08 Março 2018
O crescimento do movimento feminista nas últimas décadas não passou despercebido pela indústria da publicidade: nos últimos 25 anos, os marqueteiros aperfeiçoaram o conceito de "femvertising" - palavra formada pela junção de dois termos em inglês: "feminist" (feminista) e "advertising" (propaganda). Trata-se, na prática, de usar a retórica do movimento que defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres para vender produtos ou serviços.
A reportagem é publicada por BBC Brasil, 08-03-2018.
Outra definição: o femvertising é a "propaganda que usa pessoas, mensagens e imagens ligadas ao movimento pró-mulheres para promover o protagonismo de mulheres e garotas".
É inegável que o mundo da propaganda de hoje é muito menos machista do que era, por exemplo, na década de 1960 - o ambiente misógino de uma agência de publicidade da época foi retratado, por exemplo, na série televisiva Mad Men (2007-2015). Mesmo assim, a publicidade às vezes falha miseravelmente na tarefa de entender as aspirações e desejos das mulheres.
A BBC reuniu alguns casos recentes em que a publicidade "entendeu tudo errado" sobre as mulheres.
A Diageo é a maior produtora mundial de bebidas destiladas, e dona de algumas das principais marcas desse tipo de produto. Recentemente, se envolveu em uma polêmica ao lançar nos EUA uma edição limitada do uísque Johnnie Walker - o objetivo era celebrar o Mês da Mulher (março) nos EUA.
A empresa achou que seria uma boa ideia criar a "Jane Walker": versão feminina do famoso personagem de botas, cartola e gravata borboleta que figura no rótulo das garrafas de Red Label, Black Label e outros títulos da marca.
A Diageo anunciou "Jane Walker" como "mais um símbolo do compromisso da marca com o progresso", e prometeu doar US$ 1 de cada garrafa vendida para a caridade. Mas o que a companhia conseguiu foi uma saraivada de críticas, acentuadas depois que a vice-presidente da empresa nos EUA, Stephanie Jacoby, disse que a nova personagem era uma oportunidade de atrair as mulheres para o consumo de uísque.
"O uísque é um tipo de bebida visto como 'intimidador' pelas mulheres, disse ela à agência de notícias Bloomberg.
Jacoby e o "Jane Walker" sofreram críticas nas redes sociais, que reverberaram também no programa de TV The Late Show, um dos mais vistos dos EUA.
"Mulheres do mundo inteiro dirão: 'finalmente uma marca que me entende!'. Garotas, fiquem de olho porque vem aí o gin 'Jill Beam' e o uísque 'Jacqueline Daniel's'", brincou o comediante Stephen Colbert na atração, referindo-se às marcas Jim Beam e Jack Daniel's.
Segundo o site especializado scotchwhisky.com, Jacoby disse recentemente que a campanha foi "mal compreendida".
"É engraçado. Nós lançamos (a campanha) sabendo que haveria debate. Qualquer um lidando com uma marca tão icônica está sujeito ao escrutínio rigoroso do público. Em geral, a resposta foi bastante positiva. O que houve, no começo, foi uma resposta apressada (de parte do público)", afirmou ela.
A campanha da Dove "pela beleza real", lançada em 1994, é considerada o "marco zero" do femvertising, e já foi repetida milhares de vezes.
Sua essência é questionar padrões de beleza pouco realistas e racialmente excludentes existentes no Ocidente, e promover a "beleza real", levando para as propagandas "mulheres de diferentes idades, tamanhos, etnias".
No ano passado, porém, a marca sofreu críticas graças a um anúncio no qual uma mulher negra parece "se metamorfosear" em uma mulher branca em um anúncio de sabonete líquido. Ao retirar a camiseta, ela se torna branca.
"O clipe tinha a intenção de mostrar que o produto é para mulheres de todas as etnias, e de ser uma celebração da diversidade. Mas nós não soubemos nos expressar", reconheceu um porta-voz da marca, que pertence à gigante Unilever.
O YouTuber e ativista do movimento negro brasileiro Spartakus Santiago gravou um vídeo em outubro passado fazendo uma ponderação sobre a polêmica envolvendo a Dove. Na sua opinião, o anúncio foi "claramente descontextualizado" pelos críticos. Ele lembrou que na peça original, a mulher branca "tira" uma camada de pele em seguida e se transforma em uma mulher latina.
"A Dove talvez tenha errado em criar uma peça que podia ser lida de forma tão controversa. Na internet, tudo é descontextualizado. E essa imagem, de uma mulher negra arrancando uma camada de pele e virando uma mulher branca, é uma imagem que podia ser muito mal interpretada", diz ele. "E a Dove talvez tenha pisado na bola. Mas o fato é que a marca não foi racista. A marca criou algo que pode ser lido como racista se for descontextualizado", avalia.
A Dove também teria "mandado mal" com uma campanha lançada no Reino Unido no ano passado, quando pôs em circulação diferentes formatos da garrafinha de sabonete líquido. Alguns consumidores se ofenderam e alguns apontaram o fato de que todas as embalagens eram brancas.
Uma das marcas de material de escritório mais famosas do mundo, a BIC foi alvo de protestos em 2012, quando lançou uma linha de canetas "confortáveis" para mulheres - nas cores rosa e roxa.
Pensados exclusivamente para o público feminino, os produtos foram vendidos como tendo uma "silhueta elegante e detalhes pensados para dar mais estilo". As canetas "teriam uma pegada suave para garantir o conforto ao longo de todo o dia", dizia o material promocional.
Depois das críticas, a companhia procurou a comediante e apresentadora de TV Ellen DeGeneres para atuar como sua porta-voz. Ela não só recusou a proposta como caçoou da BIC, referindo-se de forma sarcástica ao produto em seu programa de TV.
As canetas também eram mais caras que as da linha tradicional da BIC.
Em 2015, a empresa se envolveu em outra polêmica ao lançar uma campanha para o Dia Internacional das Mulheres na África do Sul. A peça incentivava mulheres a ter "a aparência de uma garota, agir como uma dama e pensar como um homem".
Curiosamente, a linha "para mulheres" não está mais disponível no site em inglês da BIC (e nem na sessão do site voltada para o Brasil). As canetas "femininas" ainda podem ser encontradas na loja online Amazon, onde recebem grande quantidade de avaliações positivas e/ou irônicas.
Em 2015, a empresa de suplementos alimentares Protein World sofreu com protestos aguerridos depois de fazer uma campanha publicitária com anúncios espalhados pelo metrô de Londres. As mensagens mostravam uma mulher de biquíni e a pergunta "O seu corpo de praia está pronto?".
Os protestos incluíram uma manifestação no Hyde Park e um abaixo-assinado para que os cartazes fossem removidos.
Apesar disso, a Protein World adotou uma estratégia incomum: ao invés de pedir desculpas, lançou uma nota criticando os manifestantes, que seriam "uma minoria que critica aqueles que buscam se tornar mais saudáveis, mais fortes e em melhor forma (física)".
"Nós operamos a maior fábrica de suplementos do Reino Unido, e vendemos nossos produtos em mais de 50 países para mais de 300 mil clientes. A maioria deles é de mulheres. Como elas poderiam ser sexistas?", dizia o documento.
No fim, a empresa perdeu a batalha quando a agência britânica que regula o setor de publicidade decidiu banir os anúncios. Meses depois, o prefeito de Londres, Sadiq Khan, anunciou uma norma para proibir no transporte público da cidade anúncios que fizessem as pessoas se sentir mal com os próprios corpos.
A guerra, porém, continuou em outro front: em 2016, a Protein World usou as festas de Natal para lançar uma linha de probióticos para mulheres - inclusive usando imagens de modelos supertonificadas.
A montadora japonesa atraiu uma avalanche de críticas em 2016 ao colocar cartazes de um novo modelo de carro em uma estação de ski na Austrália. A peça sugeria que homens eram melhores no esporte que as mulheres.
O banner se dirigia a famílias que estivessem juntas esquiando no local - as mães eram colocadas na categoria "intermediária", enquanto os pais eram considerados aptos para trajetos de "expert".
Detalhe interessante: os cartazes foram colocados em 2015, mas os protestos só começaram quase um ano depois. Foram discretamente removidos depois de uma série de críticas nas redes sociais.
Outra montadora cuja estratégia de "femvertising" deu errado foi a Audi. No ano passado, a empresa pagou por um anúncio de 60 segundos no intervalo do Superbowl, a final do campeonato de futebol americano dos EUA, para anunciar que estava comprometida com iniciativas de igualdade salarial.
Os intervalos do Superbowl são atualmente o espaço publicitário mais caro de todo o mundo.
Apesar das boas intenções, os ativistas foram rápidos em apontar a suposta hipocrisia no anúncio - dado que a Audi, na época, não tinha nenhuma mulher entre os seis integrantes de seu Conselho, e só 16% dos diretores da empresa eram mulheres.
O percentual ficava abaixo até mesmo dos 20% de mulheres que estavam em postos de comando nas 500 maiores empresas dos EUA listadas pela revista Fortune. A rival BMW tinha 30% de mulheres diretoras.
O Carnaval no Brasil é uma época de hedonismo - e os anunciantes sempre tentam "pegar carona" na festa. Mas em 2015 essa estratégia terminou como um desastre de relações públicas para a Skol, marca de cerveja do conglomerado Ambev.
Naquele ano, a empresa fez uma campanha encorajando os foliões a "esquecer o 'não' em casa" durante a festa.
A propaganda "viralizou" pela razão errada, quando ativistas satirizaram os cartazes nas paradas de ônibus em São Paulo. A mensagem foi modificada para "Esqueci o não em casa... E trouxe o nunca". A jornalista Mila Alves e a publicitária Pri Ferreira apareciam em fotos ao lado dos cartazes "adaptados", mostrando o dedo médio estendido.
O fato de muitos homens não respeitarem o "não" das mulheres às suas investidas, comportamento que é exacerbado em festas como o Carnaval, é um dos graves problemas apontados por elas. Já foi, inclusive, alvo de campanhas.
Em agosto de 2016, uma rede de academias de ginástica - a Gold's Gym - envolveu-se em uma polêmica quando suas unidades no Cairo (Egito) tentaram atrair novos clientes fazendo com que as mulheres se sentissem mal com os próprios corpos.
"Essa não é uma forma para uma garota", dizia o texto da propaganda, colocado ao lado da foto de uma pera.
Até celebridades de outros países, como a atriz americana Abigail Breslin, entraram na onda dos protestos.
O comando da companhia, nos EUA, decidiu encerrar os contratos dos franqueados no Egito, mas foi criticado por supostamente ter pouco controle sobre as operações de marketing envolvendo a própria marca.
Conhecida pela estratégia de negócios pouco ortodoxa, a cervejaria britânica Brewdog fez uma aposta de risco para celebrar o Dia Internacional da Mulher este ano: lançou uma "cerveja para garotas" satírica.
Um dos rótulos mais populares da Brewdog é a "Punk IPA" - de sabor amargo e alto teor alcoólico. Agora, a cervejaria anunciou que levará para as prateleiras a "Pink IPA". A sátira terá o rótulo rosa e será vendida a mulheres por um preço mais baixo que para os homens.
Segundo a cervejaria, trata-se de uma forma de denunciar a disparidade salarial entre os gêneros no Reino Unido. E de tirar sarro das "estratégias de marketing preguiçosas" voltadas para mulheres.
A campanha é acompanhada de postagens sarcásticas no Twitter. "Criamos uma cerveja para garotas. E é rosa. Porque mulheres gostam de coisas na cor rosa e com glitter, certo?"
Tanto sarcasmo explícito, porém, não evitou as críticas.
"Esta tem a motivação correta, mas a execução é errada", tuitou uma mulher.
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9 vezes em que a publicidade falhou em entender as mulheres em pleno século 21 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU