19 Abril 2017
"O grau com que Trump decide agir com respeito à teologia de Stephen Bannon ou até que ponto ele decide ignorá-la pode bem ajudar a determinar o curso de sua presidência", escreve Hugh Urban, leciona estudos religiosos no Departamento de Estudos Comparativos da Universidade Estadual de Ohio, nos EUA, é autor de nove livros, entre eles “The Church of Scientology: A History of a New Religion” e “The Secrets of the Kingdom: Religion and Concealment in the Bush Administration”, em artigo publicado por The Theology & Politics, 17-04-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O emprego do estrategista-chefe da Casa Branca pode estar em perigo, segundo reportagens recentes divulgadas na imprensa. Vinda na esteira de sua destituição do Conselho Nacional de Segurança, a comoção em torno do proponente da “alt-right” (direita alternativa nos EUA) vem suscitando novas dúvidas sobre a sua ideologia de forma geral – e a até que ponto ela pode ou não estar influenciando as escolhas políticas do governo Trump. A disputa interna atual entre Bannon e elementos mais moderados na Casa Branca é o resultado de choque de personalidade, ou terá essa disputa uma alguma relação com os ideais políticos e religiosos extremos dele? No momento, o discurso político impetuoso e agressivo de Bannon é bem conhecido. Ao comparar a si mesmo com “Dick Cheney, Darth Vader, Satã”, Bannon não mede as palavras para descrever a sua própria visão radical para o futuro do país – por exemplo, ao propor a “desconstrução do Estado governante”. No entanto, a retórica religiosa complexa de Bannon é muito menos compreendida.
Desde a sua carreira como documentarista no começo dos anos 2000, passando pelo seu mandato como editor do sítio noticioso Breitbart News, até os seus mais recentes discursos e entrevistas, Bannon tem articulado uma ideologia religiosa um tanto coerente. Embora tenha crescido num lar católico e se autoidentifica como tal, Bannon não expressa uma cosmovisão que seria reconhecida pela maioria dos teólogos católicos de hoje. Em vez disso, ele elaborou um próprio amálgama complexo que combina aspectos do cristianismo com uma visão de mundo profundamente dualista, uma visão intensamente negativa do Islã e uma narrativa histórica quase apocalíptica tirada de romances e fontes populares.
Stephen Bannon teve uma longa carreira em vários campos antes de assumir o cargo de estrategista da campanha de Trump. Veterano da Marinha e ex-investidor da Goldman Sachs, ele também foi documentarista no início da década de 2000 – e é aqui onde vemos a primeira articulação de suas ideias religiosas. O exemplo mais marcante é o seu documentário de 2004 que destaca Ronald Reagan, filme chamado “In the Face of Evil”. Usando imagens históricas de guerras, de agitação política e de nazistas a marchar, o filme começa com uma visão assustadora da história do século XX, que se iniciou com a devastação da Primeira Guerra Mundial.
A partir do rescaldo deste conflito, diz-nos o narrador, surge um terrível Mal: “Deste pântano febril surgiu uma Besta, uma besta que brincou com o anseio humano por uma solução utópica para a sua miséria abjeta – um criminoso quase religioso, assumindo a forma de um Messias político”. Este messias malvado é singular, mas assumiria múltiplas formas históricas, de acordo com o filme, desde o bolchevismo ao comunismo, passando pelo nazismo e a União Soviética. “Mas sempre e em todo o lugar”, entoa o narrador, “independentemente de seu nome ou rosto, o objetivo permaneceu o mesmo: o controle do Estado e do poder”.
Quiçá o momento mais impressionante no filme é a “Coda”, que termina com imagens de aviões atingindo as torres do World Trade Center no 11 de Setembro. Seguem-se a estas cenas várias tomadas com muçulmanas vestindo burcas e de terroristas islâmicos em treinamento. “O lobo está à porta”, somos advertidos, enquanto assistimos à ascensão da “nova Besta”, que é claramente representada como o Islã.
As imagens intensamente negativas do Islã sugeridas no final do documentário sobre Reagan foram elevadas a um novo extremo num resumo de um outro filme que Bannon propôs em 2007 (que nunca saiu do papel). Sob o título “Destroying the Great Satan” (destruindo o grande Satã), o roteiro abre com prédio do capitólio americano coberto por uma bandeira carregando não estrelas e listas, e sim uma lua crescente e uma estrela, enquanto o toque muçulmano à oração se desenvolve em segundo plano. “Na tela em letras grandes”, lê-se no roteiro proposto, “Os Estados Islâmicos da América”.
Em outros filmes, Bannon também combinou o binário Bem x Mal com uma narrativa específica da história mundial. O seu filme de 2010, “Generation Zero”, baseia-se grandemente num livro popular intitulado “The Fourth Turning” (A quarta virada), escrito pelos historiadores amadores William Strauss e Neil Howe. O filme resume três eventos importantes na história americana que logo serão seguidos por um quarto e importante evento de consequências imensas, violentas e radicalmente transformadoras.
Conforme explicado por Bannon em palestra num congresso feminino republicano de 2011: “Tivemos a Revolução. Tivemos a Guerra Civil. Tivemos a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial. Esta é a grande Quarta Virada na história americana”. Em seu lúgubre ponto de vista, o “ocidente judaico-cristão está em ruínas” por causa da perda dos valores tradicionais e da ameaça de forças externas, em particular o extremismo islâmico. O resultado final, adverte ele, será nada menos que uma guerra total.
A ênfase no Islã radical e a sensação de um desastre iminente foram rapidamente adotados no próximo grande espaço ocupado por Bannon, quando assumiu a chefia do Breitbart News em 2012. Chamado pelo próprio Bannon de a “plataforma da alt-right”, o sítio Breitbart, durante o tempo dele no comando editorial, manifestou coerentemente uma visão intensamente negativa, monolítica e homogeneizada do Islã.
Mesmo uma olhada rápida nos artigos aí presentes acabam se mostrando abertamente islamofóbicos, como o de Pamela Geller (“Como os migrantes devastam uma comunidade”), o de Virginia Hale (“Imigrantes muçulmanos secretamente odeiam os cristãos, buscam superá-los”) e a diatribe incendiária de Tom Tancredo (“O politicamente correto protege a cultura muçulmana do estupro”).
Em todos estes escritos, vemos que o inimigo não mais é especificado como o “Islã radical”, mas mais frequentemente como o Islã em si, cujas próprias escrituras sagradas supostamente pregariam a violência e a tomada de poder das comunidades americanas.
Uma das referências literárias de Bannon mais frequente ao descrever a luta contra o Islã e o problema mais amplo da imigração muçulmana é o romance francês “Le Camp des Saints” (O campo dos santos, traduzido no Brasil pela Ediouro). Publicado originalmente em 1973 por Jean Raspail, este romance pinta um quadro obscuro de imigração massiva para a França de imigrantes vindos da Índia, o que, em última instância, resulta na destruição da civilização ocidental. O próprio título é tirado da Bíblia: um relato do livro de Apocalipse em que “o campo dos santos” é cercado pelos exércitos de Satanás até que o fogo de Deus desce para devorar os ímpios. Em vários programas de rádio e entrevistas da época em que esteve diante do Breitbart, Bannon invocou repetidas vezes este romance para descrever o Islã global e a imigração muçulmana a países ocidentais. Como declarou em seu programa de rádio no Breitbart News em janeiro de 2016: “Não é migração. É, na verdade, uma invasão. Eu a chamo de O Campo dos Santos”.
A retórica religiosa e política apresentada sob forma jornalística no sítio Breitbart talvez tenha encontrado a sua articulação mais explícita numa fala polêmica proferida por Bannon via Skype a um congresso ocorrido no Vaticano em 2014. Organizado pelo grupo católico conservador Human Dignity Institute, o evento focava a pobreza, mas Bannon usou a ocasião para promover o binarismo do Bem x o Mal de seus filmes. Descreveu uma luta ampla, histórica e religiosa entre o Ocidente e os seus muitos adversários. Um tal conflito exige que todos os cristãos se unam para formar uma nova “igreja militante” a fim de “lutar pelas nossas crenças contra esta nova barbaridade que está começando”. Nesta grande batalha, os Estados Unidos são claramente identificados como o principal porta-bandeiras do Bem e da Verdade, encarnando tanto “uma igreja quanto uma civilização” que nada mais é que a “flor da humanidade”.
Curiosamente, no entanto, Bannon descreve esta luta entre o Bem e o Mal em termos religiosos e econômicos. Claramente identifica o primeiro caso com uma forma particular do capitalismo, a saber: uma forma “iluminada” do capitalismo “judaico-cristão” que é tanto fundacional quanto a força motriz da civilização ocidental. Porém este capitalismo iluminado está agora diante de uma verdadeira crise, uma profunda falha moral causada pela ascensão do secularismo, que “tem dificultado a força do Ocidente judaico-cristão na defesa dos seus ideais”.
Mas ao invés de celebrar todas as formas do capitalismo, Bannon distingue esta forma do capitalismo de vários outros sistemas religiosos e políticos. Ele distancia-a do capitalismo chinês e russo “promovido pelo Estado”, o qual, em seu ver, é autoritário, anti-individualista e que cria riqueza somente para uns poucos. Em segundo lugar, distingue aquela forma de capitalismo de uma outra forma puramente secular, ao estilo de Ayn Rand, do libertarianismo, que valoriza o indivíduo, mas carece de uma dimensão religiosa.
Finalmente, Bannon contrasta o seu capitalismo iluminado com aquilo que considera o polo oposto: o “fascismo islâmico”, que ele retrata como não sendo nem capitalista, nem individualista, mas repousando sobre uma espécie de forma perversa da religião. Em sua fala no Vaticano, Bannon afirmou que o Ocidente se encontra, neste momento, “em guerra declarada contra o fascismo islâmico jihadista. E esta guerra está, penso eu, se metastatizando muito mais rapidamente do que os nossos governos conseguem lidar”. Ele compara a guerra atual contra o radicalismo islâmico a confrontos do passado entre a Europa cristã e as expansões islâmicas para a Áustria e a França desde o século oitavo ao século XVI. De novo, a retórica de Bannon cai na identificação do inimigo às vezes como o “fascismo islâmico” e, em outras, simplesmente como o Islã em geral.
Então, qual é, afinal, a “teologia de Stephen K. Bannon”? Em última instância, não se trata de um sistema teológico único, coerente, e sim de uma espécie de bricolagem – isto é, um híbrido complexo composto de várias ideias, por vezes, contraditórias e nem sempre consistentes, extraídas do nacionalismo de extrema direita, de narrativas pseudo-históricas, de uma ficção islamofóbica e de uma cosmovisão profundamente binária. Os seus elementos centrais, no entanto, são bastante simples. Em destaque entre eles estão: primeiro, uma narrativa teológica clara do Bem contra o Mal, com os EUA e o “cristianismo judaico” identificados com o primeiro, e o Islã com o segundo; depois, uma narrativa econômica que alinha uma forma particular do capitalismo ao cristianismo, e amaldiçoa o Islã por sua falta de espírito capitalista; e, por fim, uma narrativa histórica baseada na ideia de viradas periódicas, revolucionárias, com a nossa própria era sendo vista como o momento mais radical, catastrófico e transformador no desenrolar do grande desígnio da história.
Em 2004, Bruce Lincoln, historiador da religião e professor da Universidade de Chicago, publicou um importante artigo sobre “A teologia de George W. Bush” (impresso originalmente na revista Christian Century), em que identifica muitos dos mesmos tropos religiosos que vemos na retórica de Bannon. Estes tropos incluem uma cosmovisão inteiramente binária baseada em um conflito do Bem contra o Mal, uma visão de história guiada pela vontade divina e um ideal de Estados Unidos da América como o agente escolhido de Deus nesta história.
No entanto, a teologia de Bannon se diferencia da de Bush em alguns aspectos importantes.
Em primeiro lugar, como sugere Lincoln, o discurso político de Bush normalmente se baseava num tipo de “codificação dupla” sutil, em que referências bíblicas específicas destinadas a um público evangélico eram postas dentro de uma retórica política mais mundanizada. Inversamente, o discurso de Bannon não possui alguma sutileza particular ou codificação dupla, mas é tão contundente, desajustado e descortês quanto o seu próprio comportamento pessoal.
Em segundo lugar, a retórica de Bannon sobre o Islã é muito mais abertamente hostil e universalizante do que a de Bush, fazendo um mínimo esforço para distinguir entre terroristas e os muçulmanos em geral.
Ao escrever sobre Bush, Lincoln observa que ideais teológicos poderosos podem muito facilmente ser postos para usos políticos poderosos. Acima de tudo, uma lógica binária do Bem contra o Mal pode mui facilmente ser empregada para justificar todo tipo de pauta mundana e materialista. Uma vez que uma determinada formação política é identificada como boa e o seu adversário é metafisicamente mau, a porta está potencialmente aberta para uma série de ações: “Guerras preventivas, reduções das liberdades civis, cortes em serviços sociais (...) e outras iniciativas do gênero não são só servem para justificar boas ações em prol do país; elas são também envolvidas no sagrado”. Se Lincoln estiver certo, então a teologia de Bannon – com sua narrativa muito mais extrema e quase apocalíptica do Bem contra o Mal e com sua visão extremamente simplista, homogeneizada e hostil do Islã – deveria ser um motivo particular de preocupação.
Não é difícil ver a influência de Bannon na retórica e nas primeiras decisões do governo Trump. Na verdade, Bannon foi um dos autores do discurso inaugural de Trump, com o seu repetido refrão “a América em primeiro lugar”, com o país sendo aquele escolhido por Deus e “totalmente imparável”. E podemos ver também a influência de Bannon na retórica intensamente hostil de Trump concernente ao Islã – primeiro em seu pedido de um “impedimento total e completo dos muçulmanos de entrarem nos Estados Unidos” e, em seguida, em suas duas ordens executivas proibindo refugiados e voos de sete (e depois seis) países predominantemente muçulmanos.
A saída de Bannon do Conselho de Segurança Nacional em abril deste ano pode bem ser um indicativo de que a sua ideologia extremada não é inteiramente bem-vinda sob o comando do novo assessor de segurança nacional, H.R. McMaster. Bannon mantém o seu principal posto na Casa Branca como estrategista-chefe, ainda próximo dos ouvidos do presidente. No entanto, as suas posturas ideológicas radicais aparentemente estão em desacordo com outras vozes mais moderadas na em Washington. O grau com que Trump decide agir com respeito à teologia de Stephen Bannon ou até que ponto ele decide ignorá-la pode bem ajudar a determinar o curso de sua presidência.
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A teologia de Stephen K. Bannon, estrategista-chefe do governo Trump - Instituto Humanitas Unisinos - IHU