14 Março 2013
Esta entrevista com o então cardeal foi realizada em Roma em fevereiro de 2012, por ocasião do consistório pelos documentos que vazaram do Vaticano.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no jornal La Stampa, 14-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No recente consistório, que ocorreu em meio às polêmicas do vazamento de documentos da Secretaria de Estado vaticana, Bento XVI quis que os cardeais falassem sobre a nova evangelização. E o papa instou os purpurados ao espírito de serviço e à humildade.
O arcebispo de Buenos Aires, o jesuíta Jorge Mario Bergoglio, é uma das figuras de destaque do episcopado latino-americano. Na sua diocese, em Buenos Aires, há muito tempo a Igreja sai pelas ruas, pelas praças, pelas estações para evangelizar e administrar os sacramentos.
Eis a entrevista.
Como o senhor vê a decisão do papa de convocar um Ano da Fé e de insistir na nova evangelização?
Bento XVI insiste em indicar como prioritária a renovação da fé e apresenta a fé como um presente a se transmitir, um dom a se oferecer, a compartilhar um ato de gratuidade. Não uma posse, mas sim uma missão. Essa prioridade indicada pelo papa tem uma dimensão de memória: com o Ano da Fé, fazemos memória do dom recebido. E isso se apoia sobre três pilares: a memória do fato de termos sido escolhidos, a memória da promessa que nos foi feita e da aliança que Deus fez conosco. Somos chamados a renovar a aliança, a nossa pertença ao povo fiel a Deus.
O que significa evangelizar em um contexto como o da América Latina?
O contexto é que surgiu da quinta conferência dos bispos da América Latina, que foi realizada em Aparecida, em 2007. Ele nos convocou a uma missão continental, todo o continente esteve em estado de missão. Foram feitos e se fazem programas, mas, acima de tudo, há o aspecto paradigmático: toda a atividade normal da Igreja foi estabelecida em vista da missão. Isso implica uma tensão muito forte entre o centro e a periferia, entre a paróquia e o bairro. É preciso sair de nós mesmos, ir para a periferia. É preciso evitar a doença espiritual da Igreja autorreferencial: quando ela se torna autorreferencial, a Igreja adoece. É verdade que saindo pelas ruas, como acontece com todo homem e toda mulher, podem acontecer acidentes. Mas se a Igreja permanece fechada em si mesma, autorreferencial, ela envelhece. E, entre uma Igreja acidentada que sai pelas ruas e uma Igreja doente de autorreferencialidade, eu não tenho dúvidas de preferir a primeira.
Qual é a sua experiência a esse propósito na Argentina e, particularmente, em Buenos Aires?
Buscamos o contato com as famílias que não frequentam a paróquia. Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e que recebe, buscamos ser uma Igreja que sai de si mesma e vai ao encontro dos homens e das mulheres que não a frequentam, que não a conhecem, que foram embora, que são indiferentes. Organizamos missões nas praças, aquelas em que se reúnem muitas pessoas: rezamos, celebramos a missa, propomos o batismo que administramos depois de uma breve preparação. É o estilo das paróquias e da própria diocese. Além disso, também buscamos ir ao encontro das pessoas distantes através da mídia digital, da rede e das mensagens curtas.
No discurso ao consistório e na homilia da missa de domingo, 19 de fevereiro, o papa insistiu no fato de que o cardinalato é um serviço e no fato de que a Igreja não se faz sozinha. Como o senhor comenta as palavras de Bento XVI?
Fiquei impressionado com a imagem evocada pelo papa, que falou de Tiago e João, e das tensões internas entre os primeiros seguidores de Jesus sobre quem deveria ser o primeiro. Isso nos indica que certas atitudes, certas discussões, sempre ocorreram na Igreja, desde o início. E isso não deve nos escandalizar. O cardinalato é um serviço, não é uma honraria. A vaidade, o orgulhar-se de si mesmo é uma atitude da mundanidade espiritual, que é o pior pecado na Igreja.
É uma afirmação que se encontra nas páginas finais do livro Méditation sur l’Église, de Henri De Lubac. A mundanidade espiritual é um antropocentrismo religioso que tem aspectos gnósticos. O carreirismo, a busca de avanços faz parte plenamente dessa mundanidade espiritual. Eu costumo dizer para exemplificar a realidade da vaidade: olhem para o pavão, como ele é bonito se você o vê de frente. Mas se você der alguns passos e o ver de trás, você capta a realidade... Quem cede a essa vaidade autorreferencial, no fundo, esconde uma miséria muito grande.
Em que consiste o autêntico serviço do cardeal?
Os cardeais não são os agentes de uma ONG, mas sim servidores do Senhor, sob a inspiração do Espírito Santo, que é Aquele que faz a verdadeira diferença entre os carismas e que, ao mesmo tempo, na Igreja, leva-os à unidade. O cardeal deve entrar na dinâmica da diferença dos carismas e, ao mesmo tempo, olhar para a unidade. Tendo consciência de que o autor seja da diferença, seja da unidade, é o próprio Espírito Santo. Um cardeal que não entra nessa dinâmica não me parece ser um cardeal segundo o que Bento XVI pede.
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''Os males da Igreja se chamam vaidade e carreirismo''. Entrevista com Jorge Mario Bergoglio, atual Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU