14 Março 2018
“Francisco transformou Bergoglio, acentuou os traços mais latino-americanistas do então cardeal de Buenos Aires e radicalizou sua perspectiva em favor dos pobres, dos excluídos e de seus direitos. E isto desagradou o poder que, hoje, se diz decepcionado ou diretamente escandalizado com o Papa”, escreve o jornalista argentino Washington Uranga, em artigo publicado por Página/12, 13-03-2018. A tradução é do Cepat.
Embora para os mais próximos, que conheciam seus pensamentos e tinham seguido sua trajetória, tenha sido difícil imaginar, naquele dia 13 de março de 2013, o “plano de governo” que Jorge Bergoglio tinha em sua mente, quando foi ungido como Francisco, máxima autoridade da Igreja Católica, o tempo, mas sobretudo os gestos de Francisco, foram deixando claro a proposta e as pegadas que o primeiro papa latino-americano desejava estabelecer como marca de sua gestão. Foi assim que sua primeira viagem político-pastoral o levou até Lampedusa, para se encontrar com os imigrantes ilegais expulsos de seu território, que fogem desesperados em busca da vida. A eles e ao mundo, reafirmou com um gesto de proximidade e solidariedade sua prédica em favor dos pobres, da vida e dos direitos.
E, a partir daí, o Papa começou a construir sua condição de líder universal, para além das próprias fronteiras da Igreja Católica, onde até hoje muitos setores o resistem. Pode-se dizer que Bergoglio é líder em um mundo com lideranças em crise. Contudo, também é certo que para se construir nesse lugar o Papa escolheu a atitude do diálogo e do encontro com os diferentes, a partir da realidade dos pobres e reivindicando seus direitos.
É possível dizer que o discurso pronunciado pelo Papa, no dia 9 de julho de 2015, no auditório plural dos movimentos sociais reunidos em Cochabamba (Bolívia), cujo eixo foi sua proclamação dos “três T” (terra, teto, trabalho), constitui uma espécie de síntese doutrinal que, em outro tom e com diferente matiz, Francisco expressou de maneira sistemática e com base teológica na Laudato Si’. Uma grande soma que, na contracorrente das forças triunfantes do capitalismo mundial, se ergue em favor dos pobres e suas organizações, critica os poderes hegemônicos e lança um chamado à paz. Uma militância pacifista que Bergoglio apoia com suas ações e as do Vaticano em cada lugar de conflito que surja em um canto da terra.
Francisco é hoje um líder incômodo para os centros de poder mundial, mas, ao mesmo tempo, uma figura próxima e popular entre os marginalizados. E construiu essa identidade se apoiando na história recente, também no pensamento teológico e na experiência pastoral da Igreja estabelecida na América Latina.
Também de modo estratégico, Bergoglio decidiu se consolidar fora dos limites da Igreja, concretizar o velho anseio do Concílio Vaticano II de dialogar com a sociedade a partir das realidades, os problemas e também os questionamentos que daí surgem para a instituição católica. Aqueles que o conhecem intimamente afirmam que o Papa está convencido que é ali, entre os preteridos pela sociedade atual e seus poderes, entre os pobres e os excluídos, onde há o terreno mais fértil para o anúncio genuíno da mensagem de Jesus Cristo.
Curiosamente – sobretudo para aqueles que o olham de longe –, as maiores resistências para Francisco estão na própria estrutura eclesiástica e, paradoxalmente, na Argentina, seu país.
Na Argentina porque aqueles que mais se alegraram com sua nomeação foram os setores católicos mais conservadores, empresários e representantes do poder, que viram em Francisco a continuidade de um cardeal Bergoglio que, sem o considerar como do próprio meio, nunca lhes resultou incômodo. Mas, Francisco transformou Bergoglio, acentuou os traços mais latino-americanistas do então cardeal de Buenos Aires e radicalizou sua perspectiva em favor dos pobres, dos excluídos e de seus direitos. E isto desagradou o poder que, hoje, se diz decepcionado ou diretamente escandalizado com o Papa.
Francisco apoiou tudo isto com sua política dos gestos e com uma mensagem simples, reta e compreensível para todo o povo, uma virtude que também não costumava exibir durante sua passagem pelo arcebispado de Buenos Aires.
E na instituição eclesiástica, esse lugar a partir do qual os integrantes do colégio cardinalício foram buscar um papa latino-americano e selecionaram um argentino, porque sendo tal era o “mais parecido” aos europeus, as resistências (também as intrigas e as conspirações) estão aumentando. Os setores mais conservadores não deixam de rasgar as vestes diante do que consideram excessivas concessões de Bergoglio, tanto em suas mensagens, como em seu estilo pastoral. Francisco não se inquieta por isso. Conhece os problemas que enfrenta e utiliza a energia e o apoio que lhe chega de fora para batalhar na própria Igreja. Contudo, sabe que tem uma tarefa para fazer: avançar e aprofundar a reforma da Igreja para uma forma de governo e de participação mais sinodal, mais horizontal e plural, que renove a vida do catolicismo. Essa é, provavelmente, a grande tarefa pendente e a próxima que o Papa decide encarar como legado de seu pontificado. Para alcançar este propósito, não se deve descartar nem sequer o chamado a um novo concílio ecumênico.
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As pegadas deixadas pelo Papa latino-americano. Artigo de Washington Uranga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU