12 Abril 2018
Deixemos de materializar as narrativas de Páscoa, para não reduzir o conteúdo e o significado profundo. Essas narrativas nos dizem respeito, pois temos a possibilidade de reencontrar o Ressuscitado e a obrigação de testemunhar para que outros possam também encontrá-lo... E é pelo amor que nós faremos que os outros o reconheçam.
A reflexão é de Raymond Gravel, (+2014) sacerdote do Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do 3º Domingo de Páscoa - Ciclo B. A tradução é de Susana Rocca.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
2ª leitura: 1 Jo 2,1-5
Evangelho: Lc 24,35-48
Nesse ano do ciclo B da liturgia, passamos de Marcos a João e de João a Lucas para mostrar toda a riqueza das manifestações do Cristo Ressuscitado aos discípulos da primeira hora. Depois da sua presença física perto dos seus, Jesus agora não está mais presente segundo a carne, mas segundo o Espírito. E a experiência do primeiro dia da Páscoa ainda dura, porque esse dia não termina: trata-se da experiência do testemunho: “E vocês são testemunhas disso” (Lc 24,48). Que mensagens podemos tirar das leituras bíblicas de hoje?
No evangelho de Lucas, o dia de Páscoa é o dia mais longo do ano... é um dia que não termina. De manhã bem cedo, umas mulheres vão ao cemitério para visitar um morto e recebem uma mensagem dizendo que ele está vivo e elas recebem como missão anunciá-lo aos discípulos (Lc 24,1-10). Os discípulos não acreditam nelas; eles dizem que as mulheres deliram (Lc 24,11). Chegada a noite, dois discípulos caminham até Emaús, a duas horas a pé de Jerusalém, e no caminho eles encontram um estrangeiro que lhes acalenta o coração com a sua Palavra. Os dois discípulos convidam o estrangeiro para ir a sua casa, pois está tarde e eles reconhecem o Ressuscitado nesse estrangeiro, quando ele parte o pão e o divide com eles (Lc 24,13-32). Logo, esses dois discípulos voltam para Jerusalém (mais duas horas de caminhada), para reencontrar os outros discípulos reunidos (Lc 24,33-34). Chegados a Jerusalém, segundo o evangelho de hoje, os discípulos de Emaús contam aos outros discípulos a sua experiência do Ressuscitado (Lc 24,35). Estamos no mesmo dia; já está ficando tarde... Enquanto eles contam, Cristo se faz presente no meio deles, desejando-lhes a paz, como no evangelho de João, na semana anterior (Lc 24,36). E lá São Lucas nos dá uma catequese sobre a missa; ele nos faz assistir a uma eucaristia como lugar de encontro e de reconhecimento do Ressuscitado (Lc 24,37-48). Depois dessa eucaristia, o Cristo Ressuscitado leva os discípulos a Betânia, outra pequena cidade no sul de Jerusalém, desta vez para abençoá-los e elevar-se no céu (Lc 24,50-51). Após a Ascensão, sempre no mesmo dia, os discípulos voltam para Jerusalém, ao templo, para bendizer a Deus (Lc 24,52). Finalmente, Lucas salienta: “E estavam sempre noTemplo, bendizendo a Deus” (Lc 24,53).
Em 1991, na revista Sinais de hoje (Signes d’aujourd’hui), o teólogo Marcel Metzger formula a seguinte pergunta: “A que horas os discípulos de Emaús foram deitar na noite da Páscoa?” É uma boa pergunta, se fizermos uma leitura literal do texto... Ao mesmo tempo, encontramos várias incoerências: no tempo bíblico, à noite, não dá para circular... Não há luz. Se todos esses movimentos na noite foram sem luz, como eles conseguiram ver Jesus subir ao céu em plena noite? No fundo, o que Lucas quer nos fazer compreender através dessa narrativa é que a Páscoa é uma nova aventura, um novo dia para a Igreja que é um sinal da presença do Ressuscitado através dos seus discípulos, os cristãos de todos os tempos. Essa nova aventura não se termina; ela continua na Igreja de hoje. É um dia novo que ainda dura... Nós estamos sempre no domingo de Páscoa!
Como no evangelho de João, a morte-ressurreição de Jesus são dois eventos inseparáveis para a fé cristã. Que devemos reter dessa presença do Ressuscitado? Há semelhanças em todos os evangelhos em relação à Ressurreição de Cristo: todos afirmam que o sepulcro está vazio, que Jesus está vivo, que aqueles e aquelas que o viram não o reconheceram imediatamente e que a dúvida e o medo fazem parte da experiência de fé daqueles e daquelas que o encontraram. O que significa que o Cristo Ressuscitado não é o cadáver reanimado de Jesus de Nazaré; é o Crucificado transformado pela Páscoa: “Vejam minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo.Toquem-me e vejam: um espírito não tem carne e ossos, como vocês podem ver que eu tenho” (Lc 24,39). E para dizer que ele é o mesmo sendo completamente diferente daquele que eles conheceram nos caminhos da Galileia, após lhes ter pedido algo para comer (Lc 24,41), o Ressuscitado: “Jesus pegou o peixe, e o comeu diante deles” (Lc 24,43), não com eles, mas diante deles, para significar, segundo o teólogo Gérard Sindt, que “comer se torna aqui uma prova da verdade de um ser em relação que abole as distâncias mantendo-as por sua vez”.
Mas por que essa insistência sobre a materialidade do Ressuscitado no evangelho de Lucas? São Lucas conhece muito bem a teologia de São Paulo que diz que a Igreja é o Corpo de Cristo Ressuscitado através dos seus discípulos, que são seus membros. É, então, através deles que Cristo pode se manifestar não como fantasma, mas como ser humano, de carne e osso: “Espantados e cheios de medo, pensavam estarvendo um espírito” (Lc 24,37). “Então Jesus disse: Por que vocês estão perturbados, e por que o coração de vocês está cheio de dúvidas? (Lc 24,38). “Vejam minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo.Toquem-me e vejam: um espírito não tem carne e ossos, como vocês podem ver que eu tenho” (Lc 24,39). Mas quem é ele então? Ele é aqueles e aquelas que levam as marcas da sua paixão (nós estamos em plena perseguição), que anunciam a sua Palavra abrindo os espíritos à inteligência das Escrituras, que repartem o pão, e que proclamam, em seu nome, o perdão dos pecados para todos. Esses são as primeiras testemunhas da Páscoa.
Por que as narrativas das aparições aos discípulos? Simplesmente para fazer dos discípulos da Igreja primitiva testemunhas oficiais da Páscoa: “E vocês são testemunhas disso” (Lc 24,48). Ainda hoje é possível fazermos a experiência do Ressuscitado como no primeiro tempo da Igreja. A única diferença é que fica impossível para nós compararmos essa presença do Ressuscitado com aquela de Nazareno, tal como os primeiros cristãos podiam fazer. Porém, seus testemunhos deveriam nos bastar.
Os discípulos da primeira hora conheceram a Jesus de Nazaré; eles lhe viram morrer, eles o reencontraram na Igreja do século I e eles puderam verificar a autenticidade do Ressuscitado como a continuidade de Jesus de Nazaré que eles conheceram, amaram e seguiram. Então, eles se tornam testemunhas privilegiadas, e as experiências ulteriores do Ressuscitado se fundam necessariamente nos seus testemunhos. É sobre a fé das primeiras testemunhas que se exprime nossa própria fé em Cristo. No século IV, Santo Agostinho tinha uma forma bem característica dele de expressar essa realidade. No seu sermão 116, sobre o evangelho de hoje, ele escreve. : “O Cristo total se deu a conhecer a eles (seus discípulos) e se deu a conhecer a nós. Eles viram a cabeça (Jesus) e eles acreditaram no corpo (Igreja). Nós vimos o corpo (Igreja) e acreditamos na cabeça (Jesus). Porém, o Cristo não se oculta para ninguém: ele é e está completamente inteiro em nós e, portanto, seu corpo permanece unido a ele”.
Para concluir, na 2ª leitura de hoje, São João lembra que para conhecer Jesus Cristo, precisamos fazer a experiência do Amor: “Quem diz que conhece a Deus, mas não cumpre os seus mandamentos, é mentiroso, e a Verdade não está nele” (1 Jo 2,4). “Por outro lado, o amor de Deus se realiza de fato em quem observa a Palavra de Deus. É assim que reconhecemos que estamos com ele” (1 Jo 2,5). Deixemos de materializar as narrativas de Páscoa, para não reduzir o conteúdo e o significado profundo. Essas narrativas nos dizem respeito, pois temos a possibilidade de reencontrar o Ressuscitado e a obrigação de testemunhar para que outros possam também encontrá-lo... E é pelo amor que nós faremos que os outros o reconheçam.
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Páscoa, um novo dia que dura ainda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU