13 Junho 2018
O falecido bispo de La Rioja será o primeiro de muitos mártires da Guerra Suja na Argentina, cujos sacrifícios também esperam reconhecimento.
A reportagem é de Stefan Gigacz, publicada por La Croix International, 12-06-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Concluindo uma jornada pessoal de 40 anos, Papa Francisco promulgou um decreto no dia 9 de junho reconhecendo o martírio do bispo Enrique Angelelli Carletti e três de seus colegas de trabalho, o padre francês Fidei Donum, Gabriel Longueville, o padre franciscano conventual Carlos de Dios Murias e o leigo Wenceslao Pedernera.
Bispo Enrique Angelelli. Foto: www.josephcardijn.com
Os quatro foram mortos por assassinos ligados aos militares durante a "Guerra Suja" na Argentina durante a década de 1970.
No entanto, foi o próprio Papa Francisco, então arcebispo de Buenos Aires, que impulsionou o caso do bispo Angelelli em um discurso de 2006 comemorando o 40º aniversário da morte do bispo.
Citando Tertuliano, "o sangue dos mártires é a semente da Igreja", o cardeal Bergoglio observou que havia "pedras lançadas contra ele [Angelelli], porque pregou o Evangelho e derramou seu sangue por ele."
Foi o primeiro reconhecimento público feito pela Igreja em relação a real forma da morte de Angelelli. O governo argentino havia considerado como simples acidente de carro até 2014, quando os oficiais militares envolvidos no assassinato do bispo foram finalmente condenados.
Assim como Papa Francisco, Angelelli era filho de imigrantes italianos. Nascido na cidade de Córdoba, em 17 de junho de 1923, ingressou no seminário menor de Nossa Senhora de Loreto com 15 anos de idade antes de ser enviado para completar seus estudos em Roma.
Lá, em um encontro decisivo, conheceu o padre belga e fundador do Juventude Operária Católica (JOC-YCW), Joseph Cardijn. Após sua ordenação e retorno à Argentina em 1949, imediatamente implementou o JOC na diocese de Córdoba.
Nesta tarefa, fez parceria com um jovem leigo, José Serapio Palacio, que pouco tempo depois se tornou um líder nacional (junto com sua futura esposa Amalia Castanos).
Angelelli, entretanto, tinha se tornado conhecido por seu trabalho com a JOC e também com seus alunos universitários, na JUC (Juventude Universitária Católica). Pode até ser que Cardijn tinham suas próprias ambições para Angelelli talvez como seu eventual sucessor na JOC Internacional.
Mas João XXIII jogou um balde água fria em seus planos quando, em dezembro de 1960, nomeou Angelelli, então com 37 anos, bispo auxiliar de Córdoba.
"A JOC argentina perdeu um dos seus mais fervorosos capelães", escreveram Cardijn e o presidente da JOC Internacional, o canadense Romeo Maione, em uma carta de 1961 destinada a Angelelli, "mas ganhou um bispo que preza pelos outros (bispos) que também implementaram a JOC na Argentina e na América Latina."
Enquanto isso, Angelelli não perdeu tempo em anunciar a linha que ele manteria ao longo de seu episcopado.
"Com um ouvido escuto o Evangelho e com o outro escuto as pessoas.”
Infelizmente, não demorou muito antes de Angelelli entrar em desacordo com o arcebispo Ramón José Castellano, que lhe pediu para abandonar o uso de sua motocicleta, uma solicitação que o novo bispo recusou. Logo, outros conflitos mais sérios também surgiram.
Angelelli repudiou um pedido dos proprietários católicos da fábrica local para punir padres que estavam apoiando trabalhadores em suas reivindicações por melhores salários e condições.
"Se continuarem estas injustiças, algum dia párocos e outros líderes enfrentarão o pelotão de fuzilamento", advertiu Angelelli.
Menos de dois anos após sua nomeação, Angelelli viajou à Roma para a primeira sessão do Vaticano II em outubro de 1962. O argentino era o padre mais jovem do Concílio.
Lá, ele trabalhou com outros bispos da JOC da América Latina, incluindo Manuel Larrain (Chile), Helder Câmara (Brasil), Ramon Bogarin (Paraguai), Marcos McGrath (Panamá) e Leonidas Proaño (Equador).
Juntos, eles promoveram uma concepção de apostolado leigo orientado para a transformação do mundo à luz do Evangelho e uma Igreja ascendente focada nas pessoas e especialmente nos pobres.
Uma vez terminado, Angelelli trabalhou duro para implementar decisões e orientações do Concílio. Em 1966, foi eleito vice-presidente da nova Comissão Episcopal Especial para o Planejamento Pastoral (COEPAL), onde atuou como liderança no desenvolvimento da versão Argentina da teologia da libertação, conhecida como a "teologia do povo".
Em 1968, deu seu apoio tácito ao lançamento do radical Movimiento de Sacerdotes para el Tercer Mundo (MTSM).
Ao contrário de muitos bispos argentinos conservadores, ele apoiou as decisões adotadas pela Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM) na reunião em Medellín, Colômbia, em 1968. Em 1971, presidiu a Comissão dos bispos argentinos de preparação para o Sínodo sobre a Justiça no Mundo.
Não é de surpreender que o trabalho de Angelelli continuasse a atrair muita oposição. Em meio a crescentes conflitos em Córdoba, foi nomeado em agosto de 1968 como bispo da diocese de La Rioja.
Lá no sopé da Cordilheira dos Andes, Angelelli fez de sua prioridade pastoral chegar aos agricultores e trabalhadores. Ele não hesitou em se envolver em questões trabalhistas, incluindo a fundação de um sindicato para empregadas domésticas e a promoção das cooperativas.
Ele apoiou um programa de reforma agrária que rapidamente atraiu conflito com os proprietários locais. Em 1973, um grupo de viticultores locais entrou em uma Igreja onde ele havia celebrado missa, o denunciando como um marxista.
Foi durante este período de conflito que o jovem jesuíta Bergoglio visitou La Rioja pregando um retiro e ficou profundamente impressionado com Angelelli.
Mas agora a sorte estava lançada enquanto a Argentina aprofundava mais num conflito social. Em dezembro de 1975, seu colaborador mais antigo, Jose Palacio, agora colaborador leigo da JOC Internacional, que tinha acabado de voltar de uma reunião de trabalhadores na Colômbia, "desapareceu". Neste momento, Angelelli certamente sabia que também era um homem marcado.
Sete meses depois, em 18 de julho de 1976, foi a vez dos padres Longueville e Murios de La Rioja serem sequestrados e mortos. Uma semana depois, Wenceslao Pedernera, organizador do Movimento Rural Católico, foi morto a tiros em casa na frente de sua família.
Finalmente, no dia 4 de agosto, quando retornava do funeral dos padres assassinados, um carro cortou a frente do automóvel de Angelelli, que tombou. O padre ficou inconsciente e foi fuzilado por assassinos agindo sob as ordens do chefe do exército, Luciano Benjamin Menéndez e ex-vice comodoro Luis Fernando Estrella.
O decreto do Papa Francisco reconhece apropriadamente o martírio deles como cristãos. Eles serão os primeiros de muitos mártires da Guerra Suja na Argentina, cujos sacrifícios também aguardam reconhecimento. Enquanto isso, Angelelli talvez possa ser lembrado como o primeiro mártir do Vaticano II.
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Angelelli, o primeiro mártir do Vaticano II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU