Na conferência realizada no ciclo de debates Decálogo sobre o fim do mundo, o antropólogo abordou obras e o pensamento de Isabelle Stangers, Deborah Danowiski, Viveiros de Castro e Donna Haraway
Antropoceno, para além do conceito geológico e sociológico em permanente discussão, é o resultado de uma ideia bastante ilustrativa sobre o paradigma da modernidade, isto é, a excepcionalidade humana. Ele é, digamos assim, a conversão epocal de um modo de se relacionar com o planeta que nos levou ao que a filósofa da ciência Isabelle Stangers chama de “tempo das catástrofes”. Cabe a nós restituir a imaginação para pensar saídas ao nosso dilema e, para tanto, a ficção científica tem um papel importante nisso.
O professor e pesquisador Renato Sztutman, durante sua conferência Ciência e ficção: especulação e imaginação para resistir no Antropoceno, ressalta que os trabalhos de ficção científica “são formas que, por mais fantasiosas que pareçam, colocam alternativas para esse mundo de devastação que está fundado em um excepcionalismo humano”.
“A própria Isabelle Stangers mostra que o desafio para a antropologia não é pensar simplesmente na ideia de que existem diferentes culturas para uma mesma natureza, mas pensar um esforço diplomático capaz de colocar em conexão formas diferentes de estabelecer o que seria natural”, pontua. E, com isso, coloca em diálogo outros autores e um axioma importante do pensamento moderno: a humanidade. “É a espécie humana tal como tendem a pensar os modernos ou seria uma virtualidade antropomórfica universal, o que, segundo o Viveiros de Castro, pensariam os povos ameríndios?”, complementa.
Ao final, Sztutman traz reflexões importantes de Donna Haraway que possam nos tirar da encruzilhada. “Ela [Donna Haraway] procura evitar duas respostas ao horror do antropoceno: de um lado, a tecnologia como salvação; de outro, a ideia de que tudo está perdido”, explica. Tanto a literatura de Haraway quanto a experiência concreta dos povos nativos abrem flancos para imaginarmos futuros além do Antropoceno. “Essas especulações precisam, mais do que nunca nos tempos de hoje, de alianças com esses povos indígenas, povos que sempre souberam fazer o parentesco com outras espécies humanas e que ao mesmo tempo foram os que mais sofreram com essa destruição”, sugere.
Renato Sztutman (Foto: Arquivo pessoal)
Renato Sztutman é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. É mestre e doutor em Antropologia Social pela USP, área de etnologia indígena. Realizou pós-doutorado, em 2015, no Departamento de Filosofia da Universidade de Paris Ouest Nanterre.
É pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios - CEstA-USP e do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia - LISA-USP.
Foi editor responsável, entre 2013 e 2017, da Revista de Antropologia. Foi um dos fundadores e coeditou, entre 1997 e 2007, a revista Sexta-Feira. Seus principais temas de pesquisa são: cosmopolíticas ameríndias, fronteiras entre antropologia e filosofia, antropologia e cinema.
IHU – Do que se trata sua apresentação em sentido mais amplo?
Renato Sztutman – O tema mais geral que vou discutir é o lugar da imaginação e da especulação para responder à crise instaurada pelo antropoceno, essa época geológica em que o homem aparece como força predominante. Ao mesmo tempo reconhecido como o “tempo das catástrofes”. O antropoceno, cujo nome foi dado por Paul Crutzen e Eugene F. Stoermer, teve um debate sobre se seria o antropos essa força de transformação radical e não o capitalismo, a plantation. Estamos em uma era monstruosa, como diz Donna Haraway, que ela batiza de Chthuluceno, baseada na ficção de Lovecraft. É justamente a Donna Haraway que nos instiga a especular sobre como resistir a esse tempo monstruoso, propondo especulações fabulativas para pensar como habitar o problema dessa época, em que o homem é uma força geológica fundamental e coloca em risco a própria existência do planeta.
Nesse sentido, quando falamos do antropoceno, estamos evocando as ciências para pensar soluções e saídas para o que a gente vive. A ciência tem a necessidade de imaginar e especular o que está acontecendo. Para tanto, eu gostaria de articular diferentes trabalhos que vão falar dessa articulação entre imaginação e especulação para falar do antropoceno.
Começo com o gesto especulativo da filósofa das ciências Isabelle Stangers e de como ela tece uma relação entre ciência, filosofia e a ficção científica. Depois vou passar para a discussão presente no livro Há mundo por vir (Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2014) de Deborah Danowiski e Eduardo Viveiros de Castro, que vão pensar diferentes leituras sobre o fim do mundo, juntando filosofia, metafísica, ficção científica, cinema e mitologia. Passo então para o trabalho da Donna Haraway, que vai falar de uma fabulação especulativa, fazendo uma brincadeira com as iniciais “SF”, de Science Fiction, de Speculation Fabulation, String Figures, entre outras, como veremos. Gostaria de falar de um exercício e experimento que ela propõe e que chama de “histórias de Camille”.
IHU – Comecemos então, por Isabelle Stangers...
Renato Sztutman – Isabelle Stangers é uma filósofa da ciência belga. Para ela, a virtude das ciências modernas é menos o estabelecimento de uma verdade fixa do que a possibilidade de experimentar. O que fazem os cientistas – e ela está interessada no que eles fazem – é produzir experimentos e testar o real. Há uma frase que ela falou numa entrevista que é: “uma ciência triste é aquela em que não se dança”. Ela usa essa imagem para pensar a relação com a experimentação e incerteza. Por isso uma boa ciência é uma ciência que desacelera e que está associada ao ato de experimentar no laboratório e no campo.
Como filósofa ela vai dizer que o papel da filosofia não é ser o juiz da ciência, é mais ou menos como estabelecer boa parte da epistemologia, é dizer se as ciências atingem ou não graus de objetividade. O que uma filósofa da ciência deve fazer, diz Stangers, é acompanhar essas ciências, acompanhar a história da produção da ciência como uma aventura. Ela usa muito esse termo “aventura”, que ela tira do Whitehead, um pensador e filósofo que escreveu, entre outras coisas, o livro Processo e realidade (Editora Harper, 1957).
A questão central pela qual se guia Stangers é qual seria o papel da filosofia e da ciência diante do desastre da devastação ambiental que vivemos hoje, o que fazer com o “antropos” do antropoceno. O antropos é uma ideia própria da filosofia e da ciência moderna, esse excepcionalismo humano. Então a questão é sobre a resposta que temos que dar hoje, em um tempo que ela batiza como “tempo das catástrofes”, “tempo da irrupção de Gaia”. Gaia, essa figura mitológica que ela retoma, não seria a natureza inerte, cheia de leis imutáveis, mas esse mundo que responde a essa ação humana, que revida e que, portanto, está associado a uma série de catástrofes que nós vivemos hoje, como as mudanças climáticas e tantas outras coisas.
A Isabelle Stangers se refere ao especulativo, como uma promessa de pensamento livre dos interditos que caracterizam o pensamento moderno. Isso é importante pois ela não está propondo o termo especulação em seus dois sentidos correntes na filosofia: 1) um pensamento que parte de um raciocínio abstrato; 2) uma conjecturação que não é baseada em fatos concretos. Ao contrário, essa autora está pensando o gesto especulativo dentro de sua dimensão pragmática. É por isso que sustenta o gesto especulativo como um antídoto à crise dos nossos modos de pensar, da crise de “uma narrativa épica, do progresso, da racionalidade, da universalidade” e como tudo isso entra em questionamento e crise diante da ameaça da desordem climática e ambiental. Ela vai dizer, junto com outro filósofo, Didier Debaise, que os gestos especulativos são aqueles capazes de colocar o pensamento em engajamento por e para o possível, que devemos ativar e tornar perceptível ao presente. O engajamento especulativo pressupõe um pensamento das consequências e não uma utopia imaginária; ele trabalha a partir de um “e se”, e “se fossem assim e não de outro modo”.
O importante deste gesto especulativo, ao invés de dizer “o que é”, a grande questão ontológica, é pensar o que pode ser, o que poderia ser, pensar os possíveis, os mundos possíveis. Stangers vai fazer uma distinção entre um gesto especulativo e uma filosofia especulativa, que é aquela que se afasta da experiência. Ela está muito em diálogo com três filósofos que ela batiza de copensadores, a saber: Whitehead, William James e Leibniz, filósofo da virada do século XVII. Ela os define como pensadores minoritários, em que o mais importante não é deter a verdade, mas pensar os processos.
A ideia do Whitehead de filosofia como aventura e não como conquista é uma maneira que ela trabalha, considerando que nenhum pensamento é destacado e inocente, ou seja, o pensamento é localizado, tem lugar, está ligado a uma ecologia das práticas. O pensamento também é uma prática. A filosofia, nesse sentido, não é uma forma de acesso à verdade imutável, mas uma prática, uma aventura, um teste dos possíveis. Com isso ela foge de uma autoridade demasiada que se dá a algumas abstrações para pensar a filosofia com um elenco de possíveis.
“Tudo que existe deve sua existência a uma decisão de dar importância a algo, mas nenhuma decisão tem o poder de se impor como determinante final”, diz Stangers. Essa aventura filosófica que propõe o Whitehead é o contrário de uma moral odisseica, um caminho de salvação ou uma verdade imutável. Isso lembra muito uma autora com a qual Stangers não poupa o diálogo, que é a escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin, não por acaso filha do antropólogo Alfred Louis Kroeber, que reflete sobre o ato de escrever ficção científica.
Le Guin tem um texto muito importante chamado A teoria da bolsa da ficção (São Paulo: N-1, 2021), que foi recentemente traduzido para o português e no qual ela vai dizer que escreve ficções buscando fugir da narrativa do herói. Em vez de escrever a ficção científica baseada no relato de guerra e de caça, ela vai se pautar pelo relato de coleta e a figura deixa de ser uma arma para ser uma bolsa. Uma bolsa que torna possível a coleta de histórias. Essa imagem da ficção científica, que é também uma imagem do conhecimento, está muito associada a uma crítica feminista da epistemologia que aparece também em outras autoras como a Donna Haraway, a Vinciane Despret e muitas outras, de que o conhecimento não é absoluto, mas sempre localizado, o saber é localizado. Essa ideia de um saber localizado não dá origem a um saber total, a uma busca de uma verdade irrefutável, mas a uma coleta de histórias, daí a ideia da bolsa contra a narrativa heroica.
Isabelle Stangers vai estabelecer um diálogo muito forte com a Ursula K. Le Guin e vai mostrar que é no Antropoceno, no tempo das catástrofes que a gente vive, que aparecem essas situações questionantes por definição e que colocam a questão da possibilidade de um futuro. O que pode acontecer? O que podemos esperar de um futuro? Como responder a essa ameaça? A ficção científica, segundo ela, é uma maneira de responder a essa ameaça, pois é uma forma de elencar possíveis. Mesmo que possíveis imaginados, é uma forma também de pensar respostas. Aqui eu lembro a definição de mito para o Lévi-Strauss, que não é um autor citado pela Stangers, no qual o mito não é um reflexo do real, uma explicação do real, mas uma reflexão sobre o real, sobre as condições da existência. O mito é um instrumento para pensar nossas condições materiais, inclusive. Poderíamos tomar a ficção científica como mito, como uma reflexão que elenca os possíveis diante desta crise em que vivemos.
Tem um texto da Isabelle Stangers chamado A ficção científica e a segunda renascença, sobre o qual eu gostaria de falar rapidamente. O tempo que estamos vivendo hoje e o renascimento, nos séculos XV e XVI, são tempos de especulação, de incerteza e dúvida, em que algo novo pode estar sendo gestado. Então ela se baseia em um livro chamado Cosmópolis, que vai falar do renascimento como esse tempo da dúvida, que vai trazer a importância de um pensador como Montaigne, cuja máxima, que todos conhecem, é “o que sei?”. É um autor cético que constrói o conhecimento a partir do ceticismo e que vai argumentar, em um texto como Apologia de Raymond Sebond, que toda certeza tem a forma a priori de uma contradição. O renascimento e o pensamento que emerge dele é aquele que acontece a partir do encontro da Europa com uma outra alteridade. É um tempo de gênese do humanismo e das guerras de religião. Esse é o momento que vai dar origem a uma agenda escondida da modernidade. Nessa época de dúvida e de especulação profunda é que vai haver uma agenda que está na origem das ciências, da filosofia moderna, do racionalismo, da teoria política, enfim, de tudo que o Latour vai chamar de uma constituição moderna.
A Isabelle Stangers se debruça sobre o que ela chama de uma segunda renascença, reconhecendo que a primeira tem gênese da modernidade, mas apontando para o fato de que ela tem uma crise. O tempo das catástrofes como uma segunda renascença, gerando um tempo de dúvida e especulação. Nesse momento de crise, ela vai dizer que é preciso estar em defesa da imaginação, onde gêneros como o da ficção científica ganham lugar importante. Essa imaginação promove fabricação ativa de mundos que dão hipóteses de especulação ativa para poder desdobrar suas consequências e a possibilidade de experimentar, não apenas com uma possibilidade especulativa, mas também como uma diferente relação com aquilo que chamamos realidade. Esses gestos especulativos produzidos pela ficção científica também encontram eco nos primeiros cientistas do século XVI, como Galileu, a quem ela atribui um ato importante na invenção das ciências modernas. Ou seja, como as ciências modernas nascem, também, de situações imaginárias, como as ciências experimentais também nascem da imaginação e da especulação.
Stangers retoma um livro de Le Guin chamado Changing planes (Editora Ace, 2005), no qual ela vai falar desta espera entre os voos no aeroporto. Há uma passagem em que Le Guin vai dizer que a ficção científica não é sobre o futuro, não se trata de projetar um futuro, mas, sim, de falar sobre esses intervalos entre um voo e outro. Essa operação é o que ela chama de “desabituação” e desestabilização do estabelecido. A ficção científica é o que permite estar e pensar o entremundos, esses interstícios. Muitas das obras de Ursula K. Le Guin - por exemplo, o Ciclo de Hainish - vão falar da relação de diferentes planetas que foram colonizados por humanos e que se diferenciaram ao longo do tempo.
Qual a relação entre essas diferentes humanidades e entre diferentes possíveis humanidades? É claro que o fato de ela ser filha de um antropólogo conta bastante, pois ela está transportando para a ficção científica um mundo e um universo em que há planetas habitados por humanos e em que há universos diferentes não pela sua cultura, apenas, mas por sua natureza e a relação disso com a própria experiência da antropologia, que é também esse ato diplomático entre diferentes mundos.
A própria Isabelle Stangers mostra que o desafio para a antropologia não é pensar simplesmente na ideia de que existem diferentes culturas para uma mesma natureza, mas pensar um esforço diplomático capaz de colocar em conexão formas diferentes de estabelecer o que seria natural. O que ela chama de uma diplomacia cosmopolítica.
IHU – Neste contexto, como o livro Há mundo por vir nos ajuda a pensar questões de fundo trabalhadas na questão anterior?
Renato Sztutman – O tema do livro de Deborah Danowski e Viveiros de Castro é uma especulação sobre o fim do mundo. Eles vão mostrar que essa é uma especulação provocada pelas mudanças climáticas, pela crise ecológica, por uma incerteza ao mundo por vir. Ao invés de produzir um discurso único sobre isso, eles comparam diferentes especulações, de natureza diversa, sobre o fim do mundo. Eles vão comparar discursos filosóficos, metafísicos, ficção científica, literatura, cinema e mitologia indígena. Há algo interessante quando eles dizem que “tudo são mitos”.
O próprio Viveiros de Castro, em um texto chamado Metafísica e mitofísica, vai dizer que toda metafísica, um discurso sobre o ser, é também a constituição de uma mitofísica, um discurso mitológico que tenta dar conta do real. Portanto é possível comparar as mais diversas especulações, desde uma filosofia mais abstrata até a ficção científica – literatura ou cinema –, passando pela mitologia indígena. Todas elas oferecem especulações sobre o que é e o que poderia ser o fim do mundo. Mais importante: sobre a relação entre o mundo e o sujeito.
Os autores vão refletir sobre essas diferentes possibilidades de colocar em relação a humanidade e o mundo, ou seja, nós e o mundo. Uma reflexão sobre o fim do mundo implica uma relação entre nós e o mundo e, para tanto, é preciso diferentes respostas para o que é humanidade, o que é o sujeito, o que é o mundo.
O fim do mundo leva a perguntas sobre o começo. Há tempo antes do tempo? Há tempo depois do fim? E o mundo, o que seria o mundo? É o conjunto da biosfera, o cosmos como um todo? A realidade no sentido metafísico é o ser como tal ou é o unwelt socionatural humano? O que é humanidade, o sujeito e a pessoa? É a espécie humana tal como tendem a pensar os modernos ou seria uma virtualidade antropomórfica universal, o que, segundo o Viveiros de Castro, pensariam os povos ameríndios?
A partir daí eles vão construindo – ao modo do estruturalismo, eu diria – um grande quadro de permutações que vai compondo uma matriz estrutural para pensar as diferentes possibilidades de relacionar a humanidade e o mundo. É possível, então, pensar um mundo sem nós, mas também um “nós” sem mundo. O mundo sem nós seria uma hipótese na qual estaria o mundo antes de nós, as origens, algo que aparece em uma corrente filosófica chamada realismo especulativo, que seria enfim falar do mundo sem o sujeito, falar do mundo antes do sujeito, proposto por Quentin Meillassoux em um livro chamado After Finitude: An Essay on the Necessity of Contingency (Editora Continuum, 2010). Uma outra versão desta especulação é pensar a humanidade sem o mundo, a humanidade depois. Há uma bifurcação do mundo sem nós e nós sem o mundo.
A questão do mundo sem nós é tema de muita ficção científica, ao passo que a questão de nós sem o mundo é recorrente em diversos mitos indígenas, pois antes de nós já havia sujeitos, mas também nós depois do mundo, de modo que após o fim do mundo é possível que consigamos nos manter, por exemplo, em viagens para o espaço como a grande utopia da modernidade, isto é, sobreviver ao mundo.
Todas essas versões, bifurcações nas relações entre nós e o mundo podem ter natureza utópica ou distópica. Veremos que o livro de Deborah Danowiski e Eduardo Viveiros de Castro oscila entre uma distopia, da iminência de um fim, mas também uma utopia. Poderíamos, então, dizer, segundo eles, uma utopia de indigenização do mundo, de um devir indígena do mundo em que outras relações podem ser estabelecidas.
Um ponto fundamental deste livro, Há mundo por vir, é pensar o que seria um povo, que Latour vai chamar de “povo de Gaia”, e não mais os humanos, mas os terranos que compõem Gaia. Os humanos acreditam em uma natureza inerte e que, portanto, pode ser transformada e devastada. Já os terranos são aqueles que compõem com esta entidade, que não é a natureza, chamada Gaia. Mas Latour vê, nos terranos, um povo por vir, mas Deborah e Viveiros de Castro colocam uma questão: será mesmo que os terranos são um povo por vir? Será que não são os indígenas, aqueles que já viveram e vivem sob o signo da resistência e que, portanto, sabem lidar com o fim do mundo? Os indígenas não são sinônimo de um passado, mas a figuração de um futuro. É possível, sim, pensar um devir indígena, pensar o Brasil como uma enorme aldeia maracanã. Depois de páginas de distopia, existe uma utopia importante nessa obra e que vai falar desse devir indígena no mundo, uma possibilidade de ampliar essa relação entre nós e o mundo. Isso se dá com lições ameríndias.
IHU – Como a fabulação especulativa de Donna Haraway entra neste contexto?
Renato Sztutman – Ela brinca com as iniciais SF, em inglês, que é a mesma sigla para “especulação fabulativa”, “ficção científica”, “feminismo especulativo” e, também, para “figuras de corda” (string figures), que são aqueles jogos de barbantes que ela encontra entre povos indígenas americanos. Essas figuras de corda dos povos Hopi, por exemplo, são uma maneira de narrar eventos míticos de criação do mundo e que implicam a relação dos humanos atuais com os seres humanos que estão na origem da terra.
O livro de Donna Haraway Staying with the trouble (Duke University Press, 2016) é também uma tentativa de fazer florescer dentro de um planeta vulnerável. Ela chama o Antropoceno por outro nome, Chthuluceno, o tempo das monstruosidades. Cthulhu é esse personagem do Lovecraft, um ser zoomórfico, tentacular, e daí essa imagem do pensamento tentacular que ela alimenta nessa obra. Esse pensamento de que precisamos saber lidar com as catástrofes.
Duas figuras fundamentais desta reflexão da Donna Haraway sobre o Chthuluceno e o Antropoceno em geral são os biólogos Lynn Margulis e Scott Gilbert. Ambos estão empenhados em trazer para a biologia a centralidade da simbiose, dos mutualismos e daquilo que eles vão chamar de simbiogênese. Margulis, e depois Gilbert, vão pensar uma outra imagem para a biologia e para a evolução. As espécies evoluem não por linhas separadas, mas por relações de simbiose entre elas, que é, precisamente, o que ela chama de simbiogênese. Donna Haraway dirá que a simbiogênese é uma imagem que devemos nos agarrar para contar boas histórias nesse tempo de catástrofes. A história da simbiogênese é uma história de coevolução das espécies, evolui-se junto e não separado.
Por exemplo, nesta outra imagem da biologia a ideia de cooperação é muito mais forte que a de competição. Então estaríamos mais próximos do Kropotkin, téorico do anarquismo que fala de uma ajuda mútua, que de um Adam Smith. Sabemos que a própria teoria evolucionária do Darwin é, também, composta junto com uma ideia de competição que vem da teoria política do Adam Smith. Com a Margulis e o Gilbert, estamos pensando uma outra imagem do mundo biológico que é baseada na simbiose e na cooperação, que nos obriga a pensar, não a partir de indivíduos, de organismos individuais, na relação entre as espécies e os organismos, de modo que os organismos seriam, antes de tudo, resultado de uma simbiogênese.
Para Margulis, os participantes da simbiose podem ser chamados de “simbiontes”. Por exemplo, bactérias são simbiontes presentes em todos os seres e foi a partir dos estudos sobre elas que a bióloga desenvolveu este estudo. O Scott Gilbert vai dizer que o nosso corpo é formado por mais de 160 diferentes espécies de bactérias. Isso implica uma crítica à ideia de corpo homogêneo. Todo o corpo tem esses invasores que, muitas vezes, são bem-vindos. Poderíamos pensar a própria multicelularidade animal pela simbiogênese. De uma certa maneira, as bactérias moldam uma forma de biologia de animais modernos.
Donna Haraway toma essa imagem outra da biologia, que não é a biologia que foi hegemônica, fundada na ideia de indivíduo e de espécie, mas, justamente, de relações que possam ajudar a pensar uma resposta ao Antropoceno. Estamos diante da necessidade de pensar e agir simpoieticamente.
A arte de viver no mundo danificado é a arte de propor soluções simpoiéticas simbiogenéticas. Ela vai trazer essa teoria da fabulação especulativa para a ficção científica. Ela vai dizer que essa fabulação especulativa é um método de traçar, de seguir um fio no escuro, uma história verdadeira e perigosa de aventura. Ela procura evitar duas respostas ao horror do Antropoceno: de um lado, a tecnologia como salvação; de outro, a ideia de que tudo está perdido. Essa posição sustenta que não precisamos nem cair numa narrativa salvacionista, nem num pessimismo absoluto, nem em uma utopia total, nem em uma distopia imobilizante. Daí a ideia que ela tem de ficar com o problema, do “staying with the trouble”. Ficar com o problema exige de nós que façamos novas alianças, novas formas de parentesco e que aprendamos a nos “tornar-com”. Não se trata nem de desespero, nem de esperança, mas de fazer “figuras de cordas com espécies companheiras”, especular possibilidades de futuro com essas espécies companheiras com as quais coevoluímos.
A Donna Haraway faz um exercício de especulação e fabulação especulativa que resultou no último capítulo do livro que estamos discutindo, chamado “Histórias de Camille”. Ela batizou assim pois as ideias ali surgiram em um ateliê organizado pela Isabelle Stangers, chamado, não por acaso, gestos especulativos. Nesse capítulo, ela cria uma especulação fabulativa sobre o que vai chamar de filhos da compostagem, uma experiência de determinados humanos em um futuro mais ou menos próximo, diante do desastre ambiental e da iminência de um colapso da Terra, que resolvem fazer uma experiência de criar e fazer crianças, que, na verdade, são simbiontes com animais em extinção. Com essa ficção dos filhos da compostagem ela abre caminhos para pensar futuros possíveis em um planeta danificado. As histórias de Camille são o que Haraway chama de “simficção”, uma ficção sem poiética, uma ficção baseada na possibilidade de fazer crianças que estejam em simbiose com determinados animais em risco de extinção.
Nesse ponto ela discute um slogan que ela lança e que é controverso: “faça parentes, não faça bebês”, que em outros termos ela propõe fazer parentes, não população. Isso é muito interessante porque o que ela vai dizer é que a humanidade está baseada em uma ideia de reprodução, de parentesco como reprodução, mas é importante saber que é possível fazer parentesco com outras espécies, não apenas através de formas reprodutivas.
Ela está interessada não somente na reprodução, mas na regeneração do mundo. Ela vai mostrar que os humanos têm uma responsabilidade nesta regeneração do mundo. As Camilles que são dessa linhagem descrita na ficção científica são crianças nascidas de uma simpoiésis e que, portanto, se contrapõem a um ideal de excepcionalismo humano. Ela vai mostrar que essa experiência, muito específica, simpoiética, contrapõe-se tanto ao excepcionalismo humano quanto a um binarismo de gênero. Essas crianças podem ser não binárias anatomicamente. Essas comunidades da compostagem têm como objetivo refazer o mundo em ruínas, mas também colocam um problema de justiça e liberdade reprodutiva.
As feministas, e Donna Haraway é antes de tudo uma feminista, de modo que a fabulação é um feminismo especulativo, têm uma responsabilidade para com o crescimento populacional humano. Nós sabemos que o crescimento populacional humano tem impacto para a sobrevivência de outras espécies animais, pois nós somos responsáveis pela extinção de muitas espécies. Tentando reverter esse quadro de extinção, ela propõe um quadro de simbiontes, um mundo no qual é possível escolher o animal simbionte para a nova criança. Isso não tem nada a ver com uma política de controle populacional, de biopoder. Tanto porque toda biopolítica é uma necropolítica, que estipula quem tem o direito de nascer e quem deve morrer ou desaparecer, mostrando como a política da natalidade no mundo moderno é também uma política racial eugênica.
Quem é o povo de Camille na ficção de Haraway? São humanos que vivem nas montanhas Apalache, na Virgínia Ocidental, uma terra devastada pela extração de carvão. A autora vai mostrar que se torna cada vez mais patente a necessidade de alianças com povos locais e outras criaturas não humanas para barrar a devastação desse ambiente. O povo de Camille é formado por várias experiências com a compostagem, de modo que ela brinca com essa ideia em que se junta diferentes materiais orgânicos para produzir novas formas de vida. Ela fala também por que a fabricação de crianças pode ter a ver com a compostagem, já que a palavra humana vem de humus, que é a terra, esse solo composto de diferentes materiais orgânicos. Não se trata mais de humanidade, mas de humusidade.
No caso desse povo de Camille, tem-se humanos que se deparam com o perigo da extinção de uma determinada borboleta, que é a borboleta-monarca, uma espécie que migra da Virgínia para o México, na província Michoacán, no começo do inverno. Donna Haraway vai mostrar que essas borboletas estão em risco por conta da ação dos herbicidas que matam as plantas que as alimentam. Então essa geração de Camille vai propor uma simbiogênese das novas crianças com as borboletas, produzindo crianças híbridas.
O que temos aqui é um esforço de imaginação para pensar uma saída fictícia, que seja, para o problema do Antropoceno. A questão populacional para Donna Haraway é sempre fundamental, aí ela vai dizer que “temos o risco de em 2100 sermos 11 bilhões de pessoas na Terra; hoje somos 7,8 bilhões”. Essa ficção especulativa está preocupada em saber como fazer para que a população diminua, e fazer isso nada tem a ver com esperar uma nova epidemia ou pandemia, mas ter uma política de reprodução e regeneração da terra. Para Haraway, o intervalo que compreende o ano de 2000 e 2050, portanto um futuro próximo e também o nosso presente, seria o tempo de um grande tremor, de uma grande ansiedade sobre a destruição ambiental – chamada de sexta extinção em massa –, e também o tempo das mudanças climáticas e onde há um grande número de refugiados sem refúgio, pessoas que ficam órfãs de seus ambientes.
Dentro desse contexto que se criariam as comunidades da compostagem, que pressupõe uma ressurgência coletiva. No caso desse grupo que ela imagina, o povo de Camille, é como dar às borboletas-monarcas um futuro em que elas são importantes para a manutenção de todo um ecossistema que vai da Virgínia ao México.
Essa ficção especulativa estará baseada em estudos multiespécies – da relação entre as espécies –, estudos decoloniais e de como a devastação ambiental está associada à temática da colonização e da exploração do trabalho e dos corpos negros, indígenas e por aí em diante. Esse é um problema fundamental que vemos nesta discussão. Por isso Haraway fala de uma geração de Camilles, cuja experiência inaugural vai sendo contada por outras histórias. Um exemplo é um anime do Hayao Miyazaki, chamado Nausicaä do Vale do Vento (1985), a menina que pode voar pela floresta e regenerar a Terra biodiversa, e entende a linguagem das plantas e dos animais.
Essa primeira Camille vai dando origem a outras linhagens. Por exemplo, a segunda Camille vai acompanhar as monarcas em suas migrações para o México, onde vão conhecer o povo Mazahua do estado de Michoacán, para quem as borboletas-monarcas têm um significado muito preciso. Elas são manifestações dos humanos mortos e são celebradas na festa dos mortos que ocorre em novembro.
A Donna Haraway vai trazendo várias camadas para esta análise, e uma delas é pensar como as borboletas-monarcas subvertem essa fronteira supersensível que é a fronteira entre Estados Unidos e o México. Haraway vai mostrar como estas Camilles que migram acabam se engajando na luta desses indígenas pela água e pela terra. Esse povo Mazahua já vive em simbiose com as borboletas, pois, para eles, essas borboletas são a manifestação dos mortos que vêm visitá-los no começo do inverno, que é quando são celebradas estas festas.
Na terceira geração de Camille, dois terços das comunidades humanas já são simbiontes, há um reflorescimento ambiental, uma realização desta revolução ontológica de fazer parente entre humanos e não humanos. No entanto, uma quarta geração de Camille, que seria no ano de 2255, é acometida por doenças virais que afetam simbiontes fúngicos de plantas alimentares e os parasitas protozoários das borboletas e produzem uma extinção em massa, um desaparecimento das monarcas. As borboletas somem, mas seus simbiontes, esses seres que são as Camilles, continuam a existir. A autora inclui nessa utopia de regeneração do mundo uma distopia, que é dada, justamente, pela pandemia e aparecimento de um novo vírus e ela escreve isso poucos anos antes da pandemia da Covid-19 que nos assola hoje.
Essa geração de Camilles, que vive esse momento de desalento, vai iniciar a quinta Camille e tem por missão trazer à presença as criaturas desaparecidas. O que ela vai fazer? Justamente aprender a cantar com os indígenas Mazahua porque estes cantam seus mortos e ao cantar eles trazem, de novo, a borboleta à sua existência. Nesse ponto Donna Haraway fala em um animismo experimental, práticas de memória e de luto em que ela cruza experiências e práticas de diferentes povos indígenas, tanto dos Mazahua, com seus festivais aos mortos, quanto os Inuit, com uma cantora chamada Tanya Tagaq que tem essa coisa do canto como algo capaz de ser uma forma de comunicação com os espíritos.
Haraway fala do animismo como uma versão sensível do materialismo. Ela termina essa narrativa sobre a Camille com um canto da ativista neopagã Star Rock, que fala sobre a importância de cantar os mortos e a importância de sentir dor e fazer o luto. Quando eu reli esse texto da Donna Haraway, o que fiz nos anos anteriores à pandemia, pareceu-me muito atual. Ela está falando tanto de uma utopia de regeneração do mundo a partir de uma possibilidade de parentesco entre humanos e animais, mas, ao mesmo tempo, junto com isso uma necessidade de fazer o luto e evocar os mortos.
IHU – Como essas obras e autores dialogam com o momento presente?
Renato Sztutman – O que vemos tanto em Haraway quanto em Deborah Danowiski e Viveiros de Castro, mas também em Stangers, é como a imaginação e a especulação podem estar aliadas a uma reflexão sobre o Antropoceno e uma forma de resistir a ele. São formas que, por mais fantasiosas que pareçam, colocam alternativas para esse mundo de devastação que está fundado em um excepcionalismo humano. Essas especulações precisam, mais do que nunca nos tempos de hoje, de alianças com esses povos indígenas, povos que sempre souberam fazer o parentesco com outras espécies humanas e que ao mesmo tempo foram os que mais sofreram com essa destruição.
O tempo da catástrofe que vivemos hoje, na verdade, já foi vivido há muito tempo por povos indígenas, africanos e australianos, que foram expulsos de suas terras, tiveram seus territórios devastados e aprenderam, a duras penas, a resistir e a compor o mundo e viver nas ruínas.