04 Setembro 2018
Choramos o Museu Nacional, como a morte de Marielle. Mas não nos enganemos: outras tragédias virão, enquanto nossa geração não superar a revanche das elites.
O artigo é de Paolo Colosso, bacharel em Filosofia pela Unicamp, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, publicado por Outras Palavras, 03-09-2018.
Os últimos dois anos de crise econômica, social e humanitária são dolorosos e mesmo traumáticos, mas também didáticos. São muitos os dias que queremos esquecidos, mas será tarefa de nossa geração lembrar que esse período marcou a falência completa de uma combinação conservadora da gestão pública.
A descida morro abaixo já tem diversos capítulos, dos números pífios da recuperação econômica e do emprego, passando por vexames internacionais, volta de doenças tropicais antes extintas, venda de empresas públicas a valores abaixo do mercado, até os impasses colocados pela Emenda Constitucional 95 (a que congela por vinte anos o gasto social), como o que vive o CNPQ – Conselho Nacional de Pesquisa e Tecnologia. Mas a decrepitude se materializa especialmente num lugar e numa cena bem identificáveis: a cidade do Rio de Janeiro com exército nas ruas e o mais antigo museu do país em chamas. Trata-se do retrato mais gritante dos descaminhos da agenda de retrocessos.
A intervenção militar, ordenada sob decreto federal desde meados de fevereiro, naquele momento gozou de um impacto positivo na opinião pública, porque passava a imagem forte de retomada do controle do Estado numa cidade sob o risco do caos e da violência generalizada. Dois meses depois, um relatório já mostrava o exibicionismo ineficaz: 70 operações, envolvendo 40 mil homens, com aumento de tiroteios, apreenderam 140 armas. Em relação ao ano anterior, o número de chacinas dobrou.
Após seis meses, multiplicam-se o número de operações sem objetivos claros e efeitos negativos, integrando exército e polícia. O caso mais marcante fora o do menino Marcos Vinícius, morto por balas disparadas de helicóptero, quando caminhava para a da escola, vestindo uniforme, vítima de uma operação na favela da Maré. O número de mortes por policiais continua a subir. Na carnificina exibicionista é investido um montante de cerca de 1,2 bilhões de reais.
No domingo, assistimos ao incêndio do imponente edifício do Museu Nacional, que integra a estrutura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cujo acervo guardava mais de 20 milhões de itens. Entre eles, os mais relevantes registros das ciências naturais e antropológicas brasileiras. Os números publicados pela Folha de S.Paulo mostram que os recursos destinados para a instituição em 2018 seriam 50% menores do que a média dos dois anos anteriores. [1] Desde maio ,o diretor do museu cobrava responsabilidade do governo federal e tornava públicas as más condições do prédio. [2]
O reitor da UFRJ, por sua vez, admitiu que a falta de verbas inviabilizou obras de manutenção e melhoria na infraestrutura, o que incluiria instalação de sistema de combate a incêndio no edifício do período imperial. Após o incêndio, o reitor relatou ainda más condições para os bombeiros conterem as chamas: com falta de água em hidrantes próximos, os agentes chamaram caminhões-pipa e correram a um lago das proximidades. [3]
Os casos paradigmáticos estão unidos pela ineficiência estatal de uma governabilidade conservadora. A combinação é composta, primeiro, pelo discurso da crise – mencionada assim, de modo genérico, para que possa servir melhor de acordo com a ocasião – que justifica o ataque aos direitos sociais, convertido em precarização do trabalho, cortes na saúde, na educação e na ciência. É conservadora, entre outras, porque a “austeridade” é imposta a cidadãos comuns e com bens cujo valor é menos mensurável em termos de capital – como a vida e o conhecimento. Mas há uma generosidade no perdão de dívidas de grandes empresas, nos subsídios sem contrapartidas, no reajuste salarial às castas burocráticas e na violência institucional como saída para a crise.
Conservadora porque os recursos públicos se concentram nas classes que historicamente gozam de privilégios, empurrando as camadas médias de volta à subalternidade e os pobres para a extrema vulnerabilidade. Pesquisa, ciência e tecnologia são, por sua vez, relegados à secundarização e ao esquecimento. Voltam à pauta apenas por conta dos eventos dramáticos, como o do CNPQ e o dessa semana com o Museu Nacional.
O segundo elemento basilar dessa combinação é explorar o medo de que a situação pode piorar em breve, mas os dirigentes tem saídas rápidas. Estas se valem dos estigmas mais incrustrados no imaginário social, criando bodes expiatórios para as desgraças: os negros, os pobres que não se esforçaram o suficiente, os criminosos que moram em favelas, os desviados que moram nas ruas, os migrantes do nordeste e da Venezuela, todos que ou são vagabundos ou violentos por natureza.
Essa combinação perigosa, ora cínica ora fantasmática, mas sempre pautada no exibicionismo rançoso, teve ar de legitimidade em 2016, ainda tem voz e rosto no período eleitoral, mas o decorrer da história não deixa dúvidas sobre sua falência e caducidade. Seu horizonte produz o esfacelamento completo da sociedade.
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Em chamas, a governabilidade conservadora - Instituto Humanitas Unisinos - IHU