14 Março 2018
Dom Erwin Kräutler, coordenador da Rede Eclesial Pan-Amazônica, (REPAM-Brasil), bispo emérito do Xingu, no Pará, e recém nomeado conselheiro pré-sinodal para o Sínodo da Amazônia fala nesta entrevista sobre a excepcionalidade e singularidade da convocação do Sínodo que traz como tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e por uma ecologia integral”.
A entrevista é de Osnilda Lima e Paulo Victor, publicada por REPAM, 11-03-2018.
Além de identificar novos caminhos de evangelização com uma atenção especial aos povos originários o “Sínodo quer chamar a atenção do mundo inteiro sobre um bioma que há décadas está sendo inescrupulosamente explorado e arrasado e cuja destruição gradativa tem consequências para o planeta todo”, assevera dom Erwin.
O bispo ressalta que “nunca, na história dos Sínodos os povos originários receberam uma atenção e afeição tão peculiares”. E afirma que “no Sínodo para a Amazônia os indígenas sairão do ‘apartheid’ a que desde há séculos foram banidos pela sociedade majoritária. Deixarão de ser considerados ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’”, conforme aponta o Documento de Aparecida, n. 65. Os povos indígenas “ocuparão de repente o centro da atenção de um Sínodo dos Bispos em nível mundial”, assegura.
Todavia, dom Erwin, lembra que a preparação para o Sínodo se fundamenta em primeiro lugar num processo de ouvir todos os povos independentemente de raça e cultura. “Entra aí, sem dúvida, a questão dos afrodescendentes e quilombolas, dos ribeirinhos, dos atingidos por grandes projetos e dos às vezes paupérrimos moradores dos subúrbios não apenas das metrópoles, mas também das cidades menores”.
Ele ainda ressalta a importância das leigas e leigos que animam as comunidades e lembra a realidade de que “70% das comunidades na Amazônia brasileira só têm a graça de participar da celebração eucarística três a quatro vezes por ano”. E recorda que segundo o documento Lumen Gentium (Luz dos Povos) a “Eucaristia é fonte e o ápice de toda a vida cristã’ e devido ao “número insuficiente de padres se torna um ato litúrgico de exceção, quando o padre aparece algumas poucas vezes durante o ano”.
Como enxergar a Amazônia?
A Amazônia é sui generis. Seguramente não há outra região igual no planeta. Não se pode falar do “povo“ da Amazônia. A Amazônia se caracteriza pela coexistência de inúmeros povos distintos segundo a sua origem, cultura, raça e língua. Viviam primeiro numa imensa região de selvas exuberantes e rios caudalosos, de igarapés e igapós, de mangues e cerrado, de várzeas e vastos campos naturais. Mas hoje a maior parte da população já vive nas cidades e a tendência do êxodo rural, ou melhor, da “fuga” para as grandes aglomerações urbanas cresce vertiginosamente.
Ultimamente a Amazônia brasileira tornou-se também destino de migrantes especialmente do Haiti e da Venezuela.
A Pan-Amazônia abrange além do Brasil mais oito países do continente sul-americano: Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela. Mais de 67,9% da Amazônia se encontram em território brasileiro onde abrange a metade da superfície do país (49,29%), Bolívia está com 9,8%. Peru com 8,8%, Colômbia com 6,4%, Equador com 1,6%. Os restantes 5,3% da Amazônia se dividem entre Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname.
O papa Francisco convoca um Sínodo para a Amazônia. Qual a finalidade?
No domingo, 15 de outubro de 2017, ao final da Missa de canonização dos protomártires brasileiros de Cunhaú e Uruaçu (RN), o papa Francisco se dirigiu antes da oração do Ângelus aos fiéis e peregrinos reunidos na Praça de São Pedro no Vaticano e anunciou a convocação de uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônia: “Atendendo o desejo de algumas Conferências Episcopais da América Latina, assim como ouvindo a voz de muitos pastores e fiéis de várias partes do mundo, decidi convocar uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-Amazônica. O Sínodo será em Roma, em outubro de 2019. O objetivo principal desta convocação é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, também por causa da crise da Floresta Amazônica, pulmão de capital importância para nosso planeta”, disse o papa na ocasião.
O Sínodo tem, por conseguinte, três finalidades:
• Identificar novos caminhos para a Evangelização na Amazônia,
• Com enfoque especial aos povos indígenas;
• A crise da Floresta Amazônica.
Que clima já pode ser sentido pelo povo e pela Igreja que vive nesse bioma brasileiro?
Para entender o que significa um Sínodo para a Pan-Amazônia precisamos colocar essa convocação no contexto dos sínodos passados. A criação do Sínodo dos Bispos foi decidida pelo Concílio Vaticano II e instituído pelo papa Paulo VI com o Motu Proprio “Apostolica sollicitudo” (15 de setembro de 1965). A finalidade do Sínodo dos Bispos é refletir de maneira conjunta sobre temas relevantes para o bem da igreja e da humanidade. É um órgão consultivo do papa e é ele quem preside o sínodo.
Essas assembleias ordinárias ou extraordinárias sempre foram celebradas no Vaticano porque versaram temas importantes para toda a Igreja. Alguns temas foram de grande repercussão como “Justiça no mundo” (1971), “Evangelização no mundo de hoje” (1974) que culminou na até hoje atualíssima Exortação Apostólica do papa Paulo VI “Evangelii Nuntiandi” (8 de dezembro de 1975) e “A vocação e a missão dos leigos na Igreja e no mundo” (1987).
Os temas tratados nos sínodos mais recentes foram “A Eucaristia: fonte e ápice da vida e da missão da Igreja” (2005), “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja” (2008) e os dois Sínodos dos Bispos sobre a Família celebrados em 2014 e 2015 que resultaram na Exortação Apostólica do Papa Francisco “Amoris Laetitia” (A Alegria do Amor). Para o ano em curso (3 a 28 de outubro de 2018) está agendado o Sínodo dos Bispos sobre o tema “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”.
O papa João Paulo II convocou uma série de Sínodos para os cinco continentes, dois para a Europa (1991 e 1999), dois para a África (1995 e 2009), um para América (1997), para Austrália e Oceania (1998) e para Ásia (1999).
Nesse contexto mais amplo se insere a convocação de um Sínodo para a Pan-Amazônia. Até agora havia apenas um sínodo para uma região específica, o Sínodo dos Bispos do Oriente Médio, celebrado de 10 a 24 de outubro de 2010: “A Igreja Católica no Meio Oriente: Comunhão e testemunho”. Foi um Sínodo que levou em conta “a delicada e por vezes dramática situação social e política“ no Oriente Médio (papa Bento XVI, Homilia para a abertura do Sínodo, 10 de outubro 2010) e visava especialmente o “diálogo com os judeus, aos quais estamos ligados de modo indissolúvel através da longa história da Aliança, assim como com os muçulmanos“ (ibidem).
Mas hoje estamos diante de um acontecimento excepcional e singular. O papa Francisco convoca um sínodo para a Pan-Amazônia no intuito de identificar novos caminhos de evangelização com uma atenção especial aos povos originários. Além disso quer chamar a atenção do mundo inteiro sobre um bioma que há décadas está sendo inescrupulosamente explorado e arrasado e cuja destruição gradativa tem consequências para o planeta todo.
Nunca, na história dos Sínodos os povos originários receberam uma atenção e afeição tão peculiares. No Sínodo para a Pan-Amazônia os indígenas sairão do “apartheid” a que desde há séculos foram banidos pela sociedade majoritária. Deixarão de ser considerados “supérfluos” e “descartáveis” (cf. Documento de Aparecida, n. 65). Ocuparão de repente o centro da atenção de um Sínodo dos Bispos em nível mundial.
Ao mesmo tempo o Sínodo será a implementação da Encíclica “Laudato Sì” que fala explicitamente “Há lugares que requerem um cuidado particular pela sua enorme importância para o ecossistema mundial, ou que constituem significativas reservas de água assegurando assim outras formas de vida” (37). “Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta repletos de biodiversidade que são a Amazônia e a bacia fluvial do Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A importância destes lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode ignorar” (38).
O Sínodo assumirá a defesa intransigente da preservação do bioma Amazônia a bem de toda a humanidade. Será celebrado no Vaticano para assim também manifestar que os temas tratados não são apenas assuntos que interessam aos países que compõem a Amazônia, mas atingem do mundo inteiro.
Na convocação para o Sínodo o papa expressa atenção especial aos povos indígenas, o senhor afirma que os “indígenas sairão do ‘apartheid’”. E os povos tradicionais, as populações urbanas terão “lugar” no Sínodo?
Logicamente o Sínodo não tratará apenas da questão indígena embora os povos indígenas devam receber um enfoque especial por causa da ameaça de extinção que paira sobre muitos deles devido ao desrespeito às suas terras ancestrais e, no caso do Brasil, à propositada morosidade na demarcação de áreas indígenas exigida pela própria Constituição Federal. Em alguns países os povos indígenas são até maioria, mas na Amazônia brasileira são uma ínfima minoria em relação à população não-indígena. É exatamente por isso que esses povos merecem uma atenção específica.
A preparação para o Sínodo constitui-se em primeiro lugar num processo de ouvir o clamor de todos os povos independentemente de sua raça e cultura. Entra aí, sem dúvida, a questão dos afrodescendentes e quilombolas, dos ribeirinhos, dos atingidos por grandes projetos e dos às vezes paupérrimos moradores dos subúrbios não apenas das metrópoles, mas também das cidades menores.
Mesmo que seja uma salutar característica da Igreja na Amazônia leigas e leigos assumirem com muito carinho e competência a catequese, o culto dominical, a preparação para os sacramentos do batismo, da crisma e do matrimônio e outras responsabilidades nas suas comunidades, a escassez de sacerdotes é gritante. O número insuficiente de padres é a razão porque 70 % das comunidades na Amazônia brasileira só têm a graça de participar da celebração eucarística três a quatro vezes por ano. A Eucaristia, em vez de ser para a comunidade “a fonte e o ápice de toda a vida cristã” (Concílio Vaticano II, Lumen Gentium 11) se torna um ato litúrgico de exceção, quando o padre aparece algumas poucas vezes durante o ano.
No passado dia 8 de março o papa Francisco precisou o conteúdo do Sínodo “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e por uma ecologia integral”. Novos caminhos e Ecologia integral são os assuntos que dizem respeito a toda a Igreja, Povo de Deus na Amazônia. Cabe aqui recordar a frase inicial da Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II “Gaudium et Spes”: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos e discípulas de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1,1).
Como tem se articulado a Igreja para este evento, que irá inicialmente participar dos trabalhos e, mais tarde, do Sínodo e como podem colaborar os interessados na questão?
A convocação do Sínodo para a Amazônia tem seus “antecedentes”. O papa mesmo fala do “desejo de algumas Conferências Episcopais da América Latina”. Sem dúvida se refere como essas palavras também ao pedido dos 53 bispos presentes no II Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal (14 a 16 de novembro de 2016 em Belém do Pará) coordenado pela Comissão Episcopal para a Amazônia. Aí os bispos da Amazônia brasileira redigiram uma carta solicitando explicitamente a convocação de um Sínodo para a Amazônia.
Em seu discurso aos povos indígenas por ocasião de sua visita a Puerto Maldonado em 19 de janeiro de 2018 o Papa mais uma vez explicou o que o Sínodo para a Amazônia irá tratar. Lamentou mais uma vez que “os povos da Amazônia nunca foram tão ameaçados nos seus territórios como agora” e desenvolveu os temas que constam da convocação feita em 15 de outubro de 2017. O que o papa quer, é dar à Igreja que está na Amazônia “um rosto amazônico”. E declara que “O Sínodo para a Amazônia já começou”.
De fato, durante a sua visita a Puerto Maldonado foi realizada a primeira reunião em preparação ao Sínodo. Representantes da REPAM se reuniram com o Secretário-geral do Sínodo dos Bispos, Cardeal Lorenzo Baldisseri, que já foi Núncio Apostólico no Brasil.
Que tem significado a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) para a Amazônia?
A Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) foi fundada no mês de setembro de 2014 em Brasília (DF). As entidades fundadoras são o Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) através de sua Comissão Episcopal para a Amazônia (CEA), o Secretariado da América Latina e Caribe de Caritas (SELACC) e Confederação Latino-americana e Caribenha de Religiosos e Religiosas (CLAR).
Na realidade, já a V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, em Aparecida (13 a 31 de maio de 2007) sugeriu no seu texto conclusivo: “Criar nas Américas a consciência sobre a importância da Amazônia para toda humanidade. Estabelecer entre as Igrejas locais de diversos países sul-americanos, que estão na bacia amazônica, uma pastoral de conjunto com prioridades diferenciadas para criar um modelo de desenvolvimento que privilegie os pobres e sirva ao bem comum” (DAp 475).
A REPAM não é um movimento ou organismo a mais entre tantos já existentes, mas pretende ser realmente uma “rede” um tipo de “organização guarda-chuva” que busca o intercâmbio com os organismos e instituições eclesiais e civis existentes na Pan-Amazônia para promover e coordenar as diversas iniciativas em favor dos povos da Amazônia, empenhando-se mormente “na garantia dos direitos dos povos indígenas, ribeirinhos, afrodescendentes, moradores das cidades, mulheres, jovens, crianças e todas as pessoas empobrecidas e excluídas na região amazônica, na defesa da vida humana e da biodiversidade da região”.
A REPAM terá assim um papel fundamental na preparação do Sínodo para a Amazônia. O papa realmente está contando com as nossas contribuições para o Sínodo se tornar um marco na história da Igreja a bem dos povos da Amazônia e do meio-ambiente em que vivem mas também dos povos e do meio-ambiente do mundo inteiro.
O senhor faz parte do Conselho pré-sinodal, recém nomeado. Qual a função dos conselheiros?
O primeiro papa que criou um Conselho pré-sinodal foi o papa João Paulo II em 10 de setembro de 1995 para a Assembleia Especial para a Ásia do Sínodo dos Bispos que se realizou em abril/maio de 1998.
A função primordial dos membros do conselho pré-sinodal nomeados pelo papa Francisco é colaborar diretamente com a secretaria geral do sínodo na preparação das “Lineamenta” que é um tipo de questionário que vai ser dirigido a todas as Igrejas Locais da Pan-Amazônia com o objetivo de incentivar bispos, padres, religiosas/os, leigas e leigos a participarem do processo preparatório para o Sínodo em outubro de 2019. Este subsídio pretende suscitar um debate amplo sobre o tema proposto pelo próprio papa: os “novos caminhos para a Igreja” na Pan-Amazônia e “uma ecologia integral”.
Os povos da Pan-Amazônia terão de ser ouvidos. Certamente não se trata apenas de uma análise de conjuntura sócio-política ou eclesial, mas a Igreja precisa ouvir os gritos que vêm das florestas, das aldeias, das cidades, dos povoados, dos rios. Espera-se uma descrição realista da miséria em que tantas irmãs e irmãos nossos são condenados a viver.
Na reunião da REPAM em Puerto Maldonado, Peru, por ocasião da visita do papa Francisco foram escolhidos ainda cinco peritos-consultores que trabalharão os temas: o território Pan-Amazônico, dimensões da ministerialidade na Igreja da Pan-Amazônia, liturgia, teologia inculturada, eclesiologia, espiritualidade indígena e pastoral; inculturação e culturas amazônicas; história da Igreja na Pan-Amazônia.
Baseado nas respostas aos diversos quesitos do questionário (Lineamenta), o Conselho pré-sinodal elaborará junto com a Secretaria Geral do Sínodo o Instrumentum Laboris (Instrumento de trabalho) que é o Documento de Trabalho para a própria Assembleia Especial para a Pan-Amazônia do Sínodo dos Bispos.
*Parte desta entrevista foi publicada originalmente no Jornal O Maranhão, nas edições de fevereiro e março de 2018.
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Um Sínodo para a Amazônia: povos indígenas, populações tradicionais, populações urbanas; novos caminhos para Igreja e por uma ecologia integral - Instituto Humanitas Unisinos - IHU