediu para retomar o diálogo para uma nova constituição e que o mundo político faça cargo “da dor profunda da sociedade chilena”.
Nesse sentido se referiu às anteriores declarações belicosas de Piñera: “Não é o caminho. É o momento para volta da sensatez ao Palácio de La Moneda, para que governe. Creio que a expressão do presidente foi o mais longe de governar”, defendeu Quintana. Agregou que “o que temos hoje são fatos de violência, atos de vandalismo, sem nenhuma dúvida. E isso há que condená-lo energicamente”. Mesmo assim, o líder do Senado assegurou que “aqui há uma acumulação de um conjunto de desatenções, de decisões do mundo político provavelmente erradas, seguramente por décadas. Nisso temos que ser justos, não podemos jogar toda a responsabilidade para esse governo”.
Finalmente, consultado pelas vozes que pedem a renúncia de Piñera, Quintana se desvencilhou, assegurando que “esse país decidiu pelo presidente Piñera para governar”.
Outra personalidade que opinou foi a Alta Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet, que exortou o governo de Piñera a trabalhar com todos os setores que ajudam a acalmar a situação que enfrenta o país, pelos protestos que se desenrolaram na última semana.
A ex-presidente pediu para levar os protestos de maneira pacífica, depois de que se noticiou a morte de 11 pessoas durante o fim de semana.
“Exorto ao governo para que trabalhe com todos os setores da sociedade para soluções que contribuam a acalmar a situação e tentem abordar os agravamentos da população no interesse da nação”, disse.
E adicionou que “é essencial que todos os atos que provocaram lesões e mortes, tanto por parte das autoridades como dos manifestantes, sejam submetidos a investigações independentes, imparciais e transparentes”.
Junto a isso, defendeu que “o uso de uma retórica inflamada somente servirá para agravar ainda mais a situação, e se corre o risco de gerar medo na população”.
Desde La Moneda, a ministra de governo, Cecília Pérez, realizou uma coletiva em que abordou as distintas manifestações sociais que se desenvolveram durantes os últimos dias.
Nesse sentido, a secretária de Estado assegurou que nenhum ministro apresentou sua renúncia ao presidente Piñera.
“Não há nenhum ministro que tenha posto seu cargo à disposição do presidente, porque o que nos corresponde, como colaboradores dele, é estar trabalhando em nossos lugares, dado o que estamos vivendo”, indicou.
Consultada pela avaliação e a autocrítica do governo em respeito ao que vive o país, Pérez assegurou que “críticas, autocríticas, nós fazemos todos os dias... E essa é uma diferença de atitude. Isso significa que cada dia poderíamos fazê-lo melhor”, apontou.
A secretária de Estado, na mesma linha do presidente e do ministro do interior Andrés Chadwick responsabilizou “grupos organizados” por trás de alguns fatos de violência que afetaram a capital.
Para entender a gênese da situação no Chile, o primeiro é descartar que a rebelião social – que já custou a vida de 11 pessoas, a destruição e saque de centenas de supermercados e negócios e a perda de milhões de dólares em danos à infraestrutura – se deve somente ao aumento da passagem do metrô. Uma análise do jornal El Mercurio, o jornal de direita mais influente do país, explica assim: “Em um cenário em que as instituições políticas, judiciais, militares e religiosas estão questionadas, surge logo depois dos protestos um vandalismo que ataca os bens de uso comum. Enquanto isso, se mantém a fragmentação política, sem consenso frente à forma de combater a violência”.
Na última pesquisa de Paz Ciudadana divulgada há poucos dias, Carabineros havia alcançado sua nota mais baixa desde 2011. Há cinco meses, outra pesquisa (UDD) mostrava que 81% dos chilenos acham que as instituições estão em crise e revelava uma baixa avaliação das autoridades políticas, do Poder Judicial e Ministério Público, do setor empresarial, das instituições armadas, dos Carabineros e das igrejas. E talvez este último é, segundo distintos setores, um traço que em ocasiões anteriores era chave. Em episódios de crise social, a Igreja Católica tinha uma voz preponderante e assumia um papel de garantir o diálogo ante as demandas dos polos em conflitos. Hoje, apesar do seu chamado à paz, não é um ator central.
Enquanto o Governo e o Parlamento tentam controlar a crise com medidas como o congelamento das tarifas do transporte público, e as Forças Armadas e Carabineros buscam por ordem contra os roubos, não parece haver um olhar transversal sobre como abordar a crise e que reformas são as que devem ser priorizadas.
“O caso do metrô é paradigmático. Mesmo que as invasões tenham iniciado depois do aumento da tarifa desse meio de transporte, o que veio depois, com a queima das estações e a destruição de suas instalações, significou não somente uma perda milionária para a Região Metropolitana: se traduziu em uma espécie de baluarte do progresso de Santiago, que foi se estendendo por distintas comunas nos últimos anos, fica praticamente inservível e deixa milhares de chilenos sem um dos meios de transporte essenciais para a vida na cidade. Essa ‘ferida’, que será difícil de recuperar, significou que vizinhos começam a reagir em defesa dos setores afetados, saindo às ruas e limpando setores que foram gravemente danificados”.
Por outro lado, os distúrbios que se registraram no Chile no final de semana, danificam a imagem de estabilidade do país, indicou The Economist.
“As práticas que sustentam a prosperidade não são populares”, indicou a publicação britânica em uma reportagem em que destacou também que os fatos sacudiram o modelo econômico.
“A violência impactou muitos chilenos. Seu país é um dos mais prósperos e pacíficos da América do Sul. Agora sofreu o tipo de agitação que ocorreu recentemente em Equador, um país muito mais pobre, quando seu governo aumentou os preços do combustível para cumprir com os termos de um acordo com o FMI (também cedeu)”, indicou.
The Economist aponta que os chilenos “não somente estão enojados pelo preço do transporte. Pagam muito pelo sistema de saúde e geralmente têm que esperar longos períodos para ver um médico. A educação pública é pobre. As pensões, manejadas por firmas privadas sob um sistema estabelecido pelo regime de Pinochet, são baixas. A crescente desigualdade aviva a raiva. Em 2017, as rendas do decil mais rico foram 39,1 vezes maiores que a do decil mais pobre, de acordo com uma pesquisa do Ministério de Desenvolvimento Social.
“Piñera até agora falhou em gerar um impulso econômico notável, uma de suas principais promessas de campanha. O crescimento anual foi de somente 1,9% no segundo trimestre de 2019. Sem uma maioria no congresso. Piñera foi lento em conseguir reformas de pensões e tributárias, fazendo com que o governo seja visto como ineficiente”, destaca The Economist.
O meio de comunicação britânica recorda que em breve o Chile será sede da cúpula Apec e da COP25, para a qual o Chile “se mostrava como um bastião de estabilidade na América do Sul. Piñera não tem muito tempo para convencer as lideranças de que isso segue sendo certo”.
Como corolário do dia, o prefeito direitista de Santiago, Felipe Alessandri, solicitou ao governo um “gabinete de unidade com outras forças políticas”, para enfrentar a situação que hoje se vive no país depois dos massivos protestos por direitos sociais.
No Canal 13, o edil fez um chamado ao presidente para que promova mudanças nos ministérios. “O gabinete atual, quando sairmos dessa crise, tem que colocar seus cargos à disposição”, disse.
“Frente a uma situação extrema, como a que estamos vivendo hoje, necessitamos de medidas extremas”, adicionou.
Até à noite se encontravam no toque de recolher as regiões Metropolitana, Antofagasta, Copiapó, Caldera, Vallenar, La Serena y Coquimbo, Valparaíso, Rancagua, Talca, Concepción, Valdivia, Osorno e Puerto Montt.
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Chile. Milhares se rebelam ao toque de recolher - Instituto Humanitas Unisinos - IHU