Este tipo de armamento, fabricado no Brasil, que pode ser usado na guerra tanto pela Rússia como pela Ucrânia, é falho e não distingue alvos militares de civis
Imagine uma arma com alto poder de destruição, uma bomba que se fragmenta em várias, ficam escondidas e, mesmo depois das guerras, segue por anos fazendo vítimas. É disso que se trata quando falamos de bombas de fragmentação, ou munições clusters. “Esta arma nunca funciona como esperado pelos fabricantes. É unânime o fato de que todos os modelos apresentam uma taxa de falha”, completa Cristian Wittmann. Nas últimas semanas, o conflito entre a Rússia e a Ucrânia teve mais um capítulo dramático quando os Estados Unidos afirmaram que vão entregar esse tipo de bomba aos ucranianos. “Esta arma, ao dispersar várias submunições, não possui capacidade de distinguir entre um alvo civil e um alvo militar e, por isso, já apresenta uma ilegalidade no Direito Internacional Humanitário”, completa Wittmann.
A entrevista que o professor concedeu por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU constata que o uso dessas armas de dispersão, agora viável tanto pela Rússia como pela Ucrânia, pode aumentar a dor da guerra e permanecer por anos ameaçando populações inocente. “Ao cobrir uma vasta área e suas submunições ficarem à mercê do vento, elas atingem o que estiver pela frente, seja um edifício, seja um veículo civil e até mesmo um pé de bananeira ou outra fruta, como é recorrente”, detalha.
Para Wittmann, a bomba de dispersão pode ter um efeito ainda pior do que as famosas minas terrestres. “A mina terrestre funciona a partir da pressão sobre ela, mutilando principalmente membros inferiores quando não causa a morte. Já a submunição cluster, ao ser dispersa pelo ar, pode aguardar sua vítima sob o solo, pendurada em alguma árvore, dentro de uma residência, escondida sob algum arbusto e assim por diante”, argumenta.
Há acordos internacionais que proíbem o uso dessas armas. Mas, em nome do poder e do lucro, muitos países seguem fabricando e ofertando essas máquinas de morte. Lamentavelmente, entre eles está o Brasil. “Hoje, são considerados produtores: Brasil, China, Egito, Grécia, Índia, Irã, Israel, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Paquistão, Polônia, Romênia, Rússia, Singapura, Turquia e Estados Unidos da América. (...) Bombas cluster ‘made in Brazil’ hoje contaminam o Iêmem. O uso de bombas brasileiras pela Arábia Saudita em 2016-2017 gerou resto explosivo remanescente e vítimas civis naquele país”, acrescenta.
O professor afirma que “o Itamaraty privilegiou somente o contexto comercial de eventual restrição dessas armas. Ignorou e continua a refutar as discussões que implementam o fim do impacto humanitário gerado pelo uso das bombas cluster”. É um poder que talvez nem saibamos que a indústria armamentista brasileira tem. “O próprio embaixador Celso Amorim, hoje assessor especial da Presidência da República e à época de negociação do Tratado era ministro das Relações Exteriores, declarou em audiências públicas no Congresso Nacional que as bombas cluster são armas inaceitáveis e que todos deveriam trabalhar para sua proibição. O curioso é que o ponto de vista industrial prevalece até hoje”, provoca Wittmann.
Cristian Ricardo Wittmann (Foto: Arquivo Pessoal)
Cristian Ricardo Wittmann é doutor em Direito. Atua como professor associado na Universidade Federal do Pampa – Unipampa. Desde 2004, exerce atividades em Direito Internacional como pesquisador e delegado da International Campaign to Ban Landmines, instituição que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1997, "Cluster Munition Coalition", "Seguridad Humana en Latinoamérica y el Caribe" e "International Campaign to Abolish Nuclear Weapons", premiada com o Nobel da Paz em 2017.
IHU – O que são as bombas de fragmentação e historicamente como surgem?
Cristian Wittmann – Bombas de fragmentação nada mais são que bombas contêineres, como se fossem grandes caixas, cheias de submunições, semelhantes às granadas, que são dispersas em uma vasta área (podendo chegar até cinco campos de futebol). A tradução do inglês “cluster bomb”, na realidade, deveria ser bomba de dispersão ou bomba cacho, pois elas não se fragmentam, mas sim se dispersam no ar. Elas são lançadas por ataque aéreo ou artilharia terrestre e, em determinada altitude, abrem e dispersam/lançam essa quantidade de submunições que podem chegar até a centenas por bomba.
Elas nascem ainda no fim da Segunda Guerra Mundial em suas versões mais rudimentares e ganham maior atenção nos anos seguintes. A lógica seria aumentar a eficiência ao cobrir uma vasta área de deslocamento de inimigos e suas colunas de blindados com o emprego de menos pessoas e equipamentos.
Todavia, esta arma nunca funciona como esperado pelos fabricantes. É unânime o fato de que todos os modelos apresentam uma taxa de falha. Explico. Primeiramente, esta arma, ao dispersar várias submunições, não possui capacidade de distinguir entre um alvo civil e um alvo militar e, por isso, já apresenta uma ilegalidade no Direito Internacional Humanitário. Ao cobrir uma vasta área e suas submunições ficarem à mercê do vento, elas atingem o que estiver pela frente, seja um edifício, seja um veículo civil e até mesmo um pé de bananeira ou outra fruta, como é recorrente.
Em segundo lugar, uma quantidade relevante das submunições não explodem no primeiro impacto. As condições de clima, umidade e outras características do terreno em que são usadas, acabam por ampliar a quantidade de falhas. Isso deixa tais submunições ativas por décadas após os conflitos terminarem e, justamente quando os civis voltam aos seus lares, eles se deparam com tais restos explosivos – muitas vezes coloridos e com ribanas de tecido.
Tais características atraem a curiosidade principalmente de crianças que acabam levando submunições para casa e ao manusearem acabam tendo partes do corpo mutiladas, quando não morrem. Por tais motivos é que a grande quantidade de vítimas acaba sendo civis.
Décadas atrás, quando o conflito e a batalha aconteciam no corpo a corpo e com grandes deslocamentos de pessoas e equipamentos, até poderia ser justificado o emprego de uma arma dessa categoria. Todavia, hoje os conflitos se transportaram para as cidades, zonas povoadas e com o uso de artilharia e mísseis de longo alcance que difere do período em que ela foi pensada para ser usada.
IHU – Este tipo de munição é banido por mais de 100 países. Que países são esses e quais as principais razões para esse banimento?
Cristian Wittmann – Hoje, são 123 países que assinaram a Convenção sobre Munições Cluster, negociada em 2008 e que entrou em vigor no ano de 2010. Os motivos da criação desse tratado é justamente por violarem o Direito Internacional Humanitário, também conhecido como Direito Internacional dos Conflitos Armados, e por causarem um impacto humanitário inaceitável contra civis. A incapacidade de distinção entre civis e combatentes e o efeito desproporcional ao longo prazo de contaminarem o terreno indicaram a necessidade de proibir e eliminar essas armas.
Nessa lista de países é possível encontrar países de todas as regiões do mundo, tendo inclusive membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN como parte desse tratado internacional. Diversos especialistas militares, durante as negociações do tratado, indicaram que tais armas não funcionam e por isso deveriam ser eliminadas das doutrinas militares.
Em azul, os países signatários da Convenção sobre Munições Cluster. Em roxo, estados-membros | Mapa: reprodução Wikipédia
É realmente de se perguntar o sentido de usar uma arma que, de antemão, são sabidas em ter uma taxa de falha de 50%. Usar o dobro na mesma área e aumentar o impacto humanitário seria nitidamente um crime de guerra.
IHU – O que o Direito Internacional dos Conflitos Armados diz acerca do uso dessas bombas?
Cristian Wittmann – O Direito Internacional Humanitário, também conhecido como o Direito Internacional dos Conflitos Armados, é a categoria de regras para conduzir guerras. Por mais que o objetivo da guerra seja eliminar seu oponente, existem restrições ao emprego de meios, instrumentos e comportamento entre os beligerantes. Algumas delas impõem regras de destinar esforços somente contra alvos militares, usar meios proporcionais aos fins militares desejados, tratamento humano aos prisioneiros e aos que se renderem – além de outros como o respeito aos esforços neutros do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Com ele existe o aperfeiçoamento com os acordos de desarmamento, como é o caso das convenções que proíbem armas químicas, biológicas, minas terrestres antipessoal e, mais recentemente, as armas nucleares.
Como as bombas cluster não possuem a capacidade mínima de distinguir entre alvos civis e militares, elas já ferem integralmente a regra de distinção. Dirigir os esforços bélicos somente contra alvos militares é uma obrigação jurídica durante a guerra.
Da mesma forma, a escolha de um método ou instrumento de guerra deve ser proporcional ao ganho militar almejado. Saber que uma arma contamina o território por décadas após o conflito por não funcionar equivale a saber que seu emprego tem um efeito desproporcional. Por tal motivo há uma obrigação de não empregar bombas cluster.
Ademais, se o país que empregou tais bombas for parte do Protocolo Adicional V da Convenção sobre Certas Armas Convencionais, há ainda o dever de promover a limpeza da área contaminada após o fim do conflito onde permaneçam restos explosivos remanescentes de guerra.
IHU – Podemos considerar que essas bombas são tão ou até mais nocivas do que as minas terrestres?
Cristian Wittmann – As bombas cluster possuem uma consequência semelhante, porém mais perigosa, que as minas terrestres antipessoal. Assim como as minas terrestres, que são plantadas abaixo do solo durante o conflito permanecendo ativas por décadas, as bombas cluster podem provocar acidentes muito tempo depois dos conflitos. Todavia, a contaminação de submunições cluster é mais perigosa e custosa a limpar pela característica de poder estar presente em 360º graus.
A mina terrestre funciona a partir da pressão sobre ela, mutilando principalmente membros inferiores quando não causa a morte. Já a submunição cluster, ao ser dispersa pelo ar, pode aguardar sua vítima sob o solo, pendurada em alguma árvore, dentro de uma residência, escondida sob algum arbusto e assim por diante. As submunições cluster ainda possuem capacidade destrutiva de atingir um blindado, e não simplesmente mutilar um combatente, e com isso oferece mais riscos às equipes de desminagem/limpeza.
IHU – Se esse tipo de bomba é banido por mais de 100 países, como compreender as questões de fundo que fazem com que sejam usadas tanto de um lado quanto de outro na disputa entre Rússia e Ucrânia?
Cristian Wittmann – Elas já foram usadas no início do conflito e, inclusive, sendo indicadas pelos EUA como crime de guerra. Todavia, agora os próprios EUA já enviaram para a Ucrânia armas da mesma categoria que criticaram no passado. Inexiste uma lógica declarada no uso dessa arma. Espera-se que não seja com o simples objetivo de contaminar o terreno, o que seria inevitavelmente um crime de guerra.
Os EUA alegaram que o envio se daria por incapacidade de fornecer outras armas neste momento, pois sua capacidade de produção não acompanha a necessidade ucraniana crescente. Alguns especialistas têm criticado o envio de bombas cluster justamente por serem armas que não funcionam. Mas a maioria critica o gesto justamente pelo fato da Ucrânia usar e contaminar o próprio território – considerando que ela indica não ter pretensão de atacar o território russo.
IHU – Quem são os maiores produtores desse tipo de bombas de fragmentação?
Cristian Wittmann – Hoje, são considerados produtores: Brasil, China, Egito, Grécia, Índia, Irã, Israel, Coreia do Norte, Coreia do Sul, Paquistão, Polônia, Romênia, Rússia, Singapura, Turquia e Estados Unidos da América. Segundo a Coalizão contra as Bombas Cluster à Rússia, Irã e Israel foram grandes produtores em 2022, mas também se reconhece a falta de transparência na indústria bélica e, consequentemente, nas transações que envolvam a transferência de armas em geral.
IHU – No que consiste a Convenção sobre Munições Cluster? Por que esta fabricação destas bombas segue ocorrendo, mesmo após a vigência do tratado?
Cristian Wittmann – A Convenção sobre Munições Cluster é um instrumento internacional juridicamente vinculante que proíbe de modo abrangente as bombas cluster e impõe obrigações de assistência às vítimas, limpeza de terrenos e outras providências. Houve outras tentativas infrutíferas de proibir essas armas no âmbito da Convenção sobre Certas Armas Convencionais, mas sem a perspectiva humanitária.
Ela proíbe o uso, a produção, o armazenamento, a transferência e impõe obrigações de destruição de estoques aos que já possuírem no momento da adesão, bem como os aspectos humanitários de limpeza das áreas afetadas e assistência às vítimas de modo amplo às comunidades, não somente aos sobreviventes. Esse contexto transforma um acordo que poderia ser somente de proibição de armas em um tratado de desarmamento humanitário.
Além de levar em conta os aspectos humanitários, é importante salientar que a Convenção sobre Munições Cluster incorpora a participação e contribuição da sociedade civil organizada. Além de ter participado do momento da negociação, a Coalizão contra as Bombas Cluster é ativa na implementação e universalização do tratado. Por todas essas razões é que a Convenção sobre Munições Cluster é o único, além de viável, caminho para a proibição e eliminação dessas armas e para promover o fim das consequências humanitárias do seu uso no passado.
IHU – Por que o Brasil não é signatário? Qual e como foi a participação do Brasil na negociação do tratado?
Cristian Wittmann – O Brasil não somente não é signatário como também critica o tratado, sendo que se negou a participar da sua construção. Embora o Brasil indique motivos de que o Tratado não foi negociado no âmbito da Organização das Nações Unidas – ONU ou que proíbe somente as bombas cluster rudimentares, a grande objeção vem pela condição do Brasil ser produtor e exportador de bombas cluster. Essa conclusão ocorre pela participação brasileira, acompanhada de representantes da indústria nacional, no âmbito das frustradas negociações de um protocolo adicional que poderia restringir as bombas cluster no âmbito da Convenção sobre Certas Armas Convencionais.
Infelizmente, o Itamaraty privilegiou somente o contexto comercial de eventual restrição dessas armas. Ignorou e continua a refutar as discussões que implementam o fim do impacto humanitário gerado pelo uso das bombas cluster. Para os que creem que os efeitos das bombas estariam longe do Brasil, vale lembrar que a Colômbia é o país no mundo com maior quantidade de área contaminada por minas terrestres e o Brasil possui estoque de bombas cluster em nosso território pronto para pleno emprego.
Bombas cluster “made in Brazil” hoje contaminam o Iêmen. O uso de bombas brasileiras pela Arábia Saudita em 2016-2017 gerou resto explosivo remanescente e vítimas civis naquele país. O Brasil até se prontificou a enviar especialistas em desminagem para auxiliar nos processos de limpeza, mas infelizmente os danos irreparáveis às vítimas terão marcas verde amarelas para sempre.
IHU – Quem são as empresas brasileiras que produzem essas bombas? E quem compra esse armamento?
Cristian Wittmann – São pelo menos três empresas brasileiras que produzem esta arma desumana – qualificação usada por Celso Amorim quando era chanceler. Ares Aeroespacial e Defesa LTDA, Target Engenharia e Comércio LTDA e a mais conhecida Avibrás com seu sistema ASTROS. Inexistem dados públicos sobre as exportações brasileiras, mas investigadores da Coalizão contra as Bombas Cluster denunciam que sistemas ASTROS foram exportados para o Irã, Iraque, Malásia e Arábia Saudita. Existem informações de que a Target Engenharia também vendeu bombas cluster para o Zimbábue no passado.
É necessário salientar a pouca transparência dos assuntos de comércio de armas em geral e, conforme já reportado pela Transparência Internacional, os grandes laços com a corrupção. O sistema ASTROS é tido como um dos principais produtos da Avibrás que, todavia, se encontra em situação de recuperação judicial e com salário de colaboradores atrasados há meses. Parece que o estigma negativo que recai sobre as bombas cluster está reduzindo os interessados nas bombas brasileiras, que, mesmo assim, se apegam em continuarem disponíveis para produção e exportação.
IHU – Em que situações essas bombas de fabricação brasileira já foram usadas?
Cristian Wittmann – Embora já tenha sido exportada para vários países, só existem relatos de submunições brasileiras contaminando o terreno no Iêmem. Os ataques da Árabia Saudita, importador das bombas cluster brasileiras, geraram vítimas civis com os artefatos verde amarelos.
A indústria brasileira auferiu lucros. O Estado brasileiro auferiu a fama de país exportador de bombas que ferem crianças. O Brasil também se comprometeu, após este escândalo, a enviar equipes para auxiliar nos esforços de desminagem/limpeza. A indústria, que auferiu lucros, hoje está em recuperação judicial e, segundo a imprensa, estaria em tratativas para ser estatizada pelo governo federal.
IHU – Levando em conta a diplomacia brasileira e o atual contexto de guerra, quais as possibilidades de assinatura ao tratado agora?
Cristian Wittmann – Não há impedimento para o Brasil aderir à Convenção sobre Munições Cluster neste momento. Inclusive a tradição brasileira de persecução da paz e promoção dos Direitos Humanos está alinhada com os princípios do referido tratado. Curioso sim é, infelizmente, a abstenção do Brasil na Convenção sobre Munições Cluster.
O próprio embaixador Celso Amorim, hoje assessor especial da Presidência da República e à época de negociação do Tratado era ministro das Relações Exteriores, declarou em audiências públicas no Congresso Nacional que as bombas cluster são armas inaceitáveis e que todos deveriam trabalhar para sua proibição. O curioso é que o ponto de vista industrial prevalece até hoje.
IHU – Quais ações globais têm sido tomadas para efetivamente banir o uso deste tipo de armamento?
Cristian Wittmann – A existência do Tratado e o trabalho profícuo da Coalizão contra as Bombas Cluster têm promovido cada vez mais a sensibilização e a efetiva proibição das armas. As diferentes iniciativas implicam em aumentar o estigma internacional sobre o armamento, como foi feito contra as minas terrestres antipessoal.
Para dar um exemplo, o uso e a produção das minas terrestres reduziram-se a patamares mínimos devido ao amplo processo de estigmatização, gerando o cumprimento do Tratado de forma indireta por aqueles que não o assinaram.
Com o tempo, a tendência é que mais países façam parte da Convenção sobre Munições Cluster e com isso o estigma será maior, diminuindo o número de interessados nessas armas. Por isso que continuar sendo um pária nesse assunto faz o Brasil se distanciar não somente de seus princípios, mas também andar na contra mão da política internacional humanitária e comercial.
IHU – Como compreender a questão da OTAN nesse conflito? Em que medida a entrada ou não no grupo atualiza a guerra entre Ocidente e Oriente?
Cristian Wittmann – Este conflito, muito embora tenha pego muitas pessoas de forma inesperada, foi em certa medida fomentado pela OTAN. É preciso lembrar que o fim da União Soviética remodelou a geopolítica internacional e, ao sugerir o fim do mundo bipolar, acabou por permitir a emergência de diferentes contextos. Entre eles, com uma crescente multipolaridade, está o enfraquecimento da OTAN pela falta de sentido da sua existência, já que o tão temido inimigo comunista inexistia. Embora esse contexto, a coalizão de países seguiu crescendo, muito embora levava críticas ao seu custeio do próprio ex-presidente Donald Trump.
Muitos analistas indicam como principal causa do conflito a intentada ocidental de cercar cada vez mais a Rússia e minimizar sua influência regional e global. Todavia, a consequência geopolítica do conflito na geopolítica entre OTAN e Rússia foi contrário às ambições russas, já que somente neste ano com os dois novos membros da coalizão houve um aumento do perímetro de fronteira com a Rússia. Da mesma forma, houve uma nova ressignificação da OTAN e o ressurgimento de vários dilemas existenciais, como é o de um futuro conflito mundial e o uso de armas nucleares.
Sem dúvida, embora formalmente possa tentar se justificar o contrário, há uma participação da coalizão ocidental no conflito. Seja o apoio político, financeiro e logístico, seja o treinamento de equipes ucranianas e a remessa dos mais diferentes modelos de armamentos à Ucrânia, fica visível a participação orquestrada do ocidente no conflito. Isso gera discussões sobre a extensão de tais transferências de armamentos e a compatibilidade dessas movimentações com os acordos de comércio de armas já existentes.
O prolongamento do conflito não é positivo para nenhuma das partes. Da mesma forma, a saída humilhante de qualquer uma das partes do conflito. Salutar é a construção de pontes políticas em busca de uma solução consensuada para o fim das hostilidades num primeiro momento e então a negociação de uma paz duradoura.
IHU – Num contexto geopolítico, como o senhor compreende o conflito entre Rússia e Ucrânia? Quais as questões de fundo e que pouco são comentadas?
Cristian Wittmann – Além das questões relacionadas à OTAN e à Rússia, também é possível indicar que o contexto de influência regional russa é um ponto fragilizado nos últimos anos. Na Ucrânia, tal situação é somada ao conflito na região da Crimeia, onde também houve invasão russa, e ao aumento do sentimento de repulsa à Rússia que levou ao crescimento de popularidade de líderes internos contrários a uma influência russa no país.
Da mesma forma, há um crescente sentimento de ódio ao ocidente no meio russo. Certamente o bloqueio econômico fomentou essa fagulha. Isso certamente também repercute na grande aprovação de Vladmir Putin na condução do conflito. Os movimentos nacionalistas que emergiram na última década e que ganharam velocidade pela pandemia trazem, dentro de outras consequências negativas, o fomento de conflitos e dilemas que acreditávamos terem sido superados com o fim da Segunda Guerra Mundial.
IHU – Diante do atual cenário global, quem são as principais forças geopolíticas e o que está em jogo?
Cristian Wittmann – Muito embora sejamos levados automaticamente a citar os Estados Unidos da América, a Rússia, a China e países da União Europeia, é preciso ter em mente a emergência da multipolaridade na geopolítica mundial. Acordos e alianças bilaterais e multilaterais inserem novos atores e perspectivas a serem levados em consideração. Antigamente o mundo era basicamente dividido entre as alianças ocidentais, orientais e o grupo dos não alinhados.
Hoje, existem blocos geográficos para diferentes temas (econômicos, de desarme, políticos, etc.), blocos políticos (BRICS, OTAN), sociedade civil organizada, além dos inúmeros órgãos e organismos internacionais. O monopólio do atrelamento do dólar como moeda internacional tem sido relativizado e, consequentemente, os bloqueios e sanções internacionais ficam fragilizados.
O fortalecimento dos discursos nacionalistas em detrimento das práticas globalizadas, os conflitos comerciais emergidos do período agudo da pandemia, mais recentemente o conflito na Ucrânia e as consequências de seu prolongamento, os conflitos econômicos e de acesso à matérias-primas são exemplos dos desafios atuais. Desafios e crises sempre existirão. É preciso reestabelecer os métodos pacíficos de solução de controvérsias. O aumento da tensão internacional e, consequentemente, do gasto militar não interessa a ninguém.
IHU – Como construir caminhos que levem à paz?
Cristian Wittmann – Ao invés de construir muros – que simbolicamente possam ser exemplificados como o sugerido por Donald Trump na fronteira dos EUA com o México e outros como em volta da Palestina –, tornam-se essenciais a construção e o fortalecimento de pontes que venham a unir e ser canais de diálogo e construção de consensos. O aumento da complexidade na multipolaridade global deve ser acompanhado de novos arranjos de construção de decisões coletivas.
Órgãos criados e praticamente imutáveis desde a Segunda Guerra Mundial, como o caso do Conselho de Segurança da ONU, parecem não trazer mais a segurança almejada quando foi constituído. Hoje, precisamos de líderes globais que possam liderar a construção de novos cenários, que podem ser a adequação dos existentes, que visem à estabilização de expectativas dos mais diferentes setores, hoje capazes de influenciar e desestabilizar relações tão caras para o avanço da humanidade.