18 Julho 2019
Líder de extrema-direita da Hungria usa a mensagem cristã para justificar sua política migratória.
A reportagem é de Shaun Walker, publicada por The Guardian, 14-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A Europa pode ignorar, ou negar, ou lutar contra sua própria identidade e suas raízes cristãs. Mas, ao fazer isso, a sociedade se suicida”, disse László Kiss-Rigó, bispo de Szeged, enquanto se dirigia a Budapeste em uma tarde recente. “E, quanto mais migrantes vierem, mais os valores cristãos serão diluídos.”
Os valores cristãos, ou uma interpretação particular deles, tornaram-se a peça central das mensagens do governo húngaro sob o seu líder de extrema-direita, Viktor Orbán, e Kiss-Rigó opera no cerne dos interesses do primeiro ministro.
Para além do seu papel como bispo, ele também é o presidente do time local de futebol de Szeged, que pertence à Igreja. Ele estava em Budapeste para fazer os acertos para o concerto inaugural de um novo estádio polivalente, que será aberto nos próximos meses, com o show de Plácido Domingo – apenas uma parte do enorme investimento que o louco-por-futebol Orbán fez no esporte.
Sobre a questão da migração, e muito mais, Kiss-Rigó e Orbán estão cantando os cantos do mesmo folheto. O bispo nega, por exemplo, que levantar muros para manter as pessoas fora do país não se encaixa nos valores cristãos. “Todo mundo que bate à sua porta e pede admissão é bem-vindo para ser examinado. Mas você deve se defender das pessoas que querem pular para dentro da sua casa pelo telhado”, disse.
Agora, em seu terceiro mandato consecutivo, Orbán usa cada vez mais a retórica da extrema-direita e antimigrante enquanto cimenta o controle do país de maneira cada vez mais autoritária. Ele costumava descrever o seu sistema como uma “democracia iliberal”, mas recentemente mudou de foco, preferindo chamá-lo de “democracia cristã”. As mensagens do governo ainda se baseiam no fato de deter a imigração e de proteger uma Europa “sitiada” por forasteiros, mas agora chega em embalagens cada vez mais cristãs, tanto em casa quanto no exterior.
Em uma luxuosa festa para marcar o dia da independência dos EUA em Budapeste, Orbán disse aos convidados que, finalmente, com a ascensão de Donald Trump, havia uma “sobreposição de valores” entre os EUA e a Hungria. “Nenhum de nós está disposto a aceitar a hipocrisia da política moderna, que negligencia o fato de que o cristianismo é a religião mais perseguida globalmente”, disse. Em um sinal de quanto as coisas mudaram na relação nos últimos anos, o embaixador de Trump, David Cornstein, chamou Orbán de “parceiro perfeito” e conseguiu que o seu velho amigo, o cantor Paul Anka, fizesse uma serenata ao primeiro-ministro húngaro.
O próprio Trump elogiou Orbán durante uma visita em maio à Casa Branca, que encerrou anos de isolamento em que altos funcionários dos EUA evitavam o governo de Orbán devido a preocupações com o Estado de Direito. “Você tem sido ótimo em relação às comunidades cristãs. Você realmente subiu o nível, e nós apreciamos muito isso”, disse Trump, aparentemente se referindo à cerca que o governo de Orbán construiu ao longo da fronteira sul da Hungria para impedir a entrada de migrantes.
A Igreja Católica húngara, a maior Igreja do país, tem apoiado as duras políticas de Orbán sobre migração, apesar dos frequentes pedidos do papa para que a Europa seja mais tolerante e entenda o sofrimento daqueles que fogem da guerra e da pobreza.
Apenas 15% dos húngaros dizem frequentar a igreja semanalmente, mas 80% se identificam como cristãos. Orbán, que estreou na política no fim dos anos 1980 como um ativista anticomunista com pouco tempo para a religião, encontrou Deus nos anos 1990 e até se casou novamente com sua esposa em uma cerimônia religiosa.
Desde então, ele frequentemente invoca os valores cristãos, mas ultimamente a intensidade tem aumentado.
Agora, praticamente não passa um mês sem que Orbán receba uma delegação de lideranças cristãs de algum lugar do mundo. No ano que vem, Budapeste sediará o Congresso Eucarístico Internacional, um encontro de dezenas de milhares de católicos de todo o mundo, destinado a celebrar a presença real de Jesus na Eucaristia, que será acompanhado por uma grande missa ao ar livre e vários programas de entretenimento. A Ópera Estatal Húngara já anunciou que, em sua próxima temporada, exibirá apenas obras que tratam de temas cristãos.
Mas há um problema com tudo isso: as políticas do governo de Orbán não parecem ser particularmente cristãs. Uma lei recente viu a criminalização da falta de moradia, penalizando os desabrigados, que são uma visão frequente nas passagens subterrâneas e nas praças de Budapeste, em vez de lidar com as causas do problema. Os requerentes de asilo são mantidos em contêineres em zonas de trânsito especiais próximas à cerca da fronteira da Hungria, e a política do país de negar alimentos a requerentes de asilo rejeitados foi rotulada como “uma violação sem precedentes dos direitos humanos na Europa do século XXI” por um grupo de direitos humanos. A mídia controlada pelo governo frequentemente usa uma retórica desumanizante para se referir a migrantes e refugiados.
Kiss-Rigó, que acredita que a maioria dos migrantes na fronteira húngara é mais rica do que a polícia que os repele, e que “apenas uma ínfima minoria” é de refugiados, se desviou de perguntas sobre se ele concordava com os apelos do papa por tolerância.
Outros foram menos reticentes. Um jornalista e membro fundador do partido Fidesz, de Orbán, Zsolt Bayer, disse em 2016 que o papa era “ou um tolo senil ou um canalha” pelos seus sentimentos pró-refugiados.
Nem todos os líderes religiosos da Hungria sentem a mesma coisa. Gábor Iványi, um padre metodista com uma barba branca e comprida, que administra um abrigo para desabrigados no desordenado oitavo distrito de Budapeste, já teve boas relações com Orbán e até oficiou a sua (segunda) cerimônia de casamento (religioso), mas agora descreve as políticas do primeiro-ministro como sendo o oposto dos ensinamentos cristãos. No ano passado, ele tentou distribuir comida para as pessoas que estavam detidas nas zonas de trânsito, mas lhe foi negado o acesso.
Alguns críticos sugerem que os “valores cristãos” são um código para algo completamente diferente. “Não há nenhuma dúvida de que isso é organizado como uma maneira de dizer que ‘cristianismo’ significa ‘Europa branca conservadora’. É um tropo. Diga ao mundo ‘cristão’, e ele diz tudo o mais que você não quer dizer”, disse Michael Ignatieff, reitor da Central European University, que está transferindo parte de suas operações de Budapeste para Viena, depois que o governo negou o seu credenciamento.
Kiss-Rigó talvez concordasse. Ele admitiu que os húngaros são muito menos religiosos do que os poloneses, por exemplo, mas definiu os “valores cristãos” em termos culturais vagos: tanto como o fechamento ao “outro” muçulmano, quanto como qualquer senso de crença religiosa pessoal. Seu autor favorito é o comentarista britânico anti-Islã Douglas Murray, e ele disse que a Europa estava em perigo de se transformar em uma “massa sem rosto facilmente manipulável” por forças obscuras não especificadas.
“Não estou dizendo tudo isso porque eu espero que no próximo domingo mais pessoas venham à igreja. Na Europa, até mesmo um ateu é cristão”, disse.
A política externa da Hungria também vem assumindo um tom cada vez mais cristão. Um programa especial, “Hungary Helps”, foi criado para fornecer ajuda aos cristãos perseguidos na África e no Oriente Médio. “As ajudas devem ser fornecidas onde o problema está, em vez de trazer problemas para a Europa”, disse um porta-voz do programa. Ele disse que havia desembolsado 30 milhões de dólares em ajudas nos últimos dois anos, quase exclusivamente para ajudar comunidades cristãs ou projetos apoiados por grupos cristãos.
Como Budapeste tem recebido críticas crescentes de Bruxelas sobre as preocupações com o Estado de Direito e o retrocesso democrático, Orbán cortejou outros líderes de extrema-direita que usam a retórica cristã. Ele foi o único líder da União Europeia a comparecer à posse do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em janeiro, assim como desfruta de uma relação calorosa com o governo do partido “Lei e Justiça” na Polônia.
Katalin Novák, ministra para a Família, Juventude e Assuntos Internacionais da Hungria, também teve uma agenda de viagens movimentada, encontrando-se com grupos de direita e cristãos em muitos países para mostrar as políticas do governo para melhorar as taxas de natalidade e promover os valores tradicionais. Em março, ela proferiu o discurso principal em um congresso organizado pela embaixada húngara em Washington, intitulada “Making Families Great Again”, da qual participaram vários grupos cristãos norte-americanos de direita.
“Nós achamos que os problemas da Europa podem ser rastreados até a negação das raízes cristãs. Nós vemos a má interpretação da tolerância muitas vezes. Ser tolerante não deveria significar desistir da própria identidade”, disse Novák, em uma resposta por escrito.
Esses pontos de discussão foram bem recebidos por alguns republicanos de direita, melhorando a posição de Orbán em Washington, o que significa que algumas autoridades acabaram ficando mais desconfiadas em relação a ONGs e ativistas da oposição do que ao governo de Orbán. “Envolver-se nas palavras de ser uma nação cristã, com valores tradicionais, criou um subtexto de que os críticos não estão legitimamente preocupados com a deterioração do Estado de Direito, mas sim motivados por uma agenda progressista e pró-LGBT”, disse Scott Cullinane, que até o ano passado era um membro técnico de um subcomitê do Congresso que lidava com a Hungria.
A posição de Orbán na Europa parece enfraquecida após as recentes eleições europeias e uma série de escândalos entre possíveis aliados de extrema-direita, o que significa que a aprovação de Trump e dos republicanos de direita é uma bênção útil.
“Estamos muito felizes com a presença de alguns políticos como Orbán e Trump, que realmente representam os valores que nós, cristãos, acreditamos serem importantes”, disse Kiss-Rigó, quando perguntado se seria plausível sustentar o presidente dos EUA como um exemplo de virtude cristã. Para ele, assim como para Orbán, a reação contra o liberalismo é mais importante do que qualquer virtude cristã específica.
“Eu não acho que ele será canonizado no catolicismo, mas esse não é o ponto. Depois da tentativa de ditadura do niilismo, manipulada pelos representantes do ‘politicamente correto’, sua personalidade é refrescante.”
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Orbán recorre a um cristianismo distorcido para governar a Hungria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU