06 Abril 2018
Os dados da ONU apontam o recrudescimento da violência policial na América Latina. A morte de Marielle Franco representa a luta contra as políticas militarizadas de segurança pública aplicadas pelos Estados do continente.
Os dados e o panorama da segurança pública nas Américas são apresentados no artigo intitulado Marielle y las muertes institucionales en América Latina, do criminologista venezuelano Keymer Ávila, publicado no dia 2-4-2018, pelo Contrapunto.com. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Segundo dados do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime — UNODC (2013), a América Central ocupou o segundo lugar no ranking dos índices mais altos de homicídios registrados, em sub-regiões. A América do Sul ficou em terceiro lugar, e o Caribe em quarto. A Organização Pan-americana da Saúde — OPAS e a Organização Mundial da Saúde — OMS, coincidem com esses dados estimando a taxa de homicídios regionais em 28,5 homicídios por 100 mil habitantes. Trata-se de uma taxa que quadruplica a do resto do mundo e é o dobro de países em desenvolvimento na África.
Que estão fazendo nossos Sistemas Penais ante esses altos índices de violência? Estão contribuindo ao seu incremento ou à sua diminuição?
Tal como assinala o recente comunicado da Associação Latino-americana de Direito Penal e Criminologia — ALPEC, diversos pesquisadores e acadêmicos que estudam o comportamento dos sistemas penais em nossos países veem com preocupação o auge das políticas de mão dura, expressadas nas raízes policiais que não respeitam nenhum limite legal, nem institucional, e que tem o mais humildes e racializados como objetivos militares. Na Nossa América, países como Brasil, Venezuela, Colômbia, Honduras, El Salvador e México, destacam-se pela militarização de suas políticas de segurança cidadã, assim como pelas milhares de mortes que suas forças de segurança tem gerado nos últimos anos. A denúncia de casos graves como o assassinato de Marielle Franco, Bertha Cáceres, Sabino Romero, os líderes sociais colombianos que lutam pelo direito à terra; as desaparições dos 43 estudantes de Ayotzinapa, Alcedo Mora ou Santiago Maldonado são apenas a ponta do iceberg.
Nesta matéria, os patriotismos negativos para ver quais ocupam os desonrosos primeiros lugares, poderiam ser um exercício suscetível de ser instrumentalizado pelos interesses partidários. Porém, ademais, também é complicado fazê-lo com a devida rigorosidade, e disso se encarregam os poderes que estão por trás de toda violência. O acesso às cifras delitivas em geral, e de homicídios em particular, é difícil e nos casos em que estão acessíveis, a qualidade do dado não é confiável. Essa situação é muito mais crítica com os casos de violência policial, especialmente com os homicídios cometidos por funcionários dos órgãos de segurança. Essas dificuldades não são particularidades de alguns países da América Latina, existem em toda a região e também em países como Estados Unidos, onde o debate da violência polícia contra os negros está evidenciada (mais de 40% das vítimas são afrodescendentes e latinos, esta contagem se faz pela divulgação na imprensa, pois não há cifras oficiais confiáveis [1]).
Se vamos ao sul e nos referimos a casos de mortes nas mãos das forças de segurança do Estado, ou “letalidade policial”, tomamos como base uma pesquisa recente de Ignácio Cano e Anneke Osse, e a contrastamos com as últimas informações oficiais dadas pelas autoridades venezuelanas, Brasil, Jamaica, El Salvador e Venezuela estariam entre os países com os órgãos de segurança mais letais do continente. A situação em vários países da América Central e México [2] tampouco é alentadora.
Uma ferramenta adicional que é muito útil para fazer comparações entre países é o uso da taxa de morte por intervenção legal por 100 mil habitantes, que pode se calcular pelos dados de saúde que se encontram na categoria de Classificação Internacional de Enfermidades da OMS (CIE-10). Seguindo este método, de um grupo de 8 países (Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Honduras, México, Peru e Venezuela) estudados por Fondevila e Meneses (2014), com dados para o ano de 2011, Venezuela ocupava o terceiro lugar com uma taxa de 0,411; o primeiro lugar tinha Honduras (1,012), o segundo Colômbia (0,553) [3] e o quarto Brasil (0,396) [4] . Esses dados pareciam estabelecer uma relação entre as taxas de homicídios nacionais e a taxa de mortes devido a intervenção legal.
Parece que o modelo que alguns governos latino-americanos queriam impor é o de Filipinas, onde se leva a cabo a operação conhecida como ”Tokhang” que significa literalmente “golpeia e implora”. Este país conta em torno de 9.400 pessoas executadas desde o ano de 1988 até hoje. Se for feita uma revisão minuciosas, estas cifras podem ser superadas facilmente por alguns de nossos países.
A ativista Marielle Franco, assassinada há alguns dias pelas balas da Polícia Federal do Brasil, lutava justamente contra essas práticas, questionava valentemente o massacre por derramamento de sangue que se aplica no seu país. Esses excessos somente tem nomes bombásticos e propagandísticos: Unidade de Polícia Pacificadora — UPP no Brasil, Organización de Liberácion del Pueblo — OLP na Venezuela, “gatilho fácil” na Argentina. Em alguns casos, esses poderes das forças de segurança do Estado chegam a expressar nos atos legislativos, como se pretende fazer com a Ley de Seguridad Interior no México ou com as reformas do Código de Polícia na Colômbia. A melhor honra à memória de Marielle, mulher que simboliza as lutas de tantos setores excluídos e vulneráveis na Nossa América, é levantar suas bandeiras contra o abuso de poder em cada um de nossos países, especialmente o que se expressa de maneira letal contra nossos jovens dos setores menores favorecidos, que constituem nossas grandes maiorias. Basta já!
Notas:
[1] A contagem que faz o jornal The Guardian é de 1.146 pessoas em 2015 e de 1.092 para 2016.
[2] A guerra contra as drogas decretada desde 1995 por parte do governo, que foi continuada e recrudescida por gestões posteriores, tem trazido como consequência o aumento de homicídios, de desaparições e de violência armada no México (BARRÓN, 2012)
[3] Segundo a Comissão Colombiana de Juristas (2011) entre os anos 2002 e 2008, registrou-se a morte de umas 8 mil pessoas nas mãos das forças de segurança do Estado, ou que, ao menos, contaram com o apoio ou tolerância por parte deste; assim como umas 2.410 desaparições forçadas (p.80) Tudo isso sem entrar com a análise das denúncias segundo as quais uma de cada três eram falsos positivos.
[4] Segundo um informe da ONU, de 2016, o Brasil apresentou o número absoluto mais alto de casos de balas perdidas pela intervenção legal, seguido de México, Colômbia e Venezuela.
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Marielle e as mortes institucionais na América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU