15 Outubro 2011
Entrevista com Walter Kasper – de 2001 até 2010 presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos –, que fez parte da delegação vaticana que acompanhou Bento XVI em sua viagem à Alemanha.
Na entrevista, o cardeal esboça um balanço da visita do Pontífice que, na sua opinião, levou o Papa não apenas à terra de Martinho Lutero, mas ao centro das problemáticas mais cruciais da Igreja universal.
A entrevista é de Guido Horst e está publicada no sítio Vatican Insider, 12-10-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Provavelmente, deverão passar décadas e décadas, senão séculos, antes que um papa alemão visite novamente sua pátria, a Alemanha. O que aconteceu em Berlim, Erfurt e Friburgo foi um acontecimento de envergadura histórica?
Determinar se a visita de um pontífice oriundo da Alemanha à sua terra natal será a última por muito tempo, eu o deixaria ao curso da história. A posteriori, a visita de Bento XVI foi um acontecimento histórico. Vivi o suficiente para conservar bem vivas na memória as imagens do Reichstag alemão na época em que os nazistas pisoteavam com satisfação o direito e a justiça e sancionavam leis anti-semitas, ou inclusive as imagens do Estádio Olímpico de Berlim em 1936 quando outro personagem muito diferente ingressou para ser aplaudido. Se agora, depois de três quartos de século, no mesmo espaço, hoje sede de um Parlamento democrático, um papa alemão pronuncia um discurso em que afirma que o direito e a justiça são o fundamento e o pressuposto das decisões majoritárias de qualquer assembleia que represente o povo; se hoje ele se reúne com delegados da comunidade hebraica e expressa sua satisfação pelo fato de que a vida dos hebreus na Alemanha tenha retomado seu curso; se se dirige ao Estádio Olímpico abarrotado de pessoas para celebrar uma liturgia na qual também tiveram uma participação emblemática expoentes de proveniência diferente (para expressá-lo no jargão nazista, "não arianos") da comunidade católica de Berlim, tudo isto só pode ser definido como um acontecimento histórico. Quando, depois, em Erfurt e em Eischfeld, visitando os novos Länder federais, o Papa agradece às pessoas por terem resistido, animadas pela coragem e por uma fé vigorosa, a dois regimes totalitários, tudo dá esperança e mostra o quanto a história muda e pode mudar também para bem. Devemos ser gratos a tudo isso.
Vamos agora aos pontos cardeais da visita do Papa. Bento XVI deixou na Alemanha, embora seguramente não apenas ali, um lema singular: "Entweltlichung der Kirche" (separação da Igreja do mundo). Em alemão, trata-se de uma expressão não recolhida no dicionário. O que significa?
O conceito de Entweltlichung (precisamente, "separação do mundo") introduzido no discurso do Papa surpreendeu inclusive a mim; deriva da teologia de Rudolf Bultmann, que precisamente neste tema não coincidia minimamente com a doutrina católica. Mas o Papa esclareceu inequivocamente o que queria dizer com esse conceito, que o entendia no sentido do Evangelho Segundo São João, que diz que nós cristãos vivemos "nesse mundo", certamente, mas não somos "deste mundo"; "neste mundo" significa que a Igreja não é uma jaula, mas que tem uma missão própria "neste mundo" e significa também que o cumprimento de sua missão está subordinado a meios terrenos. Portanto, não se pretende em absoluto aludir a uma retirada, a tomar distância do mundo. Mas, ao mesmo tempo, a Igreja não é "deste mundo", e então não deve adequar-se a qualquer custo, e os meios e as instituições do mundo não devem ser elevados a fins supremos que determinam e condicionam tudo. Sabendo que a Igreja na Alemanha está mais estruturada, institucionalizada e estabelecida que outras Igrejas locais, o Pontífice assinalou que seria oportuno verificar se em certos aspectos não se encontra muito assimilada às instituições terrenas, se não acolheu demais a lógica, se as estruturas se encontram ainda subordinadas à sua missão originária ou se, ao contrário, se converteram em uma espécie de obstáculo para ouvir e fazer o que hoje nos diz o Espírito Santo. São questões extremamente atuais para a Alemanha, e também um pouco para toda a Igreja universal.
Não é que a Igreja católica na Alemanha tem muito dinheiro?
O dinheiro não é mau em si, o problema é que constitui uma tentação para o homem. Depende da relação que se tiver com ele e o fim para o qual é utilizado. A Igreja na Alemanha faz muito e faz o bem, se se pensa nas muitas instituições assistenciais e de beneficência ou nas escolas, todos entes que não podem subsistir sem financiamentos. Além disso, a Igreja alemã faz muito pelos mais pobres dos países em dificuldade, e recolhe gratuidade e reconhecimento em nível mundial. Mas não podemos negar que o dinheiro se converteu em uma tentação também dentro da Igreja. Se o serviço eclesiástico se equiparar a uma espécie de aparelho burocrático, pode gerar confusão e ofuscação, induzindo a cultivar uma mentalidade de esperas e pretensões egoístas que excedem completamente o sentido do estilo de vida apostólico simples, como aquele que o Concílio exigiu do clero precisamente por uma questão de credibilidade. Se a Igreja dispõe de meios financeiros, certamente não os possui para manter-se e muito menos para tirar proveito deles, mas para doá-los aos pobres e necessitados. Sobre este ponto seria necessário refletir seriamente.
Você carrega dentro de si de maneira muito clara os conteúdos da fé católica. Mas para muitos católicos da Alemanha, inclusive entre os praticantes, em vez de uma sólida consciência da fé há um sentimento religioso muitas vezes frágil, que tende a exteriorizar-se nos atos de culto da Igreja. O que se deve fazer quando os veículos de transmissão de uma fé clara em seus conteúdos vacilam perigosamente?
E aqui chegamos justamente à questão moral da visita do Pontífice à Alemanha. O que mais lhe era urgente e lhe urge é a renovação e o aprofundamento da fé. Estes objetivos frente à ruptura com a tradição, a um rompimento aterrador desses como a solidez da fé e a diminuição da fé para um sentimento muitas vezes vago e indefinido são o grande desafio. Tive a sensação de que o Papa queria, sobretudo, despertar a consciência em relação a isso e devolver a justa posição a estes critérios. As reformas externas que não tiverem seu fundamento na fé e que não estiverem apoiadas em um entusiasmo pela fé são um ativismo cego e histérico, carente de sentido e à deriva.
Vamos à Ecumene, um ponto proeminente da estada de Bento XVI em Erfurt. Não houve concessões, nem presentes de cortesia, nem "progressos" concretos... Você, enquanto ex-"ministro da Ecumene" do Vaticano, se sentiu desiludido com esta etapa da visita do Papa?
Só quem tinha expectativas equivocadas ou completamente irreais pode se sentir desiludido. Nenhuma pessoa dotada de juízo poderia ter esperado que o Papa, por ocasião de sua visita, renunciasse a posições fundamentais para a Igreja católica no que diz respeito à compreensão da fé apenas para oferecer um "presente, um gesto de cortesia", ou que dissesse: "A partir de amanhã tudo muda". Tais expectativas se instilam apenas para preparar o terreno da desilusão e gerar mau humor em relação ao Papa e à Igreja católica. Deste modo, se perdeu de vista o verdadeiro presente do Papa a Erfurt: sua visita ao ex-convento agostiniano em que Martinho Lutero morou como jovem, ali onde Lutero, afastado da antiga polêmica católica e da teologia da controvérsia, trabalhou como cristão que tinha como prioridade Deus e sua Graça; além disso, o Pontífice se expressou com gratidão pelos resultados do diálogo e, por último, junto com os altos expoentes da Igreja protestante, celebrou uma Liturgia da Palavra, plenamente válida também de acordo com a compreensão evangélica, todas coisas que até há poucas décadas eram completamente inimagináveis. Sobretudo este último acontecimento ultrapassa o encontro de João Paulo II com os representantes do Conselho da Igreja Evangélica em Magonza, em 1980. Tudo isto coloca em evidência, confirma e impulsiona o progresso ecumênico.
Por ocasião da reunião do Papa com os expoentes da Igreja Evangélica na Alemanha, se voltou várias vezes ao tema do 500º aniversário da Reforma, em 2017. Também a Igreja católica deseja expressar-se a respeito, como disse o próprio Papa. De que modo?
2017 não será um momento importante apenas para os cristãos evangélicos, mas também para os católicos. Se, de fato, não celebramos a Reforma, podemos comemorá-la, tendo em conta que esta representou uma pauta histórica e fatal para as duas Igrejas e para o nosso país, que incide ainda hoje na vida em comum. Tanto na Alemanha como em nível internacional, os especialistas há anos vêm trabalhando para a predisposição de uma declaração comum de intenções. Nela, sem pretender mascarar as diferenças existentes, poderemos afirmar que no século XVI houve culpa de ambas as partes, mas que estamos contentes com o fato de que houve uma aproximação concreta, que estamos decididos a continuar o caminho ecumênico e que rezamos para que se dispense generosamente a graça da união. E, pessoalmente, sinto que estamos em um bom ponto nessa direção.
Tanto na vigília como durante a visita do Pontífice houve alguns "temas candentes" que tiveram seu peso. Entre estes, por exemplo, a falta de sacerdotes na Alemanha, por um lado, e a confirmação do celibato dos sacerdotes, de outro. Os chamados viri probati (homens provados), seriam verdadeiramente uma solução para o problema do déficit das comunidades sacerdotais?
A falta de vocações para a vida religiosa ou sacerdotal é obviamente um problema pastoral sério que não incumbe apenas a Alemanha, mas, com as oportunas diferenças, a quase todos os países do mundo ocidental. As causas são múltiplas e seria superficial postular o problema apenas com relação à questão do celibato. Há menos crianças e menos jovens, e destes apenas uma pequena parte está comprometida no âmbito da Igreja; há também menos famílias com um sólido compromisso cristão e eram precisamente estas as que constituíam no passado o primeiro e mais prolífico "seminário sacerdotal". Os viri probati, em uma situação deste tipo, são apenas uma solução aparente que ofuscaria a realidade dos fatos de que precisamente no contexto atual necessitamos de sacerdotes que estejam tão "loucamente apaixonados" por Deus e pela Igreja que sejam capazes de sacrificar tudo por eles.
Ouve-se sempre que na práxis se é extremamente generoso quando se trata de dispensar a Comunhão aos divorciados com segunda união. Até que ponto um sacerdote pode satisfazer o desejo destas pessoas de receber a Comunhão?
Que o problema existe e que não existe apenas na Alemanha é um fato que emergiu nas últimas semanas em uma série de encontros, inclusive casuais, que tive com párocos e sacerdotes romanos, que chamaram a atenção para a exigência de falar do tema, confirmando e renovando o que eu já sabia a respeito. A questão é complexa, também porque tem a ver com situações muito diferentes entre si, que não podem ser enquadradas em categorias definidas. Por esta razão, é necessário excluir uma solução generalizada e aproximativa. Não é possível esgotar o argumento de modo responsável e satisfatório e esclarecer em que exceções ou casos é possível encontrar soluções no pouco tempo e espaço de uma entrevista. Na minha opinião, o que conta é que acompanhemos no plano pastoral com compreensão e participação aqueles que se encontram em uma determinada situação e sofrem, sem desmentir a palavra de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimônio e sem tirar importância da Eucaristia equiparando-a a algo de pouca importância, a uma mercadoria de baixo custo.
Diante da presença dos representantes do Comitê Central de Católicos alemães, o Papa falou do "excesso das estruturas em relação ao Espírito", referindo-se concretamente também à Igreja na Alemanha, e exortou a tomar "novos caminhos de evangelização". Quais, por exemplo?
A neoevangelização em nossa situação atual é um ponto de partida fundamental a nível pastoral. Neste contexto, só posso esboçar em grandes linhas algumas observações. Não devemos depositar tanta confiança nos acontecimentos especiais que, depois, em sua maioria, se traduzem em entusiasmo passageiro. A nova evangelização começa por cada cristão, que deve sair ao ar livre e professar-se em seu ambiente social, onde deve dar testemunho e dizer que é feliz por ser cristão e porque o é. E não deve dizê-lo apenas com palavras, mas demonstrar com sua vida e seu comportamento que ser cristão é um dom magnífico e fascinante. A tarefa da Igreja é a de dar aos jovens e adultos cristãos os instrumentos informativos, argumentativos e de oratória necessários. Então, devemos refletir sobre como reorganizar hoje a posta em funcionamento da fé e a tramitação formativa da fé (desde sempre tarefas fundamentais da Igreja) com os meios atualmente disponíveis. Evidentemente, a hora de religião na escola ou a catequese na paróquia para o acesso aos Sacramentos já não é suficiente. É importantíssimo revalorizar a pregação, graças à qual de domingo em domingo temos a possibilidade de nos dirigirmos a milhares de pessoas. Que outra instituição tem uma oportunidade semelhante? Deveríamos otimizar a pregação. Embora sejam poucos aqueles que se deixam "contagiar" pelo amor divino em nível mais íntimo e interior, o efeito se produz e é de todos os modos o de um "contágio" expansivo. Em síntese: a nova evangelização não é uma tarefa a mais que se agrega a tantas outras obrigações, nem é uma tarefa extraordinária, mas um impulso que deve se expressar na vida cotidiana dos cristãos e da comunidade. Espero que a visita do Papa tenha sido um importante estímulo neste sentido. No próximo ano, o Sínodo Mundial dos Bispos constituirá um primeiro intercâmbio de experiências sobre este tema e proporcionará novos impulsos.
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As reformas na Igreja? Sem fé são um ativismo vazio. Entrevista com Walter Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU