16 Abril 2021
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 3º Domingo de Páscoa, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de Lucas 24,35-48.
“Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo!” (Lc 24,35-48).
Há uma arte milenar que consiste em recompor cerâmicas quebradas; quando uma peça se rompe, os mestres desta arte concertam-na com ouro, deixando a cicatriz da reconstrução completamente à vista e sem nenhuma dissimulação, pois para eles uma peça reconstruída é um símbolo perfeito que alia fortaleza, fragilidade e beleza.
Os primeiros cristãos decidiram também conservar e transmitir os relatos das aparições do Ressuscitado sem ocultar as muitas rupturas, feridas e marcas que o acompanharam durante sua vida, sobretudo aquelas que lhe foram infligidas durante sua paixão e morte. Poderiam ter adocicado, suavizado ou omitido diretamente os aspectos mais polêmicos de seus ensinamentos ou os elementos mais humilhantes de seu dramático final. Pelo contrário, deixaram as cicatrizes de suas feridas completamente à vista e sem nenhuma dissimulação. Mas, fizeram isso não só para serem fiéis à história, mas, sobretudo, para mostrar a fortaleza, a fragilidade e a beleza da reconstrução realizada por Deus na ressurreição. Convinha mostrar o ouro que preenche as fendas entre os membros feridos de Jesus, as marcas de sua entrega nas cicatrizes do seu corpo.
O Pai, como experiente artesão, depois de enviar Jesus e de sustentá-lo ao longo de sua missão, o eleva, o reconstrói e o ressuscita.
Essa é a razão pela qual, para os cristãos, o compromisso com a restauração do mundo quebrado é um modo de atualizar a experiência da ressurreição e de viver sua vocação. O(a) seguidor(a) de Jesus escuta o chamado para unir-se ao labor do Deus-criador que, na ressurreição, re-cria de novo a humanidade ferida.
Somente a ação criativa e contínua de Deus é capaz de costurar novamente os pedaços de nossa história; ao mesmo tempo ela nos faz descobrir a beleza e a harmonia desses mesmos pedaços. Tal qual o oleiro, o Senhor nos cria e nos re-cria continuamente. Nada é desperdiçado. Suas mãos de artista não jogam fora nenhum pedaço de nossa existência vivida, e sim, compõe e re-compõe continuamente, num desenho novo, o que nos foi dado viver. A experiência de nossa própria fragilidade pode converter-se em experiência de Deus, do Deus rico em misericórdia, e até o passado mais fragmentado está aí para dizer que Ele desenhou nosso ser na palma de suas mãos (cf. Is. 49, 14-26).
Assim, o passado em pedaços adquire um significado totalmente diferente, e cada acontecimento se torna fragmento de um plano amoroso, escrito no coração do Criador. O ato divino de costurar os pedaços de nossa história não significa somente juntar os cacos, como se no passado existissem somente derrotas e fracassos a serem anotados e aceitos. Deus acolhe e dá um sentido novo a todas as vivências e experiências; só Ele consegue juntar até as contradições e inconsistências da vida, dando coerência e unidade ao todo existencial e, com isso, fortalecendo a identidade e originalidade de cada um.
É um contínuo re-nascer; é um prolongamento da Criação: “faça-se a luz”, “façamos o ser humano”.
Repetir o gesto criativo de Deus significa tomar nas mãos os “fragmentos” daquilo que foi vivido, trazê-los das profundezas onde sempre estiveram confinados, colocá-los à nossa frente, tocá-los, revirá-los, contemplá-los, aceitá-los, revivê-los, re-criá-los... Com o ouro de nossa existência, aquecida pelo calor do Espírito de Deus, podemos transformar nossas feridas, fracassos, crises, rupturas... em material de uma nova experiência de vida. Não se trata de sufocar a vida, mas de torná-la leve e luminosa, mantendo límpida a sua fonte, livrando-a da camada de sentimentos negativos.
A experiência de encontro com o Ressuscitado nos dá força e tranquilidade para empreender um mergulho dentro de nós mesmos. Ela vai reordenando fatos, completando os vazios, corrigindo distorções, revivendo situações paralisadas, conferindo sentimentos...
Ao nos situar na luz da ressurreição ampliamos o horizonte de leitura de nossa vida; isso possibilita uma recomposição da nossa própria vida e dá um novo significado aos acontecimentos vividos. As experiências do passado não podem ser mudadas, mas a nova “re-leitura” pode mudar a interpretação dada a elas. Tal experiência reconstrutora é para corajosos, persistentes, vitais, amantes da verdade...
A experiência de encontro com o Ressuscitado é muito positiva para o crescimento interior e nos mobiliza para retomar a “escrita” de nossa história, agora com um olhar compassivo e acolhedor.
Deus colocou sua “assinatura” divina ali, nas dobras do coração, mas só quem lê o interior descobre isso. Nas páginas fragmentadas da nossa existência poderemos ler uma história de amor profundo, uma história imortal O que não foi bem escrito no passado poderá ser escrito de outra maneira no futuro...
Mas tudo é reconstruído e, com toda certeza, será publicado pela “editora da vida”.
No evangelho deste domingo Jesus aparece repentinamente aos discípulos; a primeira reação é de “medo pela surpresa” e até “acreditavam ver um fantasma”.
Como se credencia Jesus para justificar sua identidade? De uma maneira que deveria ser também a nossa. O que melhor define Jesus diante dos discípulos medrosos é: em primeiro lugar, a “saudação de paz” (“a paz esteja convosco”).
Em segundo lugar: mostra-lhes suas mãos e seus pés; mãos e pés com o sinal dos cravos na Cruz. Recorda a eles que é o mesmo Crucificado, agora Ressuscitado; mostra-lhes as mãos feridas como marcas do amor que se doa, cura, abençoa, eleva...; mostra-lhes os pés feridos pelos caminhos que andou, pelos deslocamentos em direção aos últimos, e que terminaram cravados na cruz.
A “carteira de identidade” de Jesus não é um cartão nem papéis, mas suas mãos e pés chagados. É curioso que os grandes sinais que tornam possível acreditar que Jesus está vivo sejam suas mãos e seus pés. É curioso que os grandes sinais que nos fazem acreditar na Páscoa sejam as mãos e os pés feridos e chagados.
Se nossas entranhas se compadecem, se nossas mãos se abrem, se em nosso desalento levantamos os pés, se voltamos a confiar no outro, se o nosso olhar se amplia..., então ressuscitamos como Jesus, como a Vida que se expande, como a semente que se rompe...
Queres conhecer alguém? Olhe suas mãos e seus pés. Queres conhecer o(a) verdadeiro seguidor(a? Olhe as chagas das mãos e dos pés; mãos e pés que revelam o amor crucificado; mãos e pés que revelam o amor fiel até o fim; mãos e pés que revelam uma vida doada para que outros possam viver.
“Mais vale uma chaga em nossas mãos e em nossos pés que mil explicações sobre o amor”.
O Cristo Ressuscitado nos mostra suas mãos e pés glorificados, com as “marcas” de sua própria história de paixão e de uma vida entregue em favor do Reino do Pai. Ele pede nossas mãos para que sejam prolongamento das suas: mãos que abençoam, partilham, elevam, curam...Ele pede nossos pés para que sejam o prolongamento dos seus: pés peregrinos que quebram distâncias sociais, pés que rompem as fronteiras da indiferença e da intolerância, pés que ativam presença solidária...; Ele pede nosso coração “atravessado” pela lança do amor oblativo para contagiar a grande esperança e combater o vírus da morte.
- Como ser presença “ressuscitada” no contexto atual onde imperam o “genocídio” e a “cultura da morte”?
- Seu modo de ser e proceder é portador da paz pascal neste ambiente social e religioso carregado de tanto ódio?
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Ressurreição: a arte de recompor o que foi quebrado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU