Quando a Igreja denuncia o seu demônio

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24 Agosto 2018

"A Igreja que denuncia o seu demônio presta um tremendo serviço para um Ocidente em que o fundamentalismo cristianista volta para fomentar outros demônios do nacionalismo, da xenofobia, do antissemitismo". 

A opinião é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, publicado por La Repubblica, em 21-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O Relatório do Grande Júri da Pensilvânia sobre a pedofilia no clero católico, divulgado na semana passada, documenta um desastre ético de enormes proporções. Mil casos de abusos a partir dos quais emergem como esses anos de denúncias tenham destampado apenas uma primeira camada da gangrena moral aninhada nos bispos e no clero.

Em 2005, com um pudico eufemismo, o cardeal Ratzinger falou da "imundície da Igreja"; mas os estupradores em série entre os clérigo, os bispos capazes de repetir o catecismo de cor e capazes de ignorar os gemidos de seus filhos dilacerados, eram muito mais. Eram um sistema ("o" sistema, como teria dito Yves Congar) que nestes últimos anos estremeceu as igrejas, enquanto o papado expressava algumas frases como a da "tolerância zero", uma vergonha tardia irrelevante para as vítimas, medidas cada vez mais severas - mesmo correndo o risco de expor a reputação de um padre não afeito a calúnias irreparáveis.

O "ritual da vergonha" incluído nas viagens papais, com o pontífice que ouve transtornado os abusados e as abusadas, tomou o caminho da resposta institucional. O Papa menos "canonista" da história aceitou sem medo a primeira demissão em massa de um episcopado (Chile), retomou o primeiro solidéu cardinalício por abuso (McCarrick). E agora foi além da criminalização de um país (como havia feito com Bento XVI com a Irlanda) e sem esperar que outra comissão (aquele que pregou Pell na Austrália) forneça detalhes que agora todo mundo pode calcular por extensão estatística.

Agora a leitura sistêmica chegou e está contida em um novo tipo de magistério: uma "carta do Papa ao Povo de Deus", que inicia com "Um membro sofre?" - com uma citação de 1 Coríntios 12. Uma carta que escapa aos simplismos obscenos. É um simplismo obsceno aquele do Bispo de Madison, que justamente dois dias atrás tinha dito que esses crimes decorriam da tolerância com uma "subcultura gay" que tinha atraído para o clero pessoas "desordenadas", eco de uma tese extremamente infeliz enunciada, em 2010, pelo Cardeal Bertone exatamente no Chile...

Francisco finalmente confronta o crime no plano eclesiológico: e o confia àquele sujeito teológico que é o povo de Deus. Ao povo Francisco diz sem rodeios que é o "clericalismo", que incubou essas atrocidades, não um excesso ou falta de moral. Foi uma concepção do poder e do poder religioso, a ser curada com "jejum e oração": isto é, aqueles remédios que no Evangelho Jesus recomenda aos discípulos quando eles lhe confessam que não conseguiram expulsar alguns demônios enfurecidos.

A Igreja que denuncia o seu demônio presta um tremendo serviço para um Ocidente em que o fundamentalismo cristianista volta para fomentar outros demônios do nacionalismo, da xenofobia, do antissemitismo.

E depois de jejuar e orar, ele também poderá e terá que reunir suas forças e se questionar sobre como restaurar o brilho ao ministério, sem o qual não há vida cristã. Para libertar-se da ideologia do seminário, de um fetichismo do celibato que os padres saudáveis nunca tiveram, da homofobia que levou homossexuais católicos não ativos a procurar sublimações no poder ou esconderem-se por trás de proclamações sobre a família "tradicional", para tudo isso não basta a autoridade.

É preciso o povo de Deus e a sinodalidade que representa a sua relação com o Espírito. Quando terminar o Sínodo, gárrulo e inofensivo, sobre os "jovens", é preciso repensar sobre isso.

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