Por: MpvM | 02 Março 2018
O diálogo proposto por João nos abre uma reflexão sobre a transformação dos sinais de Deus, que nasce de um gesto amoroso de cuidado e manutenção da liberdade dada por Ele aos homens e que, ao longo da história de Israel até os dias de Jesus, termina por ser absolutizada e ter o seu sentido modificado. Provoca-nos, ainda, a reflexão sobre as diversas absolutizações que eventualmente vamos realizando ao longo da vida, que nos afastam da pessoa de Jesus e transformam o nosso seguimento.
Alzirinha Souza, leiga, possui graduação em teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP, mestrado em teologia pela Universidad San Dámaso - Madrid, e doutorado em teologia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica. Atualmente é professora na Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Teologia na Universidade Católica de Pernambuco - Unicap, e é coordenadora do Centro de Pesquisa e Documentação José Comblin - Unicap.
Leituras de Referência
1ª Leitura: Ex 20, 1-17
Salmo 18 (19)
2ª Leitura: 1 Cor 1, 22-25
Evangelho: Jo 2, 13-25
O Terceiro Domingo da Quaresma nos apresenta um tema bastante próprio das relações humanas: a resistência que cada um de nós tem em aceitar e deixar-se conduzir pelos sinais e indicações que podem nos auxiliar numa transformação de vida. Nesse sentido, as leituras deste domingo nos mostram que o binômio “cuidado de Deus e resistência humana” perpassa toda a história do povo de Israel.
Na primeira leitura (Ex 20, 1-17), essa resistência nos é apresentada através do Decálogo, ou seja, um conjunto de tradições que se referem à aliança entre Jahweh e Israel. Em seu conjunto, a lista dos “dez mandamentos” ou das “dez palavras”, apesar de seu formato jurídico, quer unicamente auxiliar os filhos de Israel a exercerem uma forma de convivência que leve à manutenção da liberdade dada por Deus desde que os tirou da escravidão no Egito.
É nesse sentido que o decálogo está apresentado em dois vetores fundamentais da existência humana: o primeiro, dado pela relação das pessoas com Deus, e o segundo, pela relação das pessoas com seus próximos.
Para o primeiro vetor (relação entre as pessoas e Deus), podemos dizer que a questão central e essencial é esta: Jahweh deve ser e sempre será a referência fundamental para a vida de seu povo. “Não terás nenhum deus além de mim” (vers. 3) ou ainda “Não hás de invocar o nome do Senhor teu Deus em apoio que não tem fundamento” (vers. 7).
O segundo vetor composto pelos outros seis mandamentos faz referência aos cuidados que as pessoas devem ter quando se colocam em relação com seu próximo. Apresentados de forma direta (e eventualmente “dura”), esses mandamentos procuram indicar o respeito absoluto pelo próximo, sua vida, seus direitos na comunidade e seus bens. Recomendam a vinculação familiar (vers. 12), pedem que cada membro respeite a vida de seu povo (vers. 13), solicitam o respeito às relações familiares (vers. 14), exigem respeito aos bens alheios (vers. 15), e demandam o cuidado com as relações pessoais (vers. 16) e, finalmente, o respeito aos bens básicos que asseguram a vida aos membros da comunidade (vers. 17).
Ora, podemos nos perguntar: por que Deus apresenta essas propostas a Israel?. Qual o interesse de Deus em que Israel vivencie essas regras? A resposta encontra-se no início do texto: “Eu sou o Senhor teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”. Ao apresentar esse caminho de convivência, Deus está propondo um caminho para a manutenção da liberdade presenteada por Ele a Israel. Os mandamentos são, nesse sentido, indicações de como Israel comunitariamente pode dar continuidade ao projeto de Deus a partir da experiência de outra forma de viver. Infelizmente, ao relermos a história do povo de Israel, fica claro que nem sempre esses sinais foram assumidos e que, não raras vezes, ela seguiu caminhos próprios.
Essa dificuldade de seguimento das orientações de Deus que persiste ao longo da história nos é apresentada por Paulo na carta endereçada à comunidade de Corinto. Situada fora do contexto judaico, essa comunidade é fortemente influenciada pela cultura pagã e filosófica, gerando um ambiente adverso à proposta da fé cristã.
É nesse sentido que Paulo faz referência à busca de segurança de gregos e judeus. Os primeiros a buscam na sabedoria filosófica grega e os segundos buscam os milagres que pudessem garantir a veracidade da promessa feita pelo Deus de Isaac, Jacó e Abraão. Realmente, Jesus não cumpriu os critérios esperados para nenhum dos dois grupos. Não se apresentou nem como um Deus espetacular nem como um mestre filosófico iluminado. Por isso, a seus olhos, ele é considerado escândalo para os judeus e loucura para os gentios. A lógica “ilógica” de Deus quebra as expectativas, uma vez que está centrada na lógica amorosa, que é capaz de ampliar toda e qualquer racionalidade e ritualidade. Dirá o Apóstolo: “Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (vers. 25).
A ausência de confirmação de sinais a gregos e judeus é a questão de fundo refletida nos Evangelhos. João coloca a questão através do diálogo de Jesus e seus interlocutores no Templo de Jerusalém, às vésperas da festa de Páscoa. Esse detalhe nos parece significativo, primeiramente porque essa celebração fazia memória ao “grande sinal” ou “grande gesto” que Deus realizou com seu povo ao ouvir seu clamor: deu-lhe a liberdade, retirando-o da escravidão no Egito. Em segundo lugar, porque as questões propostas pelos interlocutores de Jesus passam também pela rigidez que os ritos assumiram e já se encontravam presentes nas considerações proféticas (Am 4, 4-5; 5, 21-25; Os 5, 6-7; 8, 13; Is 1, 11-17; Jer 7, 21-26), que haviam consolidado de alguma maneira que a chegada dos tempos messiânicos implicaria a purificação e a moralização do culto prestado a Jahweh no Templo, sobretudo em Zc 14, 21.
O gesto de Jesus, ao expulsar os vendedores de ovelhas, bois e pombas e destruir a mesa dos cambistas (vers. 14-16), nos fala de sua revelação como “o messias” ao mesmo tempo que anuncia novos tempos messiânicos. O detalhe do Evangelho de João é que nos diz que Jesus expulsa não somente as pessoas, mas os próprios animais utilizados nos ritos, significando em última instância que ele propõe não apenas a reformulação do culto, mas também a sua eventual abolição. Ao transformar o templo num mercado, os líderes religiosos suprimiram de alguma forma a presença de Deus. O culto que deveria ser um momento de aproximação entre Deus e as pessoas estabelece um movimento de exclusão, exploração, miséria e injustiça, afastando aqueles que não tinham condições de cumprir suas exigências.
Contudo, o diálogo de Jesus com seus interlocutores revela algo mais profundo: a ausência de compreensão e as diferentes lógicas assumidas por cada um. Jesus falava de si, de seu corpo (vers. 21), ao passo que os demais faziam referência ao Templo de pedra. O Templo no universo religioso judaico representava o lugar onde Deus se revelava e onde se tornava presente no meio de seu povo. Ao apresentar-se como um novo templo, Jesus afirma que ele é agora o lugar onde Deus reside, onde se encontra como ser humano e onde se manifesta ao mundo. O que a lei judaica não conseguia fazer, isto é, aproximar as pessoas de Deus, é renovado e reassumido na pessoa de Jesus, que é doravante o sinal definitivo da presença de Deus na história.
Finalizando, o diálogo proposto por João nos abre uma reflexão sobre a transformação dos sinais de Deus, que nasce de um gesto amoroso de cuidado e manutenção da liberdade dada por Ele ao ser humano e que, ao longo da história de Israel até os dias de Jesus, termina por ser absolutizada e ter o seu sentido modificado. Provoca-nos, ainda, a reflexão sobre as diversas absolutizações que eventualmente vamos realizando ao longo da vida, que nos afastam da pessoa de Jesus e transformam o nosso seguimento.
Que esse tempo de silêncio orante da Quaresma nos ajude, a cada dia, a aprofundar o reconhecimento de Jesus como sinal definitivo de Deus na história.
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3º Domingo da quaresma - Ano B - Jesus Cristo "lugar" de encontro com Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU