17 Setembro 2019
"Comoveu-me Bacurau e fortaleceu-me na necessidade de uma união em torno à democracia e ao patriotismo, para que não haja mais políticos corruptos como aquele prefeito, invasores estrangeiros fantasiados de multinacionais, brasileiros que introjetaram racismo, misoginia, avidez, desprezo pelos pobres. Sonhemos com uma grande marcha por um Brasil fraterno, onde não existam comunidades “fora do mapa”. Bacurau é um sinal que nos questiona", escreve Luiz Alberto Gomez de Souza, sociólogo.
Nós, no mundo civilizado ou na academia, poderíamos nos dar o luxo de ser equânimes ou horrorizados diante de momentos de violência gratuita que sobe das imagens terríveis de Bacurau. Seria fácil fazer um julgamento com bemóis tranquilizadores de bom tom. Julgar apressadamente, para ter a boa consciência dos que se julgam bons. “La bonne conscience des bien pensants”, que literalmente vomitou Bernados. “La pétite peur” de Mounier. Os terceiristas são campeões disso. Olhando o mundo de uma janela. Dormem o sonho dos justos desvertebrados. Como é fácil - e irritante - julgar de fora. Lembro mais uma vez a frase de Merleau Ponty: “Os cristãos têm as mãos limpas ... por que não tem mãos”.
Uma coisa são os profetas e os que trazem o sinal antecipado da reconciliação. Indispensáveis, descida entre nós de uma parusia inesperada. Etty Hillesum entrou cantando num campo de extermínio. Sinal liberador. O Padre Kolbe substitui-se por outros prisioneiros que iam aos fornos crematórios. Assim o Padre Dall'Oglio na Síria ou os monges de Tibhirine na Argélia, os jesuítas em El Salvador.
Há que confessar honestamente, esses sinais são indispensáveis, mas às vezes difíceis de entender para os que estão imersos na luta. Lembro honestamente como, nos tempos de militância, certos ou errados, fazíamos a diferença entre a violência dos oprimidos e aquela dos opressores. Tive, em 1963, discussões fortes com o Padre Operário Löeb e com o Padre Voillaume, que fundou os irmãozinhos e as irmãzinhas de Jesus. Este, num encontro em São Vicente, creio, foi duríssimo conosco, militantes da JUC, sem nos ouvir. Ambos do alto de sua estrutura mental francesa racional. Sem empatia. Também um casal não violento que andava pelo mundo, cujo nome não lembro, impressionou-nos pela violência verbal, quase histérica, em pregar a não violência. Uma enorme rigidez. A realidade brasileira concreta parecia não interessar a um discurso abstrato.
Sempre me impressionou a postura compreensiva de Pedro Casaldáliga ou de São Romero diante da luta armada. Dava para ver que não estavam de acordo com certos atos. Mas não julgavam, traziam suavemente exemplos de transcendência. Nunca proselitismo de uma ideologia não violenta.
No meu livro, “O cristão e o mundo”, que escrevi logo depois do golpe, pus uma frase de um poeta francês: “Eu não quero atravessar um campo de batalha com uma flor na mão”. D. Helder, em duas cartas desde Roma, festejou meu livro, mas questionou delicadamente essa frase. Eu hoje lhe dou razão, depois dos cravos em Portugal. Naquele momento era difícil fazê-lo. Confesso honestamente.
Claro que há sinais libertadores necessários que transcendem as conjunturas sangrentas. Alguns padres do terceiro mundo junto aos montoneros: não estavam possivelmente de acordo com certos atos, mas ficaram com eles e alguns deram a vida.
Mas o carisma é um dom. Nem todos o têm. E como vamos julgar o conjunto dos militantes da luta armada? O parâmetro não podem ser esses exemplos irradiantes. E quem atirará a primeira pedra?
Porque digo tudo isso depois de ver o filme Bacurau? Como disse antes, não era um enfrentamento claro entre os do bem com os do mal, como nos livros de aventuras. Como diria Guimarães Rosa, as coisas andam misturadas na travessia.
No filme, a população emparedou vivo o alemão nazista. O andrógino Lunga lutou por seu povo sim, mas com um sadismo violento e doentio, matando a faca um dos invasores, com resquícios de crueldade. Em que cultivo de violência teria crescido, talvez sofrido por sua indefinição sexual... Aprová-lo? Não. Julgá-lo de fora, não posso aceitar. Não se trata de fazer um juízo de valor, mas de tentar entender. E tirar lições. Mas, dirão aqueles bem pensantes, não é compactuar com o mal? Trata-se mais bem de mostrar uma profunda e fraturada contradição na realidade, para dali tratar de extrair a luz.
Cartaz de 'Bacurau', que teve estreia mundial em Cannes (Foto: Divulgação)
O filme não faz atos de julgamento, mas apresenta uma realidade crua. A nós de nos posicionar.
Ele me impactou inclusive por suas contradições. A princípio não apareciam sinais exemplares. Logo descobri, havia sim : a união comovente do povo de Bacurau.
Numa coisa me fortaleceu, a contrario senso. A partir de tanta tragédia, há que pregar a união e o bem. Por isso tenho escrito e repetido que não podemos entrar no clima da raiva e de ódio dessa direita que está aí. Então Francisco, d. Hélder, D. Luciano Mendes de Almeida, o padre Lancelotti e tantos outros são sinais libertadores, exemplaridades que transcendem e transfiguram a realidade. Comoveu-me Bacurau e fortaleceu-me na necessidade de uma união em torno à democracia e ao patriotismo, para que não haja mais políticos corruptos como aquele prefeito, invasores estrangeiros fantasiados de multinacionais, brasileiros que introjetaram racismo, misoginia, avidez, desprezo pelos pobres. Sonhemos com uma grande marcha por um Brasil fraterno, onde não existam comunidades “fora do mapa”. Bacurau é um sinal que nos questiona. Daí tocar-me tão profundamente.
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O mal na condição humana: ainda Bacurau - Instituto Humanitas Unisinos - IHU