25 Abril 2018
A revista America, dos jesuítas americanos, publica a íntegra do importante pronunciamento de Robert W. McElroy, bispo de San Diego, EUA, proferido na Loyola University, Chicago.
O texto é publicado por America, 23-04-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Há cinco anos, Jorge Bergoglio tornou-se Francisco e escolheu um nome que nenhum Papa tinha usado antes em sua eleição, em março de 2013. A escolha do nome indicava a direção para onde levaria a Igreja global. Ao abraçar os pobres, buscar a não violência e cuidar de toda a criação de Deus, o Papa Francisco levou o legado do grande São Francisco de Assis ao coração da proclamação da Igreja no mundo moderno.
Portanto, é muito produtivo avaliar como as contribuições do Papa à doutrina social católica têm refletido as três prioridades Franciscanas da pobreza, da paz e do planeta ao analisar estes primeiros cinco anos de pontificado. De que forma a liderança do primeiro papa do Novo Mundo enriqueceu ou alterou o corpo da doutrina social católica? O que no papado ou na perspectiva de Francisco gerou tanta oposição, principalmente dentro dos Estados Unidos? Como caracterizar a missão que o Papa abraçou em nome da justiça econômica, da construção da paz e do cuidado com a nossa casa comum?
O ponto de partida para responder a essas questões é reconhecer que a relação entre os ensinamentos do Papa Francisco e de seus antecessores não tem, fundamentalmente, um caráter de continuidade ou descontinuidade. Na verdade, os ensinamentos do Papa Francisco sobre pobreza, paz e meio ambiente e a tradição herdada têm uma relação fundamental de continuidade, mas que se reflete em um novo olhar.
Este novo olhar reflete essencialmente a experiência da Igreja na América Latina. Quem critica o Papa Francisco considera uma limitação, um viés que impede o Papa de ver as questões centrais de justiça econômica, guerra e paz e o meio ambiente no contexto da Igreja universal. Mas São João Paulo II certamente enriqueceu aspectos-chave da doutrina social católica a partir de uma perspectiva profundamente enraizada na experiência da Igreja oriental europeia do comunismo. E os críticos do Papa Francisco não expressam oposição a essa perspectiva regional e histórica.
Além disso, a Igreja da América Latina representa mais de 40% dos católicos do mundo. Juntamente com as populações católicas da Ásia e da África subsahariana, que enfrentam desafios econômicos e ambientais semelhantes, a Igreja do sul global constitui mais de dois terços da Igreja universal. A perspectiva do Papa argentino na doutrina social é a compartilhada pela maioria dos católicos.
Há quatro grandes elementos que estruturam a forma com que Francisco compreende a tradição católica em questões sobre a pobreza, a paz e o planeta.
O primeiro - e principal - elemento é o reconhecimento de que a doutrina social católica deve ser amplamente indutiva. Mais especificamente, o Papa emprega o método “ver, julgar e agir”, que baseia a doutrina e a ação no mundo como ele é, e não como se imagina ou deseja que fosse. Essa é a metodologia central usada pela Igreja da América Latina para discernir seu chamado para dar respostas em áreas desde a evangelização até a formação espiritual e a justiça social.
O método ver, julgar e agir provoca a reflexão teológica vendo o mundo como realmente é, ponderando as implicações à luz da fé e do Evangelho e promovendo ações em harmonia com essas implicações. Como afirma o o brilhante documento final do encontro dos bispos da América Latina e do Caribe de 2007 em Aparecida, no Brasil, "este método nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização com sentido crítico; e, em consequência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo”.
O Papa Francisco também aborda a tradição do pensamento social católico por meio do tema da exclusão. A marginalização, vista como negação do direito de participar de forma significativa na vida política, econômica, social e cultural, tem sido um foco primordial da doutrina social católica. O conceito de exclusão empregado pelo Papa Francisco é mais amplo do que a marginalização: reflete as privações inerentes que não apenas relegam populações inteiras às margens da sociedade, mas que acabam por excluí-las totalmente. Na marcante terminologia do Papa Francisco, essas pessoas são vítimas de uma “cultura do descarte", ou seja, são descartadas de qualquer participação significativa na sociedade.
A história colonial e o neocolonialismo que ainda perdura, em muitos níveis, na América Latina, colocaram o Papa em sintonia com o quanto graves desigualdades econômicas e de poder inevitavelmente geram padrões de exclusão que esmagam o espírito humano.
Considerando essa história, a Igreja latino-americana desconfia da globalização. O documento de Aparecida dos bispos afirma, explicitamente: "Na globalização, a dinâmica do mercado absolutiza com facilidade a eficácia e a produtividade como valores reguladores de todas as relações humanas... A globalização, tal como está configurada atualmente, não é capaz de interpretar e reagir em função de valores objetivos que se encontram além do mercado e que constituem o mais importante da vida humana: a verdade, a justiça, o amor, e muito especialmente a dignidade e os direitos de todos, inclusive daqueles que vivem à margem do próprio mercado".
O terceiro elemento do novo olhar do Papa na doutrina social católica é o reconhecimento de que o desenvolvimento humano integral inclui a proteção da Terra, a nossa casa comum. A América Latina abriga a Amazônia, uma região tão rica em biodiversidade que é literalmente vital para a preservação da vida na Terra. Francisco tem observado a destruição da Amazônia de perto, pois está acontecendo uma catástrofe ambiental que pode sufocar a Terra e ao mesmo tempo destruir culturas antigas e empobrecer grandes populações.
A América Latina é um exemplo clássico da necessidade de mudança de sistemas econômicos que internalizam os lucros e externalizam os custos,. Também exemplifica que um compromisso profundo com o meio ambiente, informado pelo consenso científico mundial, pode dar início ao processo de recuperação da saúde da nossa casa comum. O método ver, julgar e agir revela um abuso contínuo da criação que Deus confiou a nós, e nenhuma realidade alternativa pintada pelas indústrias extrativas do país consegue ocultar esse fato.
O elemento final do novo olhar do Papa Francisco sobre a doutrina católica em relação à pobreza, à paz e ao planeta é a reintegração da não violência ao coração da doutrina sobre guerra e paz. Na igreja primitiva, o pacifismo era tema dominante da teologia cristã. Em grande parte da história da Igreja, no entanto, tem sido considerado uma escolha heroica, embora irrealista, uma excêntrica parte de nosso patrimônio que foi deslocado pela lógica poderosa de Santo Agostinho da guerra como último recurso.
Na "Mensagem pelo Dia Mundial da Paz" de 2017, o Papa Francisco retomou a tradição do pacifismo como uma grande corrente teológica na vida da Igreja, reiterando a afirmação da comunidade cristã dos primórdios de que o chamado de Cristo para amar o próximo e o inimigo da mesma forma não condiz com recorrer à guerra. Francisco mostra que, apesar de ter vivido em uma época marcada pela violência, Jesus pregava a não resistência. Será que tentar construir uma política poderosa e realista de não violência, com base na realidade e nas palavras do próprio Senhor não é o mínimo que a Igreja pode fazer?
Os primeiros cinco anos de pontificado de Francisco sugerem que, com seu novo olhar, o Papa encarou uma missão diferente em cada uma das três principais prioridades do legado franciscano.
Pobreza: em relação à pobreza, embarcou numa missão de execução e renovação. Mais especificamente, ele tem procurado promulgar a doutrina moral católica considerando as forças da globalização que estão transformando nossas economias, sociedades e culturas. De forma muito real, o Papa Francisco aborda a globalização com a mesma perspectiva que caracterizava a crítica à industrialização do Papa Leão XIII em “Rerum Novarum”, em 1891. Francisco não tem a ilusão de que a globalização pode ser revertida. Na verdade, tem convicção de que o enorme tumulto causado pela globalização na vida econômica, familiar e cultural requer a criação de novas grandes estruturas de justiça social para atenuar as consequências e afirmações da globalização que devastaram tantas esferas da família humana.
O grande tema da preferência pelos pobres, que ressoa na doutrina católica desde a época de Paulo VI, é o aspecto central desta renovação. O ver, julgar e agir, método em harmonia com a exortação do Concílio Vaticano II de olhar com cuidado para os "sinais dos tempos", é o caminho para uma reforma significativa. E as questões de participação e marginalização, tão importantes para o pensamento social de São João Paulo II e do Papa Bento XVI, têm sido amplificadas pelo prisma de exclusão, que, em última análise, é determinante no que o Papa Francisco pensa sobre a moralidade da globalização. Mesmo que se reflita no distinto olhar lançado pelo Papa Francisco sobre a pobreza à doutrina social católica, seu projeto, fundamentalmente, é continuar a longa trajetória do compromisso da Igreja de defender os pobres, usando os ricos recursos doutrinários criados nos últimos 125 anos.
Paz: Se a relação entre as iniciativas do Papa Francisco e a tradição herdada por ele pode ser vista em termos de continuidade e renovação na área da justiça econômica e da pobreza, a missão do Papa Francisco com a paz pode ser vista como uma recuperação. Em um nível, Francisco dá continuidade à trajetória dos papas modernos de apertar as exigências morais da teoria da guerra justa em relação à criação de políticas nucleares e declaração de guerra. A ousada decisão tomada pelo Papa em novembro do ano passado de considerar moralmente inaceitável a posse de armas nucleares é um sinal dessa continuidade.
Mas, em um nível mais básico, as iniciativas do Papa Francisco na área da não violência e da construção da paz constituem uma importante mudança na orientação da doutrina social católica para dar verdadeiro poder às antigas tradições pacifistas. A base dessa mudança é o método ver, julgar e agir, considerando o sucesso comprovado da não violência em conflitos civis ao redor do mundo, nos quais a tentativa de usar a violência não teve sucesso. Apontando para a viabilidade e superioridade moral da não violência, esta recuperação da tradição de paz traz uma complementação necessária a uma tradição de guerra justa que deve se tornar cada vez mais restritiva para preservar sua reivindicação de ser autêntica ética cristã.
Planeta: Os ensinamentos do Papa Francisco sobre o meio ambiente fazem parte de uma missão que não é de renovação nem de recuperação, mas de completa transformação. Durante grande parte da história da Igreja, a doutrina social sobre o meio ambiente refletiu questões de domínio e dominação. Ambos São João Paulo II e o Papa Bento XVI alertaram sobre o bem-estar do planeta em seus textos sobre a depredação da Terra. Mas coube ao Papa Francisco, em “Laudato Si’,”, construir uma teologia da criação de tirar o fôlego, numa época em que a própria Terra está em perigo.
O Papa Francisco tem recursos únicos para realizar essa transformação. Como o primeiro Papa filho da América Latina, ele instintivamente entende a riqueza da biodiversidade como a força vital do planeta e testemunha a degradação da Terra e a destruição dos povos causadas pela exploração desenfreada de recursos.
"Laudato Si’” é uma oração; um aviso; uma afirmação do poder e da benevolência de Deus; uma análise das forças de contenção e das más decisões que levaram o planeta ao ponto de risco gigantesco. Acima de tudo, é a recriação da doutrina católica sobre a natureza da pessoa humana em relação à Terra, a nossa casa comum.
A base da renovação, recuperação e transformação iniciadas pelo Papa Francisco nos ensinamentos católicos sobre a pobreza, a paz e o planeta é a tradição doutrinal da Igreja. Ainda, usam a perspectiva enriquecedora da Igreja da América do Sul — onde atualmente vive a maioria dos católicos no mundo — para lidar com os temas da exclusão, do pacifismo, da preservação da nossa casa comum e das enormes ameaças impostas à humanidade pela globalização. São Francisco de Assis deve estar orgulhoso.
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Papa Francisco lança um novo olhar sobre a pobreza, a paz e o planeta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU