08 Junho 2016
Peça encenada no Rio debate, em intenso contato com psicanálise, estupros coletivos. A dominação sobre um corpo que paralisa, que vomita, que carrega sozinho todo o mal-estar da civilização.
O artigo é de Carla Rodrigues, professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, publicado por Outras Palavras, 07-06-2016.
Eis o artigo.
Em cartaz até 19 de junho teatro Sesc Copacabana, Rio de Janeiro, a peça O corpo da mulher como campo de batalha, encenada a partir de texto do escritor romeno Matéi Visniec (em tradução de Alexandre David), trata do estupro como estratégia na Guerra da Bósnia (1992-1995), o maior genocídio do século XX depois da Segunda Guerra. Cada palavra dita pela vítima para sua psicanalista, uma norte-americana especialista em neurose traumática, pode ser ouvida pela plateia carioca com uma força dramática além da densidade do texto original, sobretudo por ter estreado na quinta-feira, 26, mesmo dia em que veio à tona a notícia do estupro da jovem de 16 anos, violentada a primeira vez pelos infinitos homens, violentada a segunda vez quando inúmeras vezes é acusada de ter provocado o crime do qual foi vítima.
O espetáculo, dirigido por Luis Fernando Philbert, nos apresenta uma jovem casada e mãe de dois filhos, cuja família havia sido dizimada na guerra (Fernanda Nobre como Dorra). Paralisada e muda, essa jovem foi estuprada por cinco homens. Não por cinco estranhos, mas por cinco homens vizinhos, conhecidos, soldados que deliberadamente usaram o estupro de mulheres como forma de enfraquecer o inimigo. Destituída de tudo que tinha, inclusive do próprio corpo, dilacerado pelo trauma da violação, a personagem vai se reconstituindo diante da plateia, no que poderia ser chamado de experiência de transformação, na qual a psicanalista intervém e expõe os próprios traumas de trabalhar na guerra (Ester Jablonski como Kate).
Para a psicanálise, Dorra não é um nome qualquer. Faz alusão ao caso Dora, a paciente histérica de Freud marcada por uma divisão. É desde então uma referência para pensar o tema do feminino e sua relação intrínseca com a falta, o que se expressa numa das primeiras falas de Dorra: “Não, eu não acredito que podemos contar tudo. Não acredito que podemos entender tudo. Não acredito que tem um sentido em tudo que contamos. Não acredito que tem um sentido no que estou dizendo.” E, ainda que concordando com Dorra, ou exatamente por não podermos entender tudo, é necessário contar, contar, contar. Para tentar dizer.
O estupro da jovem moradora de Jacarepaguá pode estar produzindo, como percebe a jornalista Dorrit Harazim, um efeito que se dá a partir da absoluta falta de sentido do estupro. É preciso dizer não, como fez a advogada Eloisa Samy Santiago, ao conseguir o afastamento do delegado no processo, provando a violência na sua atitude no interrogatório. Dizer não, como fizeram a escritora Clara Averbuck e a cantora Olivia Byington, ao nos contarem que estupro não acontece só em baile funk na periferia. Dizer, como fez o filósofo Cláudio Oliveira, que “estupradora é a nossa sociedade, a sociedade brasileira. A situação da mulher não é menos grave, mas os negros, os pobres, os índios, os nordestinos, os refugiados, os LGBTs… são todos tratados como as mulheres.” Dizer, como há muito tempo a pesquisadora Julita Lemgruber vem dizendo, que há homens estupráveis nas prisões, máquinas de destruição e sofrimento.
Dizer que estupro é uma lógica de dominação, como fez a filósofa Márcia Tiburi. Ou ainda dizer que não foi só na Bósnia, mas que todos os dias o corpo das mulheres é campo de batalha de inúmeras guerras. Estupros coletivos são filmados e veiculados como troféus.
Desde muito cedo, o corpo de uma mulher é ensinado a se comportar, se conter, se moldar. Um corpo que paralisa, como fizeram as histéricas, ou um corpo que vomita, como fazem as bulímicas. Um corpo mutilável, como nas cirurgias estéticas cujo objetivo é adequação. Um corpo do qual se dispõe, como no estupro, e que só se apresenta como disponível por não ser reconhecido como corpo do outro nem como corpo de desejo próprio. Um corpo do qual qualquer homem acha que pode se servir para gozar da sua sexualidade supostamente incontrolável. Um corpo que carrega sozinho todo o mal-estar da civilização, um corpo sobre o qual os homens dejetam a sua recusa em compartilhar desse mal-estar. Corpo destinado a se perder, campo de inúmeras guerras perdidas, mas também corpo como último ou único lugar de resistência.
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O corpo das mulheres como campo de batalha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU