O caleidoscópio da direita radical no Sul Global. Entrevista especial com Tatiana Vargas Maia

Contexto do fenômeno no século XXI exige nova abordagem para analisar o que se passa nas sociedades da região. Reconfiguração dos paradigmas que caracterizavam as forças reacionárias foge do esquema convencional da direita

Foto: Alan Santos/PR

Por: Márcia Junges | 15 Abril 2025

“A direita radical contemporânea configura-se como categoria conceitual de maior abrangência e versatilidade analítica, capaz de apreender manifestações políticas que, embora compartilhem elementos autoritários e antiliberais, não derivam diretamente do legado fascista histórico”, observa a pesquisadora Tatiana Vargas Maia em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Em sua análise, “em vez da destruição formal e abrupta das instituições democráticas, a nova direita radical opera mediante uma progressiva colonização dos espaços institucionais democráticos, provocando, de forma gradual, seu esvaziamento interno”. Faz-se imprescindível uma outra estrutura analítica para estudar o fenômeno da extrema-direita no Sul Global, o que “não passa apenas pela inclusão de novos casos na discussão, mas sim por uma necessária renovação teórica e metodológica que reconheça as limitações das teorias eurocêntricas e desenvolva conceitos e abordagens capazes de apreender as complexidades políticas de sociedades marcadas por histórias, culturas e realidades socioeconômicas distintivas”.

Tatiana traça uma linha demarcatória importante para diferenciar a direita radical, o neofascismo e o pós-fascismo. “O neofascismo caracteriza-se pela manutenção de vínculos explícitos e deliberados com o fascismo histórico do período entreguerras, não apenas em termos estéticos e simbólicos, mas principalmente em sua fundamentação ideológica essencial”. Por outro lado, o pós-fascismo “representa uma adaptação estratégica que preserva elementos nucleares da ideologia fascista, simultaneamente reconfigurando sua expressão pública para viabilizar sua existência em ambientes formalmente democráticos. Opera, assim, um revisionismo seletivo que permite a manutenção de continuidades substanciais com o legado fascista, enquanto abandona seus aspectos mais explicitamente comprometedores”.

Tatiana Vargas Maia (Foto: Arquivo pessoal)

Tatiana Vargas Maia é doutora em Ciência Política pela Southern Illinois University – Carbondale (2016), mestra em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (2006), bacharela em História pela mesma instituição (2006) e bacharela em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) (2004). Leciona no Departamento de Economia e Relações Internacionais e no Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) da UFRGS. Acaba de publicar Uma Introdução às Relações Internacionais (Blucher, 2025) e, com Rosana Pinheiro-Machado, organizou The Rise of the Radical Right in the Global South (Routledge, 2023).

Confira a entrevista.

IHU – Em linhas gerais, em que consiste a nova direita radical no Sul Global?

Tatiana Vargas Maia – A direita radical no Sul Global do século XXI se configura como um fenômeno político contemporâneo complexo e multifacetado, caracterizado por uma leitura singular de ideologias e estratégias tradicionalmente associadas a movimentos de extrema-direita em contextos ocidentais, mas reconfiguradas para responder às realidades específicas de sociedades pós-coloniais, em desenvolvimento ou emergentes. Compreender tais manifestações políticas contemporâneas exige transcender a simples transposição de modelos elaborados a partir da experiência de sociedades do Norte Global e considerados hegemônicos; demanda compreender essa expressão política a partir de suas características próprias e distintivas.

Em sua essência, estes movimentos políticos emergem da interseção de dinâmicas globais com particularidades locais, articulando respostas autoritárias, nacionalistas e reacionárias a desafios contemporâneos como as tensões provocadas pela globalização econômica, as transformações culturais e as crises de representação política, criando uma síntese ideológica que desafia categorizações simplistas.

Essa expressão contemporânea da direita radical frequentemente mobiliza sentimentos de insatisfação popular com elites políticas e econômicas tradicionais, canalizando frustrações com promessas não cumpridas de modernização e desenvolvimento. Ela se apropria de valores religiosos e tradicionais como fontes para a legitimidade política e para a proposição de um novo horizonte moral, posicionando-se como defensora de identidades nacionais supostamente ameaçadas não necessariamente por forças externas, mas muitas vezes por minorias étnico-raciais e sexuais domésticas.

Em contextos pós-coloniais, estes movimentos por vezes articulam discursos que combinam elementos de soberania nacional com alinhamento a potências conservadoras globais e uma retórica que busca a reafirmação e consolidação de hierarquias internas de poder baseadas em raça, religião ou etnia. Esta aparente contradição reflete a complexidade das formações políticas no Sul Global e a necessidade de líderes e movimentos desta direita radical de responder simultaneamente a dinâmicas e pressões que são locais e globais.

Assim, a direita radical no Sul Global, nas primeiras décadas do século XXI, não representa meramente um reflexo tardio de fenômenos políticos ocidentais, mas uma expressão político-ideológica própria, que emerge das tensões e contradições específicas dos processos de modernização, democratização e desenvolvimento incompletos em sociedades marcadas por legados coloniais, desigualdades estruturais e tensões entre tradição e modernidade.

IHU – Por que razões é necessária uma nova estrutura para estudar a extrema-direita no Sul Global?

Tatiana Vargas Maia – A compreensão dos movimentos de extrema-direita contemporâneos no Sul Global demanda uma reconsideração das teorias convencionais acerca da consolidação e atuação da extrema-direita, desenvolvidas sobretudo a partir de experiências europeias e norte-americanas. Esta necessidade não representa apenas uma questão de adaptação de modelos preexistentes, mas sim o reconhecimento de que os contextos pós-coloniais produzem configurações políticas singulares que exigem ferramentas interpretativas próprias e adequadas às suas realidades.

As abordagens hegemônicas sobre movimentos de extrema-direita estão profundamente enraizadas nas experiências fascistas europeias, nas dinâmicas da Guerra Fria e nas transformações pós-industriais das democracias ocidentais estabelecidas. Tal perspectiva, ainda que valiosa para seus contextos originais, tem uma capacidade explicativa limitada quando transplantada para sociedades marcadas por trajetórias coloniais, processos de independência tardia, democratizações incompletas e modernizações desiguais. Estas limitações resultam em interpretações reducionistas que frequentemente falham em captar as complexidades e particularidades dos fenômenos políticos no Sul Global.

Os legados coloniais e as persistentes assimetrias nas relações internacionais configuram-se como elementos fundamentais para a compreensão da extrema-direita nestas regiões. Diferentemente de seus correlatos ocidentais, que têm elegido os grupos de imigrantes como alvo de insatisfação e bode expiatório para muitos dos problemas vividos por suas sociedades, os movimentos no Sul Global frequentemente incorporam elementos de um nacionalismo orientado contra inimigos internos – repetidamente identificados como minorias étnicas-raciais e sexuais.

A relação entre religião, etnicidade e política no Sul Global também apresenta características particulares que escapam às formulações teóricas desenvolvidas para compreender o secularismo ocidental ou o cristianismo político europeu e norte-americano. As dinâmicas entre diferentes tradições religiosas, seu papel na formação de identidades nacionais pós-coloniais e sua mobilização política contemporânea requerem análises que reconheçam estas especificidades histórico-culturais, evitando analogias simplistas com fenômenos ocidentais.

Nova estrutura analítica

As configurações econômicas peculiares destas sociedades, caracterizadas por industrializações tardias, inserções subordinadas na economia global e profundas desigualdades internas, também moldam distintivamente estes movimentos políticos. A relação das elites econômicas locais com o capital transnacional, bem como as tensões entre desenvolvimentismo e ortodoxia econômica, assumem contornos particulares que não encontram paralelo direto nos contextos onde foram originalmente desenvolvidas as teorias sobre extrema-direita.

Os processos de democratização recentes ou incompletos em muitas destas sociedades, com frequência marcados por legados de regimes autoritários, militares ou de partido único, criam arranjos institucionais distintos daqueles das democracias ocidentais. Esta realidade demanda uma reconsideração das relações entre autoritarismo, populismo e extremismo de direita, reconhecendo como estas categorias se manifestam e interagem de formas particulares em contextos de fragilidade institucional democrática.

Portanto, a proposta de uma nova estrutura analítica para o estudo da extrema-direita no Sul Global não passa apenas pela inclusão de novos casos na discussão, mas sim por uma necessária renovação teórica e metodológica que reconheça as limitações das teorias eurocêntricas e desenvolva conceitos e abordagens capazes de apreender as complexidades políticas de sociedades marcadas por histórias, culturas e realidades socioeconômicas distintivas. Esta reorientação teórica possibilita não apenas uma compreensão mais precisa destes fenômenos em seus próprios termos, mas também contribui para uma teoria política mais abrangente.

IHU – Conceitualmente, quais as diferenças e semelhanças entre a nova direita radical, o neofascismo e o pós-fascismo? Por que vocês optaram pela terminologia direita radical?

Tatiana Vargas Maia – A demarcação conceitual entre nova direita radical, neofascismo e pós-fascismo constitui um exercício teórico fundamental para a compreensão rigorosa dos fenômenos políticos autoritários contemporâneos. Estas categorias, embora relacionadas e por vezes sobrepostas e utilizadas de maneira intercambiada, apresentam diferenças substantivas que refletem diferentes genealogias históricas, repertórios ideológicos e estratégias de ação política, particularmente quando analisadas no contexto das sociedades do Sul Global.

O neofascismo caracteriza-se pela manutenção de vínculos explícitos e deliberados com o fascismo histórico do período entreguerras, não apenas em termos estéticos e simbólicos, mas principalmente em sua fundamentação ideológica essencial. A defesa aberta da violência como método legítimo de ação política, o culto à militarização da sociedade e a glorificação nostálgica dos regimes fascistas clássicos constituem seus traços distintivos. O partido grego Aurora Dourada exemplifica esta vertente, com sua apologia explícita a símbolos nazistas e práticas de intimidação violenta contra minorias étnicas e adversários políticos. No entanto, esta manifestação política apresenta uma expressão relativamente fraca nos contextos do Sul Global.

O pós-fascismo, por sua vez, representa uma adaptação estratégica que preserva elementos nucleares da ideologia fascista, simultaneamente reconfigurando sua expressão pública para viabilizar sua existência em ambientes formalmente democráticos. Opera, assim, um revisionismo seletivo que permite a manutenção de continuidades substanciais com o legado fascista, enquanto abandona seus aspectos mais explicitamente comprometedores. O caso de Giorgia Meloni e do partido Fratelli d’Italia ilustra esta modalidade, com sua simultânea rejeição de manifestações explícitas como saudações romanas e manutenção de uma relação ambígua com o legado mussoliniano. Esta vertente também encontra uma expressão mais limitada nas sociedades do Sul Global, onde as referências históricas mobilizadas tendem a diferir do repertório fascista europeu.

A direita radical contemporânea configura-se como categoria conceitual de maior abrangência e versatilidade analítica, capaz de apreender manifestações políticas que, embora compartilhem elementos autoritários e antiliberais, não derivam diretamente do legado fascista histórico. Este conceito abarca fenômenos como o populismo de classe média exemplificado por Javier Milei na Argentina, que articula discursos libertários radicais com profundo antiestatismo e mobiliza significativos segmentos da juventude urbana, bem como o conservadorismo revolucionário de figuras como Viktor Orbán na Hungria, que combina ataques sistemáticos às agendas progressistas com fortalecimento institucional de organizações religiosas tradicionais e retórica nacionalista.

Esvaziamento democrático

A opção terminológica pela designação “direita radical” fundamenta-se na constatação de que estes movimentos contemporâneos não adotam estratégias revolucionárias explícitas no sentido clássico, distinguindo-se assim do fascismo histórico. Em vez da destruição formal e abrupta das instituições democráticas, a nova direita radical opera mediante uma progressiva colonização dos espaços institucionais democráticos, provocando, de forma gradual, seu esvaziamento interno. Essa estratégia, que poderíamos caracterizar quase como uma abordagem metapolítica, permite que esses movimentos mantenham uma fachada de legalidade constitucional enquanto subvertem os fundamentos substantivos da democracia liberal.

No contexto do Sul Global, a opção por falar de uma direita radical parece ser a mais adequada, pois permite capturar as particularidades de movimentos políticos que, embora compartilhem características com seus congêneres ocidentais, respondem a configurações históricas, sociais e culturais distintas.

IHU – Em que medida essa expressão política se diferencia das configurações anteriores da direita?

Tatiana Vargas Maia – A consolidação da direita radical no contexto político contemporâneo do Sul Global no século XXI representa uma reconfiguração significativa dos paradigmas tradicionais que historicamente caracterizaram as forças reacionárias nestas sociedades. Este fenômeno político introduz inovações substantivas que transcendem as manifestações convencionais da direita, estabelecendo rupturas estruturais e programáticas que demandam análise aprofundada.

Historicamente, a direita no Sul Global manifestou-se predominantemente mediante uma configuração dual: por um lado, constituiu-se de elites oligárquicas tradicionais, compostas por latifundiários, industriais nacionais e altos escalões militares, como exemplificado pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA) durante o regime militar brasileiro (1964-1985); por outro lado, incorporou tecnocratas neoliberais, particularmente visíveis nas equipes econômicas conhecidas como “Chicago Boys”, que implementaram radicais reformas estruturais no Chile sob o governo autoritário de Augusto Pinochet. Esta composição refletia uma articulação entre conservadorismo social, autoritarismo político e liberalismo econômico ortodoxo, operando principalmente por meio de instituições estatais formais e com limitada capacidade de mobilização popular autônoma.

A direita radical contemporânea introduz transformações paradigmáticas nesta configuração tradicional. No âmbito econômico, observa-se uma notável hibridização programática que concilia elementos aparentemente contraditórios: por um lado, defesa intransigente de políticas neoliberais ortodoxas em setores como previdência social e direitos trabalhistas, exemplificada pela atuação do ministro Paulo Guedes no governo Bolsonaro; por outro, a implementação de medidas protecionistas e intervencionistas, como evidenciado nas políticas comerciais adotadas por Donald Trump. Esta flexibilidade pragmática contrasta com um certo dogmatismo econômico que caracterizava a direita tradicional.

Terceirização da violência política

Uma inovação particularmente significativa consiste na capacidade de cooptação estratégica de movimentos sociais e categorias profissionais tradicionalmente não associados à direita política. No Brasil, o fenômeno bolsonarista demonstrou notável habilidade na absorção e ressignificação das demandas de grupos como os caminhoneiros, transformando-os em expressiva base de mobilização popular e ampliando significativamente seu alcance social para além das elites econômicas e classes médias tradicionalmente associadas às forças conservadoras. Esta capacidade de estabelecer conexões com setores populares representa uma ruptura com o elitismo histórico das direitas tradicionais.

Estes movimentos caracterizam-se, adicionalmente, por uma progressiva privatização dos mecanismos de violência política, evidenciada na crescente utilização de estruturas paramilitares que operam paralelamente às instituições estatais formais – aqui, a questão das milícias no Brasil é bastante significativa. Esta terceirização da violência política permite que tais movimentos mantenham uma fachada de legalidade constitucional ao mesmo tempo que exercem controles territoriais e sociais que escapam aos mecanismos convencionais de responsabilização democrática.

Esta reconfiguração representa, portanto, não apenas uma atualização tática ou estratégica das direitas tradicionais, mas uma transformação substantiva em suas estruturas organizacionais, bases sociais e métodos de operação política, constituindo um fenômeno qualitativamente distinto das experiências pregressas, e que desafia interpretações baseadas exclusivamente em paradigmas históricos convencionais.

IHU – No caso brasileiro, quando essa nova direita radical se consolida e quais as suas principais estratégias e modus operandi?

Tatiana Vargas Maia – A emergência e consolidação da direita radical contemporânea no cenário político brasileiro constitui um processo complexo, que pode ser dividido em três fases, caracterizadas por dinâmicas políticas e sociais distintivas que progressivamente configuraram o terreno para sua expressão institucional.

O primeiro período, compreendido entre 2005 e 2013, foi marcado pela intensificação de dois processos paralelos e complementares: por um lado, a crescente organização e visibilidade política do movimento evangélico neopentecostal, que extrapolou sua dimensão estritamente religiosa para constituir-se como força política organizada, materializada em eventos massivos como a Marcha para Jesus, que progressivamente incorporou figuras políticas de expressão nacional. Simultaneamente, observou-se o gradual desgaste da credibilidade do Partido dos Trabalhadores junto a segmentos significativos da classe média, processo intensificado pelo mensalão e pela cobertura midiática sistemática de denúncias de corrupção. Este período estabeleceu as bases do antagonismo político, um antipetismo, que posteriormente seria radicalizado.

O segundo período, entre 2013 e 2016, representou um ponto de inflexão decisivo na trajetória política nacional. As Jornadas de Junho de 2013, inicialmente caracterizadas por uma pluralidade de reivindicações e orientações ideológicas, progressivamente transformaram-se em plataforma de canalização do descontentamento ambíguo contra o sistema político tradicional e, particularmente, contra o governo petista. A subsequente crise econômica (ainda reflexo do crash de 2008) e o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff catalisaram e amplificaram o sentimento antipetista, permitindo sua articulação em um movimento político estruturado, que extrapolou a oposição conjuntural para constituir-se como projeto alternativo de poder.

Transformações estruturais

O terceiro período, entre 2016 e 2018, consolidou as condições para a institucionalização dessa direita radical. A operação Lava Jato mobiliza e galvaniza o eleitorado brasileiro, um processo que abriu espaço para a emergência de figuras políticas que se apresentavam como “outsiders”, exemplificada paradigmaticamente por Jair Bolsonaro, cuja trajetória parlamentar de quase três décadas foi ressignificada como expressão de insurgência contra o “sistema”. Esta fase culminou na eleição presidencial de 2018, que representou não apenas uma alternância de poder, mas uma reconfiguração substantiva da dinâmica política nacional.

Complementarmente, essa direita radical estabeleceu uma lógica de campanha permanente, sustentada pelo uso intensivo das plataformas digitais e redes sociais para manutenção de sua base de apoio em constante estado de mobilização. As transmissões ao vivo regulares do então presidente Bolsonaro ilustram este método, que permite simultaneamente contornar as mediações jornalísticas tradicionais e cultivar uma percepção de comunicação direta e não institucional com seus apoiadores.

A análise integrada desses elementos revela que a consolidação da direita radical no Brasil não resultou simplesmente de circunstâncias conjunturais ou da emergência de personalidades políticas específicas, mas de transformações estruturais nas dinâmicas sociopolíticas nacionais, articuladas a tendências globais mais amplas e adaptadas às particularidades do contexto brasileiro.

IHU – Como analisa o cenário político para as eleições brasileiras de 2026? O que pensa sobre a situação da esquerda e seus limites e possibilidades nesse contexto?

Tatiana Vargas Maia – O horizonte político brasileiro que se descortina em direção às eleições presidenciais de 2026 apresenta-se em um contexto de polarização persistente, reconfigurações partidárias e desafios estruturais que condicionarão significativamente as possibilidades estratégicas tanto para o campo progressista quanto para as forças conservadoras.

No âmbito institucional, observa-se uma continuidade do protagonismo do Supremo Tribunal Federal (STF) como instância moderadora e estabilizadora do sistema político, embora crescentemente confrontado por um Congresso Nacional de orientação predominantemente conservadora. Esta tensão institucional latente poderá intensificar-se à medida que decisões judiciais sobre temas politicamente sensíveis como direitos reprodutivos, política ambiental e regulação dos meios digitais colidam com interesses representados majoritariamente no Legislativo federal. No plano programático, a esquerda confronta o desafio substantivo de articular coerentemente agendas potencialmente conflitantes: por um lado, as demandas históricas por justiça social e desenvolvimento econômico inclusivo; por outro, os imperativos crescentes da sustentabilidade ambiental e da transição energética.

As projeções para o pleito de 2026 apontam para múltiplos cenários possíveis, condicionados por variáveis ainda em desenvolvimento. Um primeiro cenário contempla a possibilidade de rearticulação das forças conservadoras em torno de uma candidatura unificada, seja mediante a manutenção da liderança de Jair Bolsonaro, condicionada a desenvolvimentos judiciais dos processos que atualmente impedem a candidatura do ex-presidente, seja pela consolidação de lideranças alternativas como Tarcísio Gomes, potencialmente capazes de capitalizar insatisfações populares com eventuais limitações do terceiro mandato de Lula.

Possibilidades

Um segundo cenário que já parece estar em curso envolve a progressiva expansão e o fortalecimento do chamado “Centrão” como bloco político determinante, capaz de obstaculizar reformas estruturais propostas pelo governo Lula e compeli-lo a concessões programáticas significativas. Esta configuração, embora aparentemente menos disruptiva que a anterior, resulta no gradual esvaziamento da capacidade transformadora do projeto progressista, comprometendo sua diferenciação substantiva frente às alternativas conservadoras.

Por fim, um terceiro cenário, mais favorável à continuidade progressista, dependeria da capacidade governamental de apresentar resultados concretos em áreas como geração de empregos, controle inflacionário e implementação de políticas sociais efetivas, consolidando uma percepção popular de competência administrativa e compromisso social que transcenda a figura do presidente Lula, historicamente predominante na identidade política petista.

IHU – Em termos históricos, quais são os eventos fundantes que criam o solo no qual é possível a direita radical se desenvolver no Brasil?

Tatiana Vargas Maia – A emergência e consolidação da direita radical como força política significativa no Brasil contemporâneo não constitui fenômeno meramente conjuntural, mas resulta de um processo temporalmente profundo que configurou gradativamente o horizonte sociopolítico propício à sua manifestação atual. A análise destes elementos fundantes revela-se fundamental para a compreensão das particularidades do caso brasileiro no contexto mais amplo das direitas radicais globais.

O golpe militar de 1964 representa um marco histórico fundamental neste processo, não apenas por seus efeitos institucionais imediatos, mas principalmente por sua profunda influência na cultura política nacional. Este evento promoveu uma militarização sistemática do imaginário político brasileiro, cristalizando a intervenção das Forças Armadas como alegada solução legítima para situações caracterizadas como de “caos” institucional ou “ameaça” à ordem estabelecida. Esta normalização discursiva da ruptura democrática como instrumento político aceitável estabeleceu precedente simbólico que seria posteriormente reativado em diferentes contextos históricos.

O processo de redemocratização ocorrido a partir de meados da década de 1980 caracterizou-se por significativas limitações e compromissos que preservaram elementos autoritários no tecido institucional brasileiro. A Lei de Anistia de 1979, ao conceder perdão jurídico a agentes da repressão envolvidos em graves violações de direitos humanos, institucionalizou uma política de esquecimento que obstruiu o processamento adequado do legado ditatorial. A ausência de uma justiça transicional efetiva permitiu a persistência de práticas, discursos e atores políticos vinculados ao autoritarismo, contribuindo para a normalização de posições antidemocráticas no espectro político nacional.

Neopentecostalismo

Paralelamente a este processo, observou-se a expansão expressiva do neopentecostalismo na sociedade, particularmente entre as décadas de 1990 e 2000. Este fenômeno, transcendendo sua dimensão estritamente religiosa, configurou-se como movimento cultural e político caracterizado pela universalização da teologia da prosperidade, pela intensa utilização de meios de comunicação de massa e pela progressiva ocupação de espaços institucionais. A politização crescente deste segmento religioso, inicialmente centrada em pautas morais específicas, gradualmente expandiu-se para uma contestação mais ampla dos valores secular-progressistas associados à modernidade democrática.

Crise de 2008

A crise econômica global de 2008, embora tenha afetado o Brasil de forma menos imediata que a outras economias, representou um elemento catalisador significativo ao potencializar tensões sociais latentes. Em contexto de implementação de políticas redistributivas pelos governos petistas, a percepção de instabilidade econômica intensificou os temores da classe média tradicional diante da ascensão socioeconômica de estratos historicamente marginalizados. Esta ansiedade status contribuiu para a configuração de um ressentimento social suscetível à mobilização política por discursos reacionários.

Contexto brasileiro

Esta conjugação de fatores históricos configurou terreno propício para a emergência de manifestações políticas caracterizadas por um antipluralismo radical, um autoritarismo nostálgico e mobilização de ressentimentos sociais difusos, elementos constitutivos da direita radical contemporânea. Diferentemente do contexto europeu, onde o fascismo histórico e as transformações pós-industriais constituem referências fundamentais, o caso brasileiro evidencia a centralidade de outros elementos estruturantes, como o legado autoritário recente, as desigualdades socioeconômicas persistentes e as tensões inerentes a um processo de democratização e inclusão social incompleto.

IHU – Em que sentido as estratégias da polarização e do caos comunicacional ajudam a compreender não apenas o caso brasileiro, mas também o norte-americano?

Tatiana Vargas Maia – A polarização manifesta-se como estratégia central desses movimentos, por meio da construção discursiva de antagonismos fundamentais e irreconciliáveis que transcendem divergências político-programáticas convencionais para estabelecerem oposições existenciais, em uma estratégia claramente populista. No contexto norte-americano, Donald Trump reforçou sistematicamente a narrativa do “deep State” (O “Estado profundo”) como entidade conspirativa entrincheirada no interior das instituições estatais, supostamente empenhada em sabotar seu governo e, por extensão, a própria soberania popular. Complementarmente, promoveu a caracterização do campo progressista como promotor do “wokeismo”, conceito deliberadamente impreciso que amalgama desde políticas de diversidade até supostas ameaças à liberdade de expressão.

De maneira semelhante, no Brasil Jair Bolsonaro estruturou sua comunicação política em torno de antagonismos parecidos, direcionando seus ataques a um suposto “STF comunista” e à indefinida “esquerda globalista”. Esta estratégia retórica transcende a crítica política convencional ao estabelecer divisões sociais fundamentais e incompatíveis, transformando adversários políticos em inimigos existenciais da nação, da família ou dos valores tradicionais. Essa configuração discursiva não apenas intensifica conflitos preexistentes, mas ativamente os reconfigura em termos que inviabilizam compromissos democráticos e negociações institucionais.

Complementarmente à polarização, a estratégia de promoção do caos epistêmico manifesta-se a partir de grandes campanhas de desinformação, que promovem uma saturação deliberada do espaço público com informações contraditórias, falsas ou distorcidas que comprometem a possibilidade de estabelecimento de bases factuais compartilhadas para o debate político. No contexto norte-americano, este fenômeno materializou-se emblematicamente no movimento conspiracionista QAnon, que disseminou narrativas fantasiosas sobre supostas redes de pedofilia envolvendo membros do Partido Democrata, alcançando significativa penetração social apesar de sua evidente inconsistência factual.

Desinformação sistemática

No Brasil, processo análogo evidenciou-se na disseminação sistemática da narrativa de fraude eleitoral, sintetizada na hashtag #FraudeNasUrnas, que persistiu apesar da ausência de evidências substantivas e das múltiplas verificações técnicas independentes sobre a integridade do sistema eleitoral brasileiro. A disseminação da teoria conspiratória sobre o “kit gay” – supostamente distribuído em escolas brasileiras – exemplifica paradigmaticamente esta estratégia, tendo sido amplamente difundida apesar de sua completa dissociação da realidade factual.

O objetivo fundamental desta estratégia de desinformação sistemática transcende a promoção de narrativas específicas, visando à instauração de uma epistemologia do descrédito caracterizada pela erosão dos próprios parâmetros de verificação factual e validação epistêmica. Ao obliterar a distinção básica entre verdade e falsidade, essa estratégia promove a substituição progressiva do debate baseado em evidências por mobilizações predominantemente emocionais, criando condições para a consolidação de comunidades interpretativas herméticas, impermeáveis a contradições factuais.

A análise comparativa destas estratégias nos contextos brasileiro e norte-americano revela não apenas convergências táticas, mas sugere a emergência de um modelo político transnacional que, apesar de adaptar-se a particularidades culturais e institucionais locais, compartilha premissas fundamentais sobre o uso instrumental da comunicação digital para fins de mobilização política. Esta constatação evidencia a necessidade de abordagens analíticas que transcendam o nacionalismo metodológico predominante em nossas abordagens tradicionais, reconhecendo as conexões globais que caracterizam os desafios contemporâneos à democracia.

IHU – Mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+ costumam ser alvos das políticas da extrema-direita. Olhando para o segundo mandato de Trump, como percebe as medidas tomadas até o momento pelo mandatário e qual é a sua expectativa em termos de reação da oposição e da sociedade civil norte-americana?

Tatiana Vargas Maia – A análise dos primeiros três meses do segundo mandato presidencial de Donald Trump sugere a implementação de políticas públicas com orientações restritivas em relação a grupos sociais marginalizados. No contexto da política migratória, observamos a expansão dos campos de detenção para imigrantes, a revogação do Temporary Protected Status (TPS), que oferece proteção temporária a cidadãos de países afetados por conflitos ou desastres naturais (no momento, essa revogação afeta sobretudo os cidadãos venezuelanos), e a tentativa de uso do Alien Enemies Act de 1798, que garante ao presidente a autoridade para deportar cidadãos de países considerados adversários em períodos de conflito. Isso já resulta em uma onda de deportações em massa, separações familiares e maus-tratos em centros de detenção, exacerbando a vulnerabilidade de imigrantes e suas famílias.

Quanto aos direitos reprodutivos, é nítida a intensificação das pressões políticas para a criminalização do aborto em âmbito federal, comprometendo significativamente a autonomia das mulheres sobre seus corpos. O “Project 2025” propõe medidas que restringem o acesso a serviços de saúde reprodutiva, incluindo a proibição de certas formas de contracepção e a limitação do acesso a abortos. Sabemos que esse tipo de políticas com frequência produzem um aumento de abortos clandestinos, colocando em risco a saúde e a vida das mulheres, especialmente aquelas em situações socioeconômicas desfavoráveis.

Relativamente à população LGBTQIA+, Trump já emitiu ordens executivas que desarticulam proteções destinadas à população trans, restringem o acesso de pessoas transgênero a cuidados de saúde especializados, e negam a validade das identidades de gênero. Trump tem sido abertamente contrário a políticas que protegem a identidade de gênero, incluindo a proibição de cuidados de afirmação de gênero para menores de 19 anos.

Apesar das tentativas (relativamente tímidas) da sociedade civil norte-americana em articular estratégias de resistência em múltiplas frentes, sua eficácia encontra-se significativamente limitada pela composição conservadora da Suprema Corte, com maioria de 6 a 3, que poderá validar políticas reacionárias com impactos de longo prazo, potencialmente estendendo-se por décadas.

IHU – Ao aliar-se a Putin, Trump reconfigura o tabuleiro do xadrez geopolítico. O que podemos esperar dessa coligação?

Tatiana Vargas Maia – A aproximação entre Donald Trump e Vladimir Putin indica uma reconfiguração significativa do cenário geopolítico global, baseada em interesses compartilhados por ambos os líderes. A principal questão no horizonte das relações internacionais nesse momento parece ser o fortalecimento de líderes revisionistas no executivo de grandes potências (como é o caso de Trump nos EUA e Putin na Rússia). Líderes revisionistas são marcados por uma atuação que explicitamente contraria as expectativas de comportamento internacional estabelecidas e reconhecidas entre Estados, e geralmente buscam alterar o padrão de interações das relações internacionais visando ganhos unilaterais. Esse tipo de revisionismo já estava claro na atuação de Putin, desde pelo menos o início de 2022, e ficou mais explícito nas decisões de Trump a partir de janeiro de 2025 (sobretudo nas afirmações acerca da anexação da Groenlândia – o que é um exemplo explícito de um revisionismo de fronteiras bem estabelecidas historicamente –, e nas decisões recentes acerca das tarifas do comércio internacional).

Além disso, Trump tem intensificado as críticas com relação à participação dos EUA na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ameaçando reduzir substancialmente as contribuições financeiras dos EUA ou até estimular a retirada de países membros. Isso poderia provocar uma diminuição da coesão e da capacidade de resposta da OTAN, criando um vácuo de poder que a Rússia poderia explorar em suas fronteiras ocidentais. Tal reorientação geopolítica comporta riscos significativos para a estabilidade global, especialmente no que concerne à Ucrânia, onde a retirada do apoio militar ocidental pode acelerar os processos de anexação territorial promovidos pela Rússia.

Essa renovação de atitudes em política externa que remete à Realpolitik do fim do século XIX e do início do século XX sugere o tensionamento de uma ordem multipolar, caracterizada pela competição entre os Estados Unidos, a Rússia e a China por zonas de influência, ao mesmo tempo que a União Europeia é progressivamente enfraquecida marginalizada no sistema internacional. A Europa poderia enfrentar desafios significativos em manter sua autonomia estratégica e sua capacidade de influenciar os eventos globais, especialmente se a OTAN for enfraquecida (as decisões recentes da União Europeia a estas mudanças iniciais parecem indicar que o bloco reconhece sua fragilização relativa – a criação do mecanismo Europeu de Defesa, a estratégia ProtectEU, e o aumento com os gastos em Defesa apontam para uma percepção aguçada da sensibilidade deste momento geopolítico).

Essa reconfiguração também pode ter implicações significativas para o Oriente Médio. A aliança entre Trump e Putin poderia levar a uma maior influência russa na região, especialmente na Síria, onde a Rússia já desempenha um papel crucial. Isso poderia alterar o equilíbrio de poder local e afetar as dinâmicas regionais, potencialmente beneficiando aliados da Rússia, como o Irã, e desafiando a influência dos EUA e de seus aliados tradicionais, como Israel e a Arábia Saudita.

Em resumo, a aproximação entre Trump e Putin já está promovendo mudanças significativas nas relações internacionais contemporâneas, com implicações significativas para a estabilidade global e segurança regional.

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