Por: João Vitor Santos | 16 Setembro 2018
Atraso no pagamento de salário de servidores, investimentos quase zero em infraestrutura, escolas sendo fechadas, atraso nos repasses de recursos para hospitais, déficit de servidores na Educação e na Segurança Pública. Essas são algumas das muitas faces da crise financeira que o Estado do Rio Grande do Sul vem amargando nos últimos anos. Mas, se por um lado a crise é real e tem impactado diretamente a vida das pessoas, por outro, o debate franco sobre o que levou até essa situação é inebriado por um projeto político: o de Estado mínimo. É o que acredita o economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS Róber Iturriet Ávila. “O discurso político e da imprensa é o de que o Estado gastou demais e, agora, precisa economizar. Não é bem assim, a situação é muito mais complexa”, aponta o professor, na palestra realizada na última quinta-feira, 13/09, dentro da programação do IHU Ideias.
Róber: “O discurso político e da imprensa é o de que o Estado gastou demais e, agora, precisa economizar. Não é bem assim, a situação é muito mais complexa” (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Róber revela que a partir dos nos 2000, as despesas previdenciárias aumentaram muito, enquanto a receita se manteve praticamente a mesma ou, ainda, sofrendo até quedas a partir de 2014 em decorrência das conjunturas econômicas nacional e global. “O tipo de tributação que existe no país está relacionado demais ao consumo. Assim, a atividade econômica cai, cai o consumo e, logo, cai também a arrecadação”, analisa. “Mas não é só isso. Precisamos observar o percurso no longo prazo, compreender o que de fato vem ocorrendo. Estamos numa situação muito complexa, mas só encarando esses dados é que podemos conceber alternativas”, completa. O professor se refere à ideia que vem crescendo, especialmente nesse último governo, de que o Estado precisa fechar fundações, vender estatais e ficar apenas responsável por áreas como educação e segurança pública.
E, nesse ano eleitoral, os debates políticos têm se centrado nessa perspectiva de que, porque “o Estado foi irresponsável e gastou demais, agora precisa ser duro e fazer os ajustes”. “Mas como gastou demais? Percebemos que o gasto público aumenta. Então, quer dizer que construímos muitas estradas, hospitais, equipamos escolas, contratamos servidores? Não, não vemos nada disso nos últimos anos”, provoca o economista. Além disso, a ideia de reduzir o braço estatal é defendido por quem alega um inchaço da máquina pública. “Desde a década de 1990 até 2017, o número de servidores do Estado foi reduzido em 44 mil. São, pelo menos, 10 mil exonerações de professores. Como é que podemos falar em inchaço do Estado?”, questiona. É para subverter esse discurso que Róber elenca alguns fatores que considera preponderantes na derrocada econômica do Rio Grande do Sul.
Um dos fatores que vão pesar nas contas públicas é o pagamento de servidores aposentados. A partir de 2004, esses gastos começam a apresentar um crescimento que não tem prazo. “Um dos fatores é que o Rio Grande do Sul é um dos estados líderes em expectativa de vida. Assim, mais servidores vão se aposentando e passam a depender da previdência por muito mais tempo”, aponta. Para se ter uma ideia, na década de 1990, o RS tinha cerca de 75 mil servidores inativos. Atualmente, esse número chega a 166 mil. “Isso representa o consumo de 40% da receita corrente líquida”, indica. Róber reconhece que, no passado, o Estado foi mais benevolente, houve um forte aparelhamento estatal. “É, claro, houve muitos avanços com isso, mas fato é que essas pessoas agora estão se aposentando”, completa. Para ele, esse não chega a ser um erro histórico, pois o Rio Grande do Sul foi pioneiro numa série de medidas que, naquela conjuntura, demandavam a necessidade de aumento do poder estatal. Aliás, medidas que vão inspirar o governo federal e sustentar as ondas como a trabalhista.
O discurso corrente para enfrentar essa realidade é fazer a reforma da Previdência. “Mas já foram feitas várias. O servidor que ingressa hoje no serviço público tem muito menos benefícios que no passado, está muito mais próximo do setor privado. Por exemplo, não podem ultrapassar o teto do INSS do setor privado”, aponta. Além disso, a contratação de novos servidores é cada vez menor, chegando a uma queda de 44 mil nos últimos 30 anos. Parece bom? Antes de responder é preciso levar em conta que a maioria dos funcionários do Executivo são professores e policiais militares. Assim, menos funcionários nessas áreas explicam os déficits na educação e na segurança pública. “Não é justo penalizar ainda mais os servidores do presente e do futuro”, avalia.
O economista reconhece que a situação é dramática. Por isso, enfrentar problemas como os gastos previdenciários precisa de ações profundas e, por vezes, não muito populares. “Uma das formas de enfrentar isso é a taxação dos servidores inativos. O governo Tarso tentou isso, mas o Tribunal de Justiça alegou inconstitucionalidade. Não sou jurista, mas é preciso que se destaque que os maiores salários [tanto ativos como inativos] estão entre os servidores do Judiciário”, diz.
Róber ainda analisa que outro problema a ser enfrentado é a desigualdade entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Um exemplo disso é que, nos últimos anos, servidores do Executivo, que recebem, em média, salários muito menores do que os do Judiciário e do Legislativo, têm tido seus salários parcelados, enquanto nos outros poderes o pagamento segue sendo feito em dia. Além disso, a maioria dos servidores do Executivo são professores e policiais militares, com salários muito menores do que os do Judiciário. Diante desse quadro, cada vez mais policiais e educadores deixam o serviço público. O gráfico abaixo revela a brusca queda a partir de 2014. “Sei que a formação de professores é diferente da de juízes, mas temos um Judiciário muito caro e um Executivo muito pobre. Isso tem de ser enfrentado em todo o Brasil”, argumenta.
O endividamento e praticamente falência de estados da federação não tem sido apenas uma realidade gaúcha. Estados como Minas Gerais e Rio de Janeiro vivem situações tão adversas quanto o Rio Grande do Sul. São indicativos de políticas fiscais e econômicas adotadas pela Federação ao longo dos tempos que têm se revelado perversas, especialmente com os estados. Até o Plano Real, na década de 1990, por exemplo, o RS resolvia seu déficit crescente com a emissão de títulos da dívida pública. A partir de então, isso não foi mais possível, a União restringiu e centralizou a emissão desses títulos. Além disso, antes do Real, em tempos de inflação alta, as despesas do estado eram arrochadas, mas, ao mesmo tempo, insuflava a receita. “O estado se financiava pela inflação, tínhamos déficits importantes até 1998, quando o estado assina o contrato da dívida com a União”, acrescenta.
Assim, além de não ter mais a mobilidade de antes para jogar com seu próprio déficit, o RS agora é forçado a cumprir um contrato que determina o pagamento de uma dívida com juros altos, que a transformam numa bola de neve. “Por isso, a renegociação da dívida também é importante para enfrentar essa crise. Mas o debate da dívida pública tem de ser muito mais claro”, destaca o economista. Para ele, enquanto essa dívida for atrelada à taxa de juros e sofrer incidências da taxa de câmbio, vai sempre aumentar. Hoje, o Estado chega na marca de 60 bilhões de reais em dívidas com a União. “E, assim, vai vendo sua despesa crescer sem construir uma estrada, uma ponte, um hospital”, provoca.
Outra questão muito problemática: a Constituição propõe uma descentralização de recursos, visando que cada vez mais recursos cheguem até os municípios. “Isso de fato ocorre, municípios aumentaram a participação do bolo tributário, o que é bom por um lado. Mas a União criou novos tributos que não entram nesses repasses aos estados. Assim, os estados repassam mais para os municípios e não recebem novas fatias desses tributos criados pela União”, problematiza. Além disso, desde a instituição do Fundo de Participação de Estados e Municípios, fica determinado que os mais pobres recebem parcela maior. “Isso é bom, mas a fatia dos estados mais ricos encolhe. Como somos um dos mais ricos da Federação, também somos impactados por isso”, acrescenta.
Róber ainda traz à tona um dos assuntos que não são trazidos ao debate, mas que também tem seu peso na crise do RS: as desonerações, a renúncia de receita através dos impostos que o Estado abre mão de recolher de determinadas empresas. Isso se dá sob o argumento de que, pagando menos imposto, a empresa teria condições de gerar mais empregos. Em tese, pois os números que o economista apresenta revelam que grandes empresas – inclusive multinacionais – deixam de pagar até 40 milhões de reais em tributos e acabam gerando apenas dez novos empregos. “Não parece pouco? É um custo muito alto para geração de tão poucos empregos”, diz.
O resultado é que em 2017 essas desonerações chegaram a 35% da receita. Num contexto de crise econômica e financeira, o número se torna ainda mais alarmante. “Isso é uma cultura que vem de vários governos. Na prática, vem se reduzindo o tamanho do Estado através dessas renúncias fiscais. Sei que é uma questão polêmica, que há desonerações bem importantes para alguns setores, mas acho que ainda temos muito espaço para negociar”, avalia.
A Lei Kandir é outro peso histórico nas contas gaúchas, segundo Róber. No passado, a União reduziu tributos sobre exportações sob o argumento de que faria compensações aos estados. Mas isso acaba não se confirmando, havendo apenas compensações parciais. Resultado: em 2015, as perdas chegaram a 40 bilhões de reais. “E, lembre, a dívida com a União é de 60 bilhões de reais. Será que não tem como negociar isso?”, questiona. “Sei que isso é uma questão nacional, mas também incide na arrecadação do Estado. Não depende só do Rio Grande do Sul, mas isso tem que ser negociado”, acrescenta.
Nos últimos meses, o atual Governo do Estado tem defendido o Regime de Recuperação Fiscal como a principal via para sair da crise. Na prática, é uma espécie de acordo com a União que busca repactuar suas dívidas. Para o professor Róber, o Regime precisa ser discutido de forma mais clara, pois há uma série de imposições que podem, no futuro, pesar ainda mais para o RS. “Por exemplo, libera o pagamento da dívida com a União por três anos, podendo ser prorrogado por mais três. Isso é necessário, mas é preciso que se avalie como isso será feito porque nesse tempo a dívida continuará crescendo. Como pagar depois?”, indaga.
O Regime ainda impõe reformas na Previdência, mas, como o professor já destacou, é preciso pensar que tipo de reforma. “Vamos continuar penalizando os futuros servidores ou vamos discutir a taxação de quem recebe 20 mil reais de aposentadoria?”, provoca. Além disso, há a restrição na contratação de novos servidores. “Já estamos sofrendo com o déficit de professores e de policiais, que cresce a cada ano. Como isso ficará no futuro?”.
O professor Róber reitera que a situação é dramática e que a saída da crise não se dará somente por uma via, sendo necessário outras que são extremamente impopulares. “Por isso, precisamos discutir claramente essa realidade e também as formas de fazer esse enfrentamento”, defende. Nesse sentido, elenca alguns caminhos:
- Promoção do crescimento econômico. “E para isso é preciso construir política pública que fomente esse crescimento”;
- Renegociação da dívida. “Isso é necessário, mas é preciso discutir os critérios”;
- Reforma tributária, repactuação nacional e fim da guerra fiscal. “Questões que não dependem só do Rio Grande do Sul, mas que têm de ser levadas para União”;
- Repensar a estrutura estatal. “O que não significa só fazer privatizações”;
- Reduzir gastos com Legislativo e Judiciário. “Não podemos mais conceber salários acima do teto constitucional, deixando dois poderes ricos e um cada vez mais pobre”;
- Tributação de servidores inativos que recebem acima do teto do INSS;
- Rever desonerações;
- Federalização da CEEE;
- Privatizações? Concessões? “Precisamos discutir. Na atual situação, talvez, em alguns casos, seja necessário”;
- Alterar tempo de contribuição previdenciária de professores e policiais militares. “É algo controverso, mas é fato que se aposentam antes, muito cedo, e poderiam continuar contribuindo”.
Ao fim da palestra, o economista é provocado a avaliar as propostas dos candidatos ao Palácio Piratini. Afinal, o que propõem acerca da crise e o que as suas políticas econômicas revelam? “Tomando como análise os quatro principais candidatos – José Ivo Sartori, do MDB; Eduardo Leite, do PSDB; Miguel Rossetto, do PT; e Jairo Jorge, do PDT –, digo que Sartori e Eduardo Leite são iguais, com o mesmo projeto em pessoas diferentes”, analisa. Para Róber, o que os orienta é um projeto de liberalismo que passa pela adoção do Regime de Recuperação Fiscal como está posto. “Além disso, devem manter as alíquotas de ICMS altas. Aliás, quem ganhar vai acabar fazendo isso. Não tem como não fazer isso na atual situação”, aponta. “Mas, com relação a esses dois, o que está claro é um projeto de redução do Estado. Sartori vai seguir acabando com as fundações, Eduardo parece mais moderado quanto a isso, mas o que está por trás é a ideia das privatizações”, acrescenta.
José Ivo Sartori, Jairo Jorge, Miguel Rossetto e Eduardo Leite (Foto: Divulgação esquipes de campanha)
Jairo Jorge, para Róber, se apresenta com uma proposta mais centrista. “Ele é mais intermediário. Não podemos considerar como um liberal, mas fala em reduzir secretaria, criar apenas escritórios. O que não causa grande economia, mas fala em reduzir a burocracia. Quando se fala em reduzir a burocracia, se fala na redução do Estado”, explica. E Rossetto, na visão do professor, vem com um projeto mais desenvolvimentista. “Não iria na linha das privatizações. Por isso, centra forças essencialmente nas negociações com Brasília e novas propostas de recuperação fiscal, promete cobrar as perdas da Lei Kandir que não estão na atual proposta de recuperação. Além disso, diz que se fizer uma política desenvolvimentista vai conseguir aumentar as receitas”, avalia. Róber ainda sopesa que, nesse momento de campanha, as políticas econômicas não são muito claras e as inferências que faz é somente a partir do que tem ouvido, sem detalhes de planos de governo. O que não significa que as propostas para enfrentamento da crise não sejam levadas em conta pelo eleitor na hora da escolha de seu candidato.
Róber Avila (Foto: João Vitor Santos/IHU)
Doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS. Foi professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística - FEE e diretor sindical do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul - Semapi.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O discurso do “Estado gastador” não explica a crise econômica do RS - Instituto Humanitas Unisinos - IHU