13 Junho 2018
Jakarewyj exalou o último suspiro em sua rede, em algum dia de 2017. Sua irmã Amakaria a encontrou inerte; não soube dizer quando havia partido. Com sua morte, essa mulher indígena Awá pôs fim a uma vida de luta durante a qual só pediu para que a deixassem viver isolada na Terra Indígena Caru, em plena Amazônia brasileira. Passou seus últimos dois anos como refém de gripe e da tuberculose, doenças respiratórias trazidas por madeireiros ilegais que extraem seus preciosos recursos naturais. Em outras partes do mundo essas doenças podem ser tratadas e curadas, mas para ela foram mortais porque seu sistema imunológico não estava preparado.
A reportagem é de Lola Hierro, publicada por El País, 11-06-2018.
Restam no mundo mais de uma centena de povos indígenas que não têm contato regular ou pacífico com a sociedade não indígena ou dominante. Eles estão principalmente na Amazônia, no Chaco do Paraguai, nas Ilhas Andaman da Índia e na Papua ocidental. “Não sabemos muito sobre eles, porque estão isolados, mas sabemos que dependem completamente de suas terras para sobreviver”, diz a pesquisadora Sarah Shenker, da Survival International. A organização representa e defende os direitos dos povos indígenas e tem simpatizantes em mais de 100 países. Shenker está imersa agora na campanha global Deixe-os Viver, que conscientiza sobre a importância de deixar isolado quem o deseja e proteger suas terras de ameaças do exterior.
Como Jakarewyj. Essa mulher, que ao morrer rondava os 50 anos, era uma das poucas 100 indígenas Awá não contatadas que ainda restam no planeta. Seu exemplo é o mais recente –não o único– das consequências de forçar essas populações a entrar em contato com o mundo exterior.
Jakarewyj viveu durante muitos anos com a irmã Amakaria e o filho, Irahoa, como caçadoras-coletoras nômades. “Até que adoeceram e foram obrigadas a se aproximar dos Awá contatados, que moram em residências fixas”. Em 2015 Shenker visitou a comunidade, apenas dois meses depois da chegada dessa família, e encontrou as duas mulheres prostradas em suas redes, muito magras e debilitadas, incapazes de falar ou se mover. “Foi horrível, eu não sou médica, mas era óbvio que estavam morrendo. Tirei uma foto delas para mostrar ao mundo o que acontece depois do primeiro contato e para pressionar o Governo a fazer algo rápido”.
Os índios não contatados são os mais vulneráveis do mundo, mas a Survival estima que os Awá estejam na situação mais delicada neste momento. Uma das principais ameaças é a perda de seu território devido ao desmatamento, pois o tráfego ilegal de madeira está na ordem do dia. “Teoricamente não é permitido e há multas e prisão, mas na prática nestas áreas os madeireiros gozam de impunidade, porque sabem que podem continuar trabalhando e que o pior que lhes pode acontecer é serem parados e terem de pagar uma pequena multa”, diz Shenker.
Mas eles não são os únicos: as empresas petrolíferas que querem explorar o território dos povos nativos e a construção de infraestruturas têm impactos devastadores. “Chamamos isso de efeito espinha de peixe: você constrói uma estrada e de ambos os lados surgem outras que vão entrando ilegalmente no território, com pessoas que constroem suas casas, seus cultivos, seus negócios...”, explica a pesquisadora. Os traficantes de drogas e até os missionários também são um problema para essas minorias.
Nos últimos tempos, a situação política do Brasil é um motivo a mais de preocupação. A Constituição de 1988 garante aos indígenas uma estrutura jurídica e política própria, além do direito às terras que tradicionalmente ocupam. Mas sempre houve pressões sobre elas porque são as de maior biodiversidade do mundo –“eles sabem cuidar muito bem delas, são os melhores guardiães porque estamos falando de seu lar”, observa Shenker– e seus recursos, os mais cobiçados. Agora a pressão é maior porque mais de 50% do Congresso brasileiro é formado por políticos anti-indígenas. “Querem estimular grandes projetos do agronegócio que afetam quantidades enormes de terras. Esses políticos estão tentando mudar a Constituição para que seja mais fácil abrir as terras indígenas a essa exploração. Isso poderia aniquilar povos inteiros”, resume a pesquisadora.
Todas essas ameaças levam ao fim do isolamento dessas minorias, com consequências nefastas. “Mais de 50% podem morrer pouco tempo depois de um primeiro contato por causa de doenças como a gripe ou o sarampo, contra as quais não têm imunidade”, diz a pesquisadora. Também pela violência exercida pelos invasores, porque os veem como um obstáculo e não os querem ali. “Aproximam-se para ver se os matam ou então os ameaçam”. Quando isso acontece, são os próprios indígenas que às vezes fazem contato porque temem por sua vida. Há poucos casos em que decidem integrar-se a uma sociedade industrializada. “Se for voluntário, está bem, não somos contra, lutamos para que eles possam decidir. É seu direito legal e moral, seu direito à autodeterminação.” E ainda assim, continua sendo perigoso para suas vidas. “O Governo deveria ter um plano de ação para poder mandar rapidamente equipes de saúde, mas isso não está acontecendo”, lamenta Shenker.
O caso das irmãs awás representou um grande alívio naquele momento, porque foram salvas. As fotos que Shenker tirou deram a volta ao mundo e centenas de milhares de simpatizantes enviaram emails urgentes às autoridades. O Governo mandou equipes de saúde para atendê-las, mas não puderam porque as encontraram quase mortas, por isso tiveram de transferi-las de helicóptero para a capital, a cidade de São Luis. “Imagine mulheres que nunca tinham conhecido outra forma de vida além da floresta, não tinham visitado uma cidade... O que isso significou para elas”, reflete a ativista. Permaneceram três meses em um hospital, em estado muito grave. Para Shenker foi quase um milagre terem se recuperado.
Quando voltaram a Caru, Jakarewyj e Amakaria decidiram regressar à floresta e as suas vidas nômades encobrindo seu rastro porque não queriam que outros awás as seguissem. Só Irahoa ficou na comunidade porque se casou. “É um exemplo muito claro da determinação dos indígenas isolados: vemos muitos exemplos de que não querem o contato: apontam com suas flechas para cima quando há aviões passando, deixam flechas cruzadas nas trilhas da selva...”, descreve Shenker.
Em um momento em que a maioria dos países se comprometeu a cumprir a Agenda 2030 de desenvolvimento, que inclui objetivos como reduzir a mortalidade materna ou conseguir o acesso universal a atendimento de saúde e à educação, pensar em que deve ser aberta uma exceção pode parecer sem sentido. De fato, até 1987 a política no Brasil era a de contatar as minorias para “pacificá-las” e disso estavam encarregados profissionais especializados da Fundação Nacional do Índio (Funai). Mas foram tantas as mortes que essa estratégia deu uma guinada de 180 graus. Um dos mais firmes defensores da mudança é Sidney Possuelo, que como membro da Funai organizou numerosas expedições durante 40 anos e foi testemunha de tantas tragédias que, no final, se deu conta de que o mundo externo não era benéfico para eles. “Acreditava que seria possível fazer isso sem dor ou mortes e organizei uma das frentes mais bem equipadas que a Funai teve até hoje. Preparei tudo (...). Pensei: 'Não deixarem que nem um só índio morra’. E houve o contato, as doenças chegaram e os índios morreram”, relatou em um livro.
“Levar um remédio ou dotá-los de educação formal não os ajuda se não vão aproveitar isso porque morreram. Por outro lado, é um argumento arrogante porque dá como certo que os não índios sabem melhor como eles deveriam viver”, protesta a pesquisadora. “Mas eles têm seu modo, seus remédios e sua forma de educar as crianças naquilo que vão precisar dos adultos: aprendem a caçar, a pescar a interpretar os sinais do tempo... Aprendem as histórias orais de seus povos”, argumenta. “Estamos em 2018 e eles continuam resistindo, apesar de tudo, esse é o argumento mais revelador.”
Esta história não tem um final feliz. Quando Shenker regressou no ano passado para visitar os awás, encontrou somente uma delas. Amakaria contou que sua irmã voltou a ficar doente e passava todo o tempo em sua rede, deitada, enquanto ela buscava alimento para as duas. Um dia, quando tentava caçar um jacaré, escutou um tiro. “Um grupo de homens, madeireiros certamente porque são os únicos não-índios da região, se aproximou da rede e um deles disparou no peito de Jakarewyi achando que estava dormindo”, relata a pesquisadora, com pesar. Para a Survival parece provável que a mulher estivesse morta havia algum tempo e que tenha morrido por causa das doenças contraídas no passado, “mas a crueldade dos invasores fica estampada nesse disparo no corpo sem vida dessa mulher prostrada”, comunicou na época a entidade.
“Depois da morte da irmã, Amakaria vagou sem rumo durante semanas ou meses pela selva, sem saber o que fazer e muito triste”, afirma Shenker. Agora, a mulher vive na comunidade com outros awás como ela porque não quer ficar sozinha”. E agora também sua história e a de sua irmã devem de novo dar a volta ao mundo para que a sociedade entenda por que é preciso respeitar o modo de vida das minorias isoladas. Palavra de awá.
Ao awás que vivem na floresta de Arariboia, uma ilha verde em um mar de desmatamento, compartilham o território com outro povo indígena recém-contatado: os guajajara. São 13.000 pessoas que vivem em comunidades e decidiram formar grupos de homens autodenominados Guardiães da Amazônia, coma missão de patrulhar sua terra, procurar os madeireiros e prendê-los. “Tomam seus caminhões cheios de madeira ilegal e as motosserras. Às vezes os queimam...”, relata a pesquisadora Sarah Shenker, da Survival International.
Os guardiães fazem esse trabalho de proteção da Amazônia para sua terra, para suas famílias e para os awás isolados. “É um trabalho muito interessante e inspirador porque não deveria ser sua responsabilidade. O Governo do Brasil é responsável, segundo a lei brasileira e a lei internacional, pela proteção dessas terra, mas não o faz.” No entanto, quem faz esse trabalho enfrente grandes perigos: três deles foram assassinados em 2016, recebem frequentes ameaças de morte e suas casas foram queimadas em mais de uma ocasião. “Mas dizem que não vão desistir, por eles e pelos awás, pois consideram que estão sofrendo um genocídio”, conta Shenker.
Quando uma comunidade indígena é forçada a se integrar à sociedade nacional, muitos deles terminam doentes, como Jakarewyi e sua irmã. Podem sofrer desnutrição e diabetes ao mudar sua dieta de uma natural baseada em caça, pesca, fruta e mel, ao passar a viver da ajuda humanitária do Governo consomem arroz, açúcar e outros alimentos não tão saudáveis para eles. Ao sair de seu entorno também perdem sua identidade e isso os confunde, os deprime e os leva ao alcoolismo e suicídio. “Vemos taxas muito altas entre os índios cujas terras foram roubadas, como os guaranis”, resume Shenker.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Mortes recentes de índios isolados trazem à tona velhos traumas do contato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU