Nacionalismo: a ideologia política do século XXI. Entrevista especial com Tatiana Vargas-Maia

"O nacionalismo se firma como a grande ideologia orientadora das relações entre os Estados", diz a pesquisadora

Foto: MegaTimes

Por: Patricia Fachin e Wagner Fernandes de Azevedo | 19 Agosto 2021

 

Os nacionalismos a que assistimos no século XXI não são um fenômeno novo. Ao contrário, são "uma continuidade" daquele que emergiu no século XIX. "Apesar de muito ter se discutido a morte dos nacionalismos após a Segunda Guerra Mundial, e a emergência de um mundo pós-nacional com o fim da Guerra Fria, no final do século XX, nós nunca efetivamente superamos o paradigma da nacionalidade como princípio organizador da política doméstica e internacional", assinala Tatiana Vargas-Maia, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Segundo ela, a "mobilização ativa dessa ideologia" no presente busca "oferecer uma resposta para as sucessivas crises que marcam o início do novo século (uma crise de segurança, deflagrada pelo 11 de setembro de 2001, e a crise econômica de 2008)".

 

Na entrevista a seguir, Tatiana também comenta a instrumentalização religiosa feita pelos governos nacionais, a exemplo do que acontece no Brasil, com o governo Bolsonaro, tema abordado recentemente por ela na conferência virtual intitulada "Os nacionalismos religiosos na política internacional do século XXI", no Instituto Humanitas Unisinos - IHU. "Eu teria dificuldade em ver tanto Trump quanto Bolsonaro como nacionalismos de matriz cristã, em termos estritos. Isso não é dizer que a retórica religiosa-fundamentalista não faz parte do discurso desses governos, ou que agentes políticos dentro dos dois governos não tenham militado com base em discursos fundamentalistas cristãos e nacionalistas. No entanto, uma coisa é a estratégia retórica de membros desses governos, outra diferente é como essa estratégia gera efeitos geopolíticos". E acrescenta: "A atuação de Trump e Bolsonaro está mais alinhada com um discurso de extrema direita que usa lideranças religiosas para compor e agregar com pautas nacionalistas – inclusive usando símbolos e a gramática cristã".

 

Tatiana Vargas-Maia (Foto: Arquivo pessoal)

Tatiana Vargas-Maia é doutora em Ciência Política pela Southern Illinois University – Carbondale, mestra em Relações Internacionais e graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, e em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Atualmente, é coordenadora e professora dos cursos de Relações Internacionais e História da Universidade La Salle, e do Programa de Pós-Graduação em Memórias Sociais e Bens Culturais da Universidade La Salle.

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Na sua conferência, você disse que o nacionalismo é a ideologia que fundamenta a política contemporânea e mencionou a importância de compreender o nacionalismo como um fenômeno doméstico e internacional. Qual tem sido o peso dos nacionalismos domésticos na geopolítica internacional ou como os diferentes nacionalismos impactam diretamente a geopolítica internacional?

Tatiana Vargas-Maia - Se entendemos a geopolítica como a relação entre o exercício do poder político e o território, podemos dizer que a ideologia nacionalista redefine gradativamente a geopolítica internacional a partir do século XIX. Isso porque o nacionalismo realiza uma transformação na concepção contemporânea da soberania. A soberania é a instituição do sistema internacional que define a autoridade sobre um território delimitado e a população que habita aquele território. Apesar desta definição ser relativamente estável ao longo da história, a justificação dessa autoridade varia: se durante a Idade Moderna observamos uma predominância de justificativas do tipo religioso (por exemplo, a doutrina do Direito Divino dos Reis, que vinculava a autoridade real à vontade de Deus), o início da Idade Contemporânea é marcado por uma alteração nessa fórmula – a legitimidade do poder soberano passa a ser reconhecida na população que está subjugada a este poder. Essa alteração está bem demarcada nas teorias do contrato social, mas para além da inversão do sentido da legitimidade – originalmente de cima para baixo (top down), e agora de baixo para cima (bottom up) – da fórmula, um outro elemento é essencial: uma ideologia que justifique essa inversão.

É aí que entra o nacionalismo, que vai definir qual é a comunidade que tem o poder de designar o soberano. Todavia, essa redefinição do foco de legitimidade da autoridade soberana não passa apenas pela constituição de uma comunidade política – a nação. Ela também vem acompanhada de novos objetivos para essa comunidade, os principais deles sendo unidade, identidade e autonomia. São esses objetivos que, articulados, criam também uma nova orientação para o exercício do poder soberano, ou seja, para a administração do território e da população que vive nesse território.

 

 

Nesse sentido, podemos entender que o nacionalismo se firma como a grande ideologia orientadora das relações entre os Estados a partir do século XIX. Isso significa que as relações internacionais, em grande medida, passam a ser pautadas pelo que os Estados definem como sendo seus interesses nacionais, que eles buscam na arena internacional. Assim, ele pode servir como gatilho ou combustível para conflitos intra e interestatais, moldar a retórica econômica de países (como no caso dos famosos slogans “Made in USA”, ou do pejorativo “Made in China”) e influenciar conflitos de cunho comercial, e ele definitivamente informa a reação de governos e populações ao fenômeno da migração internacional.

 

IHU - Você afirma que o nacionalismo é uma ideologia herdeira do iluminismo. Quais foram os fatores determinantes do século XIX que contribuíram para a emergência dos nacionalismos ainda naquele século? De outro lado, que fatores deram origem aos nacionalismos do século XXI?

Tatiana Vargas-Maia - Podemos identificar o surgimento dos nacionalismos do século XIX no que [Eric] Hobsbawm denomina de um momento duplo-revolucionário, ou seja, a coincidência entre movimentos revolucionários nas esferas econômicas e políticas/sociais, como a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. Esse momento duplo-revolucionário provoca uma modernização das sociedades tradicionais, que são urbanizadas, ampliam sua dimensão demográfica, e possibilita a emergência de ideologias nacionalistas como um substituto para formas tradicionais de solidariedade.

Os nacionalismos do século XXI, por outro lado, não devem ser interpretados como um fenômeno novo, mas sim como uma continuidade do fenômeno do século XIX. Apesar de muito ter se discutido a morte dos nacionalismos após a Segunda Guerra Mundial, e a emergência de um mundo pós-nacional com o fim da Guerra Fria, no final do século XX, nós nunca efetivamente superamos o paradigma da nacionalidade como princípio organizador da política doméstica e internacional. Dessa forma, o que identificamos como um surgimento de nacionalismos no século XXI é melhor interpretado como uma mobilização ativa dessa ideologia, que em grande medida busca oferecer uma resposta para as sucessivas crises que marcam o início do novo século (uma crise de segurança, deflagrada pelo 11 de setembro de 2001, e a crise econômica de 2008).

 

 

IHU - O projeto político decorrente do iluminismo fracassou ou é ele próprio a raiz dos nacionalismos religiosos existentes hoje?

Tatiana Vargas-Maia - Bem, creio que minha resposta vai no mesmo sentido da anterior. O iluminismo não foi um projeto político homogêneo – e a relação dos iluministas tanto com o nacionalismo, quanto com a religião, é bastante contraditória. Mas a primeira coisa é que, não obstante toda a preocupação com valores de igualdade e liberdade, todo o movimento iluminista tem dificuldades em pensar um projeto de compacto social realmente plural. De verdade, se olharmos para a preocupação em autores tão distintos quanto Hobbes (que certamente não era um iluminista no sentido estrito da palavra), Rousseau, Kant, Diderot, Hamilton ou Madison, veremos um ceticismo enorme com a possibilidade de manter uma ordem social em uma sociedade heterogênea. Em um sentido estrito, então, podemos pensar que o iluminismo é parte de uma falta de imaginação política que tem relação direta com o apelo de nacionalismos religiosos no contexto atual – que se colocam muitas vezes como ideologias anti-iluministas e antimodernas (ainda que apelando para uma versão caricata tanto do iluminismo, quanto da modernidade, do qual paradoxalmente esses movimentos religiosos ainda são parte).

 

 

IHU - A que você atribui a "reemergência" do aspecto religioso na política e até mesmo o surgimento dos nacionalismos religiosos, especialmente após o projeto de secularização? Que fenômenos explicam a ressurgência dos nacionalismos religiosos entre o final do século XX e início do XXI?

Tatiana Vargas-Maia - Me parece um exagero entender o processo de secularização como um fenômeno que foi realizado de forma homogênea em termos globais. Nacionalismos podem ser entendidos como ideologias de ligação, e se prestam tanto para uso secular quanto pós-secular – muitas vezes como uma forma de substituir o potencial agregador do sentimento religioso-sectário por um sectarianismo cívico, por exemplo. Mas o nosso reflexo é muitas vezes presumir que esse nacionalismo cívico, e de matriz aparente não religiosa apaga, nas democracias contemporâneas, a importância ou captura de discursos religiosos. A verdade é que em grande medida regimes políticos partem do princípio de uma certa homogenia cultural, que inclui aí o elemento religioso – na medida em que outras formas de expressão identitária e culturais entram em cena dentro de um mesmo contexto doméstico, fica mais vantajosa a exploração de perspectivas religiosas como formas de agregação do público, especialmente como uma forma de mobilizar sentimentos de matriz tradicional contra potenciais adversários. É possível identificar essa estratégia claramente nos movimentos conservadores nos Estados Unidos, Rússia, Ucrânia e no Brasil. Me parece importante destacar, no entanto, que isso não deriva de um desaparecimento do sentimento religioso em democracias ou regimes contemporâneos, mas do fato que sua mobilização foi menos necessária em termos geopolíticos em cenários específicos.

 

 

 

IHU - É comum associarem o governo Trump ou mesmo o governo Bolsonaro a um “nacionalismo cristão” ou “nacionalismo religioso”. Quais são os riscos desse tipo de associação para a própria religião ou para matrizes religiosas, considerando o múltiplo sentido em que os termos “cristão” e “religioso” são utilizados hoje?

Tatiana Vargas-Maia - Eu teria dificuldade em ver tanto Trump quanto Bolsonaro como nacionalismos de matriz cristã, em termos estritos. Isso não é dizer que a retórica religiosa-fundamentalista não faz parte do discurso desses governos, ou que agentes políticos dentro dos dois governos não tenham militado com base em discursos fundamentalistas cristãos e nacionalistas. No entanto, uma coisa é a estratégia retórica de membros desses governos, outra diferente é como essa estratégia gera efeitos geopolíticos. A atuação de Trump e Bolsonaro está mais alinhada com um discurso de extrema direita que usa lideranças religiosas para compor e agregar com pautas nacionalistas – inclusive usando símbolos e a gramática cristã. Mas esse uso instrumental cumpre a função de consolidação do regime em nível doméstico, e consolidação de alianças com outros regimes globais – muitas vezes com uma maior intensidade da discussão religiosa. Se chamarmos esses nacionalismos de nacionalismos cristãos, estaremos reconhecendo a importância geopolítica das lideranças religiosas e do discurso religioso na tomada de decisão final e posicionamento final destes países – embora exista uma presença destes atores nos processos decisórios, ela não é determinante, sendo inclusive atropelada por outras prioridades políticas instrumentais de forma constante.

 

 

IHU - Como os nacionalismos acentuam a exclusão?

Tatiana Vargas-Maia - Nacionalismos acentuam critérios de pertencimento nacional que, por vezes, podem ser bastante excludentes. Na literatura sobre o tema, há uma corrente que classifica nacionalismos justamente a partir do tipo de critério para pertencimento nacional que eles utilizam: a caracterização mais comum divide nacionalismos entre os tipos cívico, cultural e étnico. Ainda que eles devam ser entendidos como tipos ideais – ou seja, não encontram correspondência exata na realidade –, eles nos ajudam a identificar tendências de composição nacional que são criadas e cultivadas por governos específicos. O nacionalismo cívico tende a enfatizar critérios políticos para a filiação nacional, como a participação em instituições, processos sociais e essa filiação é geralmente considerada voluntária. O nacionalismo cultural enfatiza participação em uma cultura específica, sublinhando variáveis como fluência linguística e filiação religiosa. Por fim, o nacionalismo étnico enfatiza o pertencimento a um grupo étnico específico, e geralmente enfatiza dimensões racializadas do pertencimento nacional. Como podemos perceber ao analisar as características desses diferentes tipos, em alguns momentos nações podem enfatizar critérios de pertencimento que não podem ser adquiridos – ou seja, ou se nasce dentro da nação, ou não se é nacional. Esse tipo de exclusividade pode refletir em atitudes hostis em relação a não-nacionais, o que muitas vezes se traduz em sentimentos como a xenofobia.

 

 

IHU - Que novo projeto político nacional e internacional poderia superar os nacionalismos existentes hoje? Que soluções políticas vislumbra para a resolução de um dos problemas internacionais de hoje, que é a imigração?

Tatiana Vargas-Maia - A solução passa pela mudança das pessoas envolvidas nos processos decisórios de política externa, em todos os níveis, e uma mudança das instituições envolvidas nesses processos. Seyla Benhabib fala de um termo que eu gosto muito: iterações democráticas. O ponto dela é que não conseguimos sair da repetição dos mesmos erros políticos quando envolvemos os mesmos atores, discutindo dentro das mesmas instituições. Precisamos ampliar o leque de pessoas envolvidas na formação de políticas, e na organização das instituições. Quero destacar um segundo ponto aqui: não basta mudar as pessoas envolvidas, é preciso mudar a lógica de boa parte das instituições envolvidas com tomada de decisão em política externa, que foram construídas para lidar ou com o mundo do pós-guerra, e as demandas imediatas naquele contexto, ou com a lógica da disputa da Guerra Fria. Mesmo as instituições de direito internacional criadas no pós-Guerra Fria se consolidam como uma espécie de volta olímpica do institucionalismo neoliberal (uso o termo aqui no sentido que [Robert] Keohane e [Joseph] Nye consolidam), e não reconhecem a necessidade de repensar a lógica do direito internacional e suas instituições em um momento de intensa fragmentação da geopolítica que garantiu a (parca) segurança no pós-Segunda Guerra Mundial.

 

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