18 Agosto 2023
"Passou da hora da geração de Lula terminar seu caso de amor com o petróleo", escreve Eliane Brum, jornalista, escritora, em artigo publicado por SUMAÚMA, 17-08-2023.
O colombiano Gustavo Petro acertou em cheio ao apontar o dilema de Lula, do Brasil e da maioria dos governos de esquerda e de centro-esquerda do mundo. “[Os governos de] direita têm um fácil escape, que é o negacionismo. Negam a ciência. Para os progressistas, é muito difícil. Gera então outro tipo de negacionismo: falar em transições”, afirmou ele na Cúpula da Amazônia, realizada nos dias 8 e 9 deste mês de agosto. Petro se referia ao discurso da “transição” para energias renováveis e não poluidoras, usado por governantes como Lula para justificar a continuidade da exploração de combustíveis fósseis.
Como SUMAÚMA antecipou, o presidente da Colômbia se esforçou para convencer os colegas a fazer um pacto pelo fim da exploração de petróleo na Amazônia, mas ficou falando sozinho. Seu isolamento denunciou o que tem aterrorizado jovens ativistas da geração de Greta Thunberg: a dificuldade de fazer com que políticos, a maioria homens moldados no – e pelo – século 20, sejam capazes de tomar decisões que contrariem suas crenças mais arraigadas – justamente as decisões urgentes para barrar o aquecimento do planeta em 1,5 grau Celsius.
É evidente que os governantes trabalham pelo lucro imediato – no caso do governo brasileiro, para apresentar melhores índices econômicos, assim como garantir recursos para produzir políticas que permitam o cumprimento de promessas sociais e a reeleição em 2026. Também é evidente o lobby da indústria de combustíveis fósseis, que com a corrupção de cientistas e institutos supostamente científicos conseguiu atrasar a transição energética em décadas produzindo mentiras como se fossem ciência, com a cumplicidade de grande parte da imprensa. E continua usando vários truques para seguir produzindo, vale lembrar.
É necessário, porém, apontar as subjetividades que impactam as decisões humanas. As gerações que estão hoje no poder no Brasil foram esculpidas por mais de meio século de propaganda nacionalista que, desde Getúlio Vargas, vinha exaltando o petróleo como a melhor fonte de riqueza de uma nação. E essa propaganda moldou corações e mentes de quem hoje toma as decisões – ou, no que se refere à adaptação à mutação climática e à mitigação de seus efeitos, com frequência não toma as decisões que deveria tomar.
Ao apontar como o negacionismo de esquerda se articulava sob o escudo supostamente responsável da “transição energética”, o presidente colombiano afirmou que era um “disparate total” falar em emergência climática e seguir explorando combustíveis fósseis. Petro não só conquistou o protagonismo numa cúpula em que Lula era o anfitrião como explicitou as contradições do Brasil. Até o final do ano passado, o país era governado por Jair Bolsonaro, um extremista de direita que incentivava a destruição da floresta e garantia impunidade aos desmatadores. Hoje, o Brasil é liderado por Lula, um homem de centro-esquerda que se forjou político no sindicalismo de fábrica. A imagem-símbolo da pujança de seu segundo mandato, encerrado em 2010, eram suas mãos sujas do petróleo do pré-sal. Treze anos depois, Lula voltou ao poder, e é impossível fingir não perceber que o petróleo e os demais combustíveis fósseis são os vilões que levam ao colapso da casa-planeta ao transfigurar o clima e, com ele, a geografia que a espécie humana acreditava ser imutável. Mas saber parece não ser suficiente para fazer o que é preciso.
Luiz Inácio Lula da Silva, em 2010, colhe óleo da produção de pré-sal no campo baleia franca, no estado do Espírito Santo. (Foto: Ricardo Stuckert)
Tanto é assim que a exploração de petróleo na bacia da foz do rio Amazonas, na chamada margem equatorial, foi o motivo da grande cisão no primeiro semestre deste terceiro mandato de Lula. O projeto da Petrobras, estatal brasileira de combustíveis fósseis, foi barrado pela pasta de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, como antecipamos com exclusividade em SUMAÚMA. A maior parte do governo, porém, não engoliu essa negativa. Nem o presidente. Pouco antes do início da cúpula, Lula garantiu durante uma entrevista que o povo da Amazônia poderia “continuar sonhando” com a exploração de petróleo na bacia da foz do Amazonas. Na véspera da cúpula, usou uma frase que Bolsonaro poderia ter dito: “[A Amazônia tem que ser um] espaço para geração de riqueza para o povo, não um santuário”.
Lula continua sendo um personagem paradigmático do século 20 com a crença de que o homem é capaz de resolver qualquer coisa e, claro, está no centro do universo. Claramente, nessa mentalidade, que compartilha com os “homens do mercado”, a natureza está a serviço e só tem valor se tiver utilidade para a espécie humana. O mundo acabou de viver provavelmente o julho mais quente dos últimos 125 mil anos. Só nos últimos dias há catástrofes causadas por eventos extremos do Havaí à China e a Antártida derrete a níveis nunca vistos. Mas a esquerda que Lula representa acredita que o tempo ainda está sob controle humano. Na cabeça cimentada no século 20 dessa geração de políticos, dá para fazer dinheiro com o petróleo para ampliar o número de consumidores de mercadorias enquanto lentamente se faz a transição energética – ou “verde”.
No documento final da Cúpula da Amazônia aparece quatro vezes a expressão “ponto de não retorno”, usada para se referir ao momento-limite a que a floresta vai chegando em ritmo acelerado, aquele em que o bioma já não consegue mais se regenerar. Na cabeça de políticos como Lula, porém, dá para planejar a transição com tranquilidade enquanto se estimula a compra de carros movidos a combustível fóssil e se chama um colega pra comer um churrasco de boi da Amazônia. E, ainda assim, é imperativo dizer: Lula é o melhor que temos.
Envelhecer é um movimento. Portanto, o problema não é envelhecer, mas parar de se mover no campo das ideias, deixar de se abrir à indeterminação da vida e de seus encontros, fechar os olhos – e o cérebro – aos desafios do banzeiro que nos foi dado viver. Alguns e algumas das intelectuais climáticas mais poderosas do mundo são mulheres e homens da mesma geração de Lula ou da geração imediatamente anterior. A própria Marina Silva, pouco mais de uma década mais jovem, é uma pensadora potente sobre o planeta em mutação climática. Raoni, a quem Lula deixou mais uma vez esperando, desta vez na Cúpula da Amazônia, tem presumidos mais de 90 anos e um pensamento atualíssimo.
Infelizmente, porém, os fatos e as declarações mostram que a maioria dos políticos dos quais dependem as decisões que vão determinar a qualidade de vida nos próximos anos e décadas são negacionistas de direita e de esquerda, na forma como SUMAÚMA propõe que o negacionismo seja pensado. Nesta altura, acreditar que a mutação climática foi produzida pela espécie humana é o óbvio – e o óbvio cientificamente comprovado. Isso é insuficiente para fazer de alguém um não negacionista. Para poder afirmar que não se é um negacionista é preciso ser capaz de viver segundo a emergência do momento. É preciso agir no cotidiano para barrar o aquecimento do planeta, que já nos lançou na era dos eventos extremos.
Na apresentação do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 11 de agosto, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), foi lançado como protagonista de um projeto agregado: o futuro “Plano de Transformação Ecológica”. “Trata-se da criação de uma nova conduta e postura em relação ao meio ambiente. Um novo tipo de interação com a natureza e a vida de todo o planeta”, afirmou. Torcemos para que Haddad compreenda que não se pode esperar nem um dia a mais – a não ser que a decisão seja pela catástrofe. O tempo do discurso correto que não vira ação já se esgotou.
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O ‘negacionismo progressista’ que nos governa. Artigo de Eliane Brum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU