28 Fevereiro 2019
Questionados pelas descobertas sobre a sensibilidade e a inteligência dos animais, os crentes são levados a questionar o lugar dos animais na Criação.
A reportagem é de Jean-Claude Noyé, publicada por La Vie, 21-02-2019. A tradução é de André Langer.
No princípio era... o Gênesis, e seu tão controverso primeiro capítulo: “Então Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e que ele domine os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra’” (Gênesis 1, 26). Em “As raízes históricas da nossa crise ecológica”, um contundente artigo publicado em 1967, o historiador Lynn White usou este versículo para denunciar a responsabilidade do cristianismo pela destruição da vida, qualificado como “a religião mais antropocêntrica”. Uma acusação retomada por muitos militantes ambientais, sem nuances – porque a questão é um pouco mais complicada.
“Devemos distinguir entre o que diz a Escritura e sua interpretação. Os autores dos relatos da Criação consideravam o domínio humano sobre os animais como uma dominação parcial, incomensurável com a crueldade que existe hoje na criação e no abate industriais”, diz Didier Luciani, professor de Antigo Testamento na Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), editor de um Cahiers Évangiles (nº 183) intitulado “Os animais na Bíblia”. Também devemos esclarecer que o texto bíblico não pode ser objeto de uma leitura unívoca, porque é eminentemente plural.
Assim, no Gênesis, é preciso distinguir entre, por um lado, o período em que, vegetarianos, os seres humanos viviam em paz com toda a criação – revestidos de uma dignidade real, os seres humanos têm uma relação especial com os animais, tidos como sujeitos e não objetos – e, por outro lado, o período pós-diluviano, inaugurado por Noé e sua arca. Depois que os humanos introduziram a desordem, pelo pecado, os animais se revoltam contra eles. Deus, por misericórdia, dá aos humanos o direito de matá-los e comer sua carne. Daí este versículo: “Todos os animais da terra temerão e respeitarão vocês” (Gênesis 9, 2).
Categórica, esta palavra legitima o uso excessivo dos seres vivos? “Certamente não”, ainda considera Didier Luciani, não sem citar este ou aquele trecho de outros textos bíblicos para apoiar sua proposição. “A importância dos versículos favoráveis aos animais no Antigo Testamento poderia ter permitido o desenvolvimento de outra concepção mais respeitosa”, confirma por sua vez Éric Baratay. Segundo este especialista da história da relação entre animais e humanos, autor de L’Église et l’animal (France, XVIIe-XXe siècle) [A Igreja e o animal. (França, séculos XVII-XX)] (Cerf, 1996), se a ruptura ontológica entre os dois está ausente dos primeiros livros do Antigo Testamento, aparece em textos posteriores. No livro da Sabedoria, por exemplo.
À luz do pensamento grego, dominado pela escala dos seres vivos, estabelecida por Demócrito e Platão e formalizada por Aristóteles, e que, dos invertebrados ao homem, estabelece-se uma hierarquia. E na esteira do dualismo platônico, impõe-se gradualmente a noção de imortalidade da alma – distinta do corpo. Uma imortalidade reservada apenas aos humanos? O Novo Testamento não resolve a questão. Por um lado, ele evoca os laços dos animais com Deus (Mateus 6, 26), a expectativa de um retorno à paz paradisíaca entre as criaturas (Marcos 1, 13) e a evangelização de todas estas (Marcos 16, 15). Por outro lado, afirma a superioridade intrínseca do ser humano (Marcos 5, 11-16; Atos 10, 12-14; 2 Pedro 2, 12-22). Uma ambivalência que encontramos em Paulo. Em sua Epístola aos Romanos (8, 19-22) o apóstolo diz: “A criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus” e “a criação toda geme e sofre dores de parte até agora”. No entanto, é o mesmo que coloca enfaticamente o ser humano no centro de tudo, porque ele, e somente ele, é feito à imagem do Criador.
A Igreja adotará sob a influência dos Padres gregos e latinos, depois de Santo Agostinho (354-430), o postulado de uma radical preeminência do humano. Com acentos mais ou menos reducionistas. Mas a causa é agora ouvida: se o animal é dotado de uma alma, só pode ser sensível e ligada ao corpo. E quando Descartes desenvolve, no século XVII, sua teoria do animal-máquina que não sente nada, o clero católico se deixa seduzir por algum tempo.
Uma clara ruptura com outras criaturas que se explica também pela vontade do clero de combater qualquer panteísmo ou totemismo. Certamente há exceções, aqui e ali, de grandes figuras espirituais. Em primeiro lugar, a figura emblemática quanto radical de São Francisco de Assis. No entanto, a Igreja Católica manteve-se majoritariamente fiel até o seu último Catecismo oficial (1992) à linha de fundo formulada por Tomás de Aquino (1225-1274), segundo a qual “na hierarquia dos seres, aqueles que são os menos perfeitos (os animais) são criados para aqueles que são os mais perfeitos (os homens)”.
As primeiras vozes discordantes começam a surgir entre os protestantes. Especialmente na Inglaterra, onde grupos como os Quakers afirmam, a partir do século XVIII, que os animais têm uma alma imortal e que as faculdades desenvolvidas não justificam em nada que sejam brutalizados. “Na década de 1970, Andrew Linzey, sacerdote anglicano e figura proeminente no movimento vegetariano cristão, expôs as razões teológicas pelas quais a submissão dos animais pelo homem está em desacordo com a mensagem de Cristo. Sua obra, que inclui Teologia Animal (One Voice, 2010), e seu centro de ética animal em Oxford tiveram um impacto significativo, inclusive entre teólogos católicos”, diz Éric Charmetant, cujo livro Les Animaux [Os Animais] será lançado em maio próximo pelas Éditions Fidélités. Padre jesuíta, este professor de filosofia é um dos pensadores católicos com uma sensibilidade ambiental aguçada que refletem ao mesmo tempo uma “maneira mais teocentrada e ecocentrada de olhar os nossos amigos animais e seu lugar no projeto de Deus para a criação”.
Ao fazê-lo, insere-se nos passos de uma longa tradição, iniciada por Hélène Bastaire e Jean Bastaire, a quem devemos uma Lettre à François d'Assise sur la fraternité cosmique [Carta a Francisco de Assis sobre a fraternidade cósmica] (Parole et Silence, 2001) e um livro fundador, Pour une Écologie Chrétienne [Por uma Ecologia Cristã] (Cerf, 2004). Mas também, nos passos de teólogos como Albert de Pury (Homme et animal Dieu les créa. Les animaux et l'Ancien Testament, Labor & Fides, 1993) [Homem e animal Deus os criou. Os animais e o Antigo Testamento], François Euvé (Christianisme et Nature. Une création à faire fructifier, Vie Chrétienne, 2004) [Cristianismo e Natureza. Uma criação a fazer frutificar] ou Christophe Boureux (Dieu est aussi jardinier, Cerf, 2014) [Deus também é um jardineiro]. Sem mencionar Leonardo Boff, teólogo da libertação que, como tal, sofreu a ira do Vaticano. Este frade menor franciscano sempre reivindicou um novo paradigma para a relação dos seres humanos com a Terra e com a natureza. E argumenta que o Grito da Terra, Grito dos Pobres (um dos seus muitos livros) é um só.
Uma retórica retomada pelo Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si’ (2015). O Pontífice explica que a cultura do lixo faz com que os próprios seres humanos se tornem descartáveis. E que essa violência contra os animais é uma violência feita a nós mesmos. “Somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus”, escreve (69). Sua rejeição de qualquer posição despótica em relação aos animais é acompanhada pela “convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo” (16) e seu convite para superar o excesso de dualismo que caracteriza a nossa visão de mundo.
“O que está em jogo, antes de qualquer coisa, é encontrar uma sensibilidade toda franciscana de fraternidade com os seres vivos. Diante da catástrofe ecológica, qualquer mudança de porte supõe que paremos de nos sentir separados e de querer transformar tudo”, comentou, enquanto isso, o filósofo Dominique Bourg. Não sem se alegrar com o fato de que o Papa tenha denunciado a interpretação estreita do Gênesis que – infelizmente! – se impôs no cristianismo latino. E chamar para a emergência de uma espiritualidade “em condições de contribuir para que o dado natural seja finalmente reabilitado”. Em suma, praticar uma ecoespiritualidade como foi delineada na Laudato Si’.
O Papa Francisco, se compreendemos bem, dá implicitamente um cheque em branco aos trabalhos de pensadores cristãos da ecologia. E encoraja a desenvolver ainda mais esta teologia do animal “que não foi feita, nem sequer começou a ser feita, e será a tarefa dos cristãos no século XXI”, como previu o filósofo católico Jean Guitton, em 1986, no Colóquio Direitos dos Animais e o Pensamento Cristão, no Institut de France. Todos agora estão de acordo: esta teologia é impulsionada pelos avanços da ciência, em particular da etologia, que estuda cientificamente o comportamento das espécies animais, incluindo os seres humanos. Também é influenciada pela evolução das mentalidades.
O objetivo? Permitir uma perspectiva cristã sobre os animais não humanos, que lhes dê todo o espaço, considere a riqueza de sua vida emocional, de sua emergência como sujeitos individuais e não apenas sociais. Sem cair em alguns excessos dos antiespecistas. Em suma, trata-se de encontrar uma posição que encontre, novamente, a especificidade do animal humano, defina a peculiaridade da sua cultura e linguagem e sua posição no “plano” de Deus. E de nos esclarecer sobre a ajuda que nós podemos esperar dos não humanos para entrar em uma relação mais contemplativa e menos predatória com o mundo. Ou, muito concretamente, o que pensar sobre o veganismo e outros alertas lançados contra o consumo de carne. Essas são questões que, in fine, questionam as nossas representações da transcendência do Deus Criador e de sua imanência. E a articulação entre essas duas dimensões. Em outras palavras, uma revolução quase copernicana...
O vegetarianismo exclui o consumo de carne animal, mas não de outros produtos de origem animal (mel, ovos, produtos lácteos).
O veganismo é um regime alimentar mais rigoroso, que exclui qualquer produto de origem animal.
O veganismo estende sua abordagem ao conjunto do seu consumo, recusando a compra de roupas feitas de couro, lã, pele ou seda, ou de cosméticos que foram testados em animais.
O flexitarianismo designa um regime alimentar onívoro, mas reduzindo o consumo de proteínas de origem animal. Os flexitarianos são vegetarianos na maior parte do tempo.
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Que lugar os cristãos dão aos animais? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU