"A razão e o amor lhe trarão felicidade se você os cultivar em vez de os sufocar". O testemunho de Tolstói para a Quaresma

A Conversão no Caminho de Damasco, do pintor italiano Caravaggio

Foto: Reprodução

25 Fevereiro 2023

"Em sua época e a seu modo, imerso, como todos nós, em inúmeros problemas pessoais, sociais, políticos e econômicos, Tolstói não permitiu que aquela realidade sufocasse sua razão e seu amor, assim como o fez o Papa Francisco em sua Mensagem para a Quaresma 2023, que começa nesta Quarta-Feira de Cinzas, quando o convite do Senhor é novamente renovado: 'A Quaresma é um tempo de graça na medida em que O escutamos enquanto Ele nos fala'".

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

Quem lê as breves páginas de Uma confissão, do escritor russo Liev Tolstói, não tem a impressão de estar lendo um texto redigido em 1882, quase um século e meio atrás, mas de estar ouvindo, ao menos nas primeiras páginas, o relato de um contemporâneo, quando o autor confessa:

"Fui batizado e criado na fé cristã ortodoxa. Ela me foi ensinada desde a infância e durante todo o período de minha adolescência e juventude. Mas aos dezoito anos, quando larguei a universidade no segundo ano, já não acreditava em mais nada daquilo que me fora ensinado."

Para alguns, como tem observado o Papa Francisco em seu pontificado, esse relato pode soar um tanto estranho e fora de época porque nada a respeito lhes foi ensinado. Em todo caso, o ponto alto da confissão de Tolstói está na frase seguinte, que é igualmente o ponto distintivo que marcou e marcará toda e qualquer geração em relação à fé no Deus Uno e Trino:

"De acordo com o que me lembro, nunca acreditei seriamente, tinha apenas confiança naquilo que me fora ensinado e no que os adultos preparavam para mim; mas essa confiança era muito instável."

A mudança de perspectiva e a busca de Tolstói por Deus, anos mais tarde, não decorreram somente de raciocínios filosóficos, mas de um sentimento que, conforme ele conta, provinha do coração e da interrogação sobre o sentido da sua própria existência, enquanto transitava entre os argumentos filosóficos de Kant e Schopenhauer sobre a impossibilidade de provar a existência de Deus e as suas próprias preces Àquele que buscava:

"Apesar de estar bastante convencido da impossibilidade de provar a existência de Deus (Kant demonstrou e eu bem entendi que isso não pode ser comprovado), mesmo assim eu procurava Deus, esperava encontrá-Lo e, por força de um velho hábito, dirigia uma prece Àquele que procurava e não encontrava. Ora eu questionava em minha mente os argumentos de Kant e Schopenhauer sobre a impossibilidade de provar a existência de Deus, ora começava a refutá-los. A razão não é uma categoria do pensamento como o espaço e o tempo, eu dizia a mim mesmo. Se eu existo, para isso há razão, a razão das razões. E essa razão de tudo é aquilo que chamam de Deus; eu me detinha nesse pensamento e tentava com todo o meu ser tomar consciência dessa razão. E, tão logo eu entendia que há uma força sob cujo poder estou, imediatamente sentia a possibilidade de viver. Mas me perguntava: 'O que é essa razão, essa força? Como devo pensar sobre ela, como devo me relacionar com aquilo que chamo de Deus? E apenas respostas familiares me vinham à mente: 'Ele é o Criador, o Onisciente'. Essas respostas não me satisfaziam, e eu sentia que algo necessário para a vida desaparecia dentro de mim. Ficava horrorizado e começava a rezar para Aquele que estava procurando para que Ele me ajudasse. E, quanto mais eu rezava, ficava cada vez mais claro para mim que Ele não me ouvia e que não há ninguém a quem se possa dirigir. Com o desprezo no coração por saber que não existe Deus, falei: 'Deus, me perdoa, me salva! Deus, me ensina, meu Deus!'. Mas ninguém me perdoava e eu sentia que minha vida estava em suspenso."

 


"Os últimos dias de Tolstói" é uma coletânea de ensaios, cartas, parábolas e fragmentos de obras do escritor russo (Foto: Reprodução)

Enquanto deliberava e introduzia novas questões aos seus pensamentos, o escritor confessa igualmente:

"Quantas vezes invejei o analfabetismo e a ignorância dos mujiques. Naqueles preceitos da fé que para mim pareciam obviamente absurdos, eles não viam nada de falso; conseguiam aceitá-los e conseguiam acreditar na verdade, naquela verdade na qual eu também acreditava."

Embora acreditasse com reservas na existência de Deus não por causa de si mesmo, mas dos exemplos da cristandade que observava, a busca por Deus continuou sendo uma constante na vida do escritor russo, como revela o tema de ensaios produzidos ao longo de quase duas décadas desde 1882 até 1910, ano de seu falecimento. Em Onde está o amor, Deus também está, publicado três anos depois de Uma confissão, ele narra a história de Martin, cuja questão existencial, diante da falta de esperança na vida, consistia em responder à seguinte pergunta: "Então viver para quê?". Em seus últimos escritos, as cartas dirigidas aos filhos Andrei e Mikhail Lvóvitch, Tolstói tenta transmitir o que, por fim, descobriu, ao longo de sua existência:

"Eis por que o mais importante, o que você precisa agora, é recobrar os sentidos, olhar para si próprio, para a vida das outras pessoas e perguntar a si mesmo: para que você vive? E o que espera de si?" (...) "Tomara que você consiga entender quem você é. Tomara que você consiga entender que é filho de Deus, que Ele o enviou ao mundo por amor, para que você desempenhe alguma tarefa que seja do Seu agrado, e que para tanto Ele o dotou de razão e de amor, os quais certamente lhe trarão felicidade se você os cultivar em vez de os sufocar."

Em sua época e a seu modo, imerso, como todos nós, em inúmeros problemas pessoais, sociais, políticos e econômicos, Tolstói não permitiu que aquela realidade sufocasse sua razão e seu amor, assim como o fez o Papa Francisco em sua Mensagem para a Quaresma 2023, que começa nesta Quarta-Feira de Cinzas, quando o convite do Senhor é novamente renovado: "A Quaresma é um tempo de graça na medida em que O escutamos enquanto Ele nos fala".

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