“Ver o mundo conectado em um grande rizoma muda nossa forma de compreendê-lo”, afirma a bióloga
Enquanto o "conceito de antropoceno ainda está em construção apesar de ser um termo usado desde 1995" e as ciências estudam suas causas e efeitos no ambiente em que vivemos, um dos desafios das ciências, em particular a biológica, é tratar a relação humana com os não-humanos "fora de uma perspectiva utilitarista", observa Nicole Cristina Machado Borges na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Os não-humanos, pontua, "são importantes por si só nas suas próprias conexões com o meio. Nesse sentido, deixamos de lado nossa visão de humano como ser superior, e passamos a ver o mundo como algo que devemos cuidar e conhecer porque pertencemos a ele. Além de ensinar biologia, precisamos ensinar o pertencimento ao mundo, o fazer parte de algo maior. Somente com o pertencer podemos mudar o mundo e resistir ao antropoceno".
Defensora de um modelo de estudo multiespécie, que considera a integração entre as ciências e as humanidades como melhor conjunção para compreender a realidade, Nicole destaca que o "campo das ciências biológicas, por serem consideradas uma ciência dura, que trabalha com a exatidão, sendo sempre objetiva, tem uma certa dificuldade em lidar com a ligação entre biologia e filosofia". Entretanto, assegura, "essa ligação abre uma nova possibilidade de entender a vida e nos relacionarmos com ela. Na biologia, tudo precisa ser comprovado, quantificado e medido; o sentir e se transformar durante a pesquisa não é valorizado. São campos diferentes e que enxergam o 'fazer ciência' de uma forma diferente. As ciências biológicas se embasam muito nas ciências exatas com a pretensão de um método único, no qual tudo é realizado de um único jeito de se produzir ciência, como forma de se consolidar, criando sempre rótulos e padrões. Quando trazemos outras perspectivas contemporâneas que misturam filosofia, antropologia e outros saberes, a experimentação com o bordado, com a biologia, é fugir dessa lógica cartesiana e positivista que busca, fora da pesquisa quantitativa, uma explicação para a compreensão da vida. É se entremear em outros campos sem se desvencilhar totalmente da biologia, o que a transforma em uma ciência transdisciplinar".
Nicole Cristina Machado Borges é graduada em Ciências Biológicas e mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. É pesquisadora do Laboratório de Ecologia e Comportamento de Abelhas - LECA-UFU e integrante do Grupo de Pesquisa UIVO, realizando pesquisa sobre filosofia da diferença, estudos multiespécie e educação ambiental.
IHU - Na pesquisa intitulada "Abelhas melíferas compondo paisagens em ruínas: o que é possível (re)existir em uma educação no Antropoceno?", você menciona a necessidade de "repensar a biologia". Em que sentido? O que significa repensá-la em relação à concepção que se tem hoje?
Nicole Cristina Machado Borges - Muitas vezes a biologia é vista e ensinada desconectada do mundo. Ensinamos como um conteúdo unicamente teórico sem conectá-lo com o mundo e com nós mesmos. Somos biologia, pulsamos todo o conhecimento que ministramos em sala. Somos biologia quando pensamos em nós como indivíduos ou como parte da biosfera. Entretanto, em sala de aula os conhecimentos são passados em caixinhas; muitas vezes não conseguimos enxergar as relações com um todo. Se nós, como professores, já temos essa dificuldade, imagine as crianças que são treinadas a enxergar o mundo todo fragmentado. Ver o mundo conectado em um grande rizoma muda nossa forma de compreendê-lo. As relações com os não-humanos precisam ser trabalhadas fora de uma perspectiva utilitarista. Eles são importantes por si só nas suas próprias conexões com o meio. Nesse sentido, deixamos de lado nossa visão de humano como ser superior e passamos a ver o mundo como algo que devemos cuidar e conhecer porque pertencemos a ele. Além de ensinar biologia, precisamos ensinar o pertencimento ao mundo, o fazer parte de algo maior. Somente com o pertencer podemos mudar o mundo e resistir ao antropoceno.
IHU - Que contribuições a biologia pode dar às discussões sobre o antropoceno e que contribuições tem dado hoje?
Nicole Cristina Machado Borges - O conceito de antropoceno ainda está em construção apesar de ser um termo usado desde 1995. A biologia estuda as relações dos seres vivos, a forma como tudo funciona, busca cura para doenças e formas de viver por mais tempo, busca explicar como tudo funciona, as plantas, os animais, os fungos... Acredito que acima de tudo a biologia tem a contribuir com a sua forma de entender o mundo e criar soluções com as ruínas. Entender como o antropoceno se constitui, como as alterações climáticas, o uso de agrotóxicos e as monoculturas afetam a relação entre as espécies e, acima de tudo, dialogar com a comunidade, principalmente a de pequenos produtores, para ouvi-los, porque eles também são diretamente afetados por todos os danos causados pelos humanos. A biologia também tem um papel importantíssimo em procurar formas para tornar essas ruínas habitáveis. As ruínas existem, mas como fazê-las florir? Este é o papel da biologia: procurar formas de minimizar e formas de continuar com a vida.
IHU - Como as teorias filosóficas desenvolvidas por Deleuze e Guattari possibilitam repensar o conhecimento biológico?
Nicole Cristina Machado Borges - Deleuze e Guattari ampliam a possibilidade de enxergar o conhecimento biológico. Trazer não só Deleuze e Guattari, mas a antropologia, com Anna Tsing, e os saberes ameríndios, com Ailton Krenak e Cristiane Takuá, permitem uma nova forma de compreender a vida. Quando penso em um rizoma, penso no conceito de Deleuze e Guattari, em como tudo está conectado e se entrelaçando em um infinito “intermezzo”. Estar em devir com o lugar a que pertencemos, se permitir ser afetado e afetar onde tudo se conecta. Pensar a biologia além do que é proposto, questionar e abrir o olhar para um novo mar de possibilidade, para ver, pensar e fazer a biologia.
IHU - Como essas teorias são vistas, de modo geral, no campo das ciências biológicas?
Nicole Cristina Machado Borges – O campo das ciências biológicas, por serem consideradas uma ciência dura, que trabalha com a exatidão, sendo sempre objetiva, tem uma certa dificuldade em lidar com a ligação que fazemos entre biologia e filosofia. Essa ligação abre uma nova possibilidade de entender a vida e nos relacionarmos com ela. Na biologia, tudo precisa ser comprovado, quantificado e medido; o sentir e se transformar durante a pesquisa não é valorizado. São campos diferentes e que enxergam o “fazer ciência” de uma forma diferente. As ciências biológicas se embasam muito nas ciências exatas com a pretensão de um método único, no qual tudo é realizado de um único jeito de se produzir ciência, como forma de se consolidar, criando sempre rótulos e padrões. Quando trazemos outras perspectivas contemporâneas que misturam filosofia, antropologia e outros saberes, a experimentação com o bordado, com a biologia, é fugir dessa lógica cartesiana e positivista que busca, fora da pesquisa quantitativa, uma explicação para a compreensão da vida. É se entremear em outros campos sem se desvencilhar totalmente da biologia, o que a transforma em uma ciência transdisciplinar.
IHU - Que relações você estabeleceu em suas pesquisas entre as abelhas e as teorias filosóficas desenvolvidas por Deleuze e Guattari?
Nicole Cristina Machado Borges - Para construir uma pesquisa, devemos afetar e ser afetados, nos deixar contaminar e ser contaminados, “rizomar em devires”, como digo em minha pesquisa. Com Deleuze e Guattari, é se transformar junto à pesquisa, se atravessar pelo que você pesquisa e viver aquilo. Sou pesquisadora de abelhas desde a graduação, mas com um olhar mais biológico. A partir do momento em que me permiti viver a pesquisa em um devir-pesquisa, em um devir-abelha, ela floresceu. As abelhas são seres extraordinários; é incrível sua relação com o mundo, e como elas vivem em rizoma com o meio ambiente. Cartográficas por natureza, as abelhas bebem nos mais diversos mundos, floreiam sua relação entre si e com não-abelhas, propagando a vida e criando possibilidades de existência. Pensando no conceito de ziguezague de Deleuze e Parnet, elas deslizam entre, são algo que se passa entre dois como uma diferença de potencial: as abelhas ziguezagueiam entre flores, árvores, criando relações e camadas de relações. O ninho de uma abelha sem ferrão pode ser visto como um rizoma que se conecta pelas mais diversas formas entre potes de pólen, células de cria, invólucro, potes de mel, formando platôs. As abelhas e flores deixam marcas umas nas outras, evoluíram juntas onde as flores desenvolveram sinais olfativos e visuais para atrair determinados polinizadores, o que chamamos na biologia de síndrome de polinização; o que se aproxima do conceito de Dupla Captura de Deleuze e Guattari, em que ambos deixam marcas uns nos outros. As abelhas, com suas relações rizomáticas, nos mostram como nos relacionar com o todo, viver deixando marcas e espalhando “pólens” para a propagação da vida.
IHU - Os estudos mais recentes sobre abelhas alertam para a extinção desses animais. Nas suas pesquisas, você menciona que elas se "adaptam e criam modos de (re)existir em meio às paisagens em ruínas". O que tem observado? Como se dá essa adaptação entre as abelhas?
Nicole Cristina Machado Borges - Os exemplos que cito em minha dissertação são espécies com alta capacidade de adaptação e que se propagaram apesar de todo o cenário trágico. Entretanto, a maioria das abelhas é sensível a mudanças ambientais, à crescente fragmentação de habitat, às monoculturas e, consequentemente, ao uso indiscriminado de agrotóxicos. E mais: as espécies de abelhas vêm desaparecendo. Apesar do alto uso de agrotóxicos nas plantações, ainda é possível encontrar abelhas que coletam pólen e néctar. Elas se adaptaram, o que é favorável para sua sobrevivência. Porém, estamos levando as espécies ao limite da sua capacidade de tolerar as perturbações. Mesmo aproveitando as brechas criadas pelas ruínas para (re)existir, são animais sensíveis e que estão sendo duramente acometidos. A sua diminuição vem sendo sentida na produção de alimentos, algo que contabilizamos, porém reflito o quanto estamos perdendo na produção que não é quantificada, na regeneração de áreas degradadas, na reprodução das plantas e das manchas de vegetação natural por causa das monoculturas. Acredito que essa é a nossa maior perda.
IHU - Como você tem pensado a educação a partir de uma perspectiva multiespécie? Na prática, como isso pode se efetivar?
Nicole Cristina Machado Borges - A educação multiespécie é baseada na aprendizagem com o todo, permitindo ao amor fluir, o que rompe com a superioridade do humano sobre os não-humanos. Sempre que penso em uma educação na perspectiva multiespécie, penso em Ailton Krenak, que diz que, diferentemente do que pensamos, nós somos seres multiespecíficos: somos água, bactéria, somos multiespecíficos, nos relacionamos com o todo criando uma relação de rizoma com o mundo. Entretanto, isso não é trabalhado nas escolas. Cristiane Takuá também me vem à mente por contar sobre a educação para os indígenas, que acontece pela relação entre humano e não-humanos, que ela vive nas histórias contadas pelos povos, as memórias ancestrais e os cantos.
A educação multiespecífica expande o olhar, permite enxergar, entender e compreender a importância de todos os não-humanos no mundo. Permite a aprendizagem com os não-humanos, que ensinam sobre respeito, resistências, coexistências, que nos fazem encontrar e criar frestas e fazer florescer, ser e fazer floresta, ser as relações do mundo. A educação multiespécie permite romper com o sistema, deixar o amor fluir, as relações se concretizarem e aproveitar as oportunidades para a aprendizagem. Ser professora é um desafio, se reinventar a todo momento, ouvir e sentir as histórias e ser atravessada pelas crianças com sua curiosidade e muitas vezes por suas histórias duras. É (re)criar a prática de uma sala a outra, é vestir a camisa e não tirar mais, é se alimentar do mundo, é viver a docência como um devir-professor.
Entretanto, a vida de professor é algo duro, que requer muito do humano professor. Não somos máquinas e muitas vezes ultrapassamos nossos limites, somos cobrados a todo o momento. A parte burocrática escolar, junto com a cobrança curricular, é algo que demanda muito tempo do professor. O sistema escolar ainda não está preparado para uma educação multiespécie, e é por isso que a todo momento em minha dissertação digo que devemos criar brechas e aproveitar as frestas. Porque ser professor é viver aproveitando ao máximo tudo que o sistema tenta tirar de você, é fazer florir em meio ao caos. É enxergar uma aula e perceber o que você pode trazer de diferente, é aproveitar as datas comemorativas que já são trabalhadas na escola para trazer o conhecimento ameríndio. A educação multiespécie é algo que vem atravessando o ser professor: a partir do momento que você conhece, sua visão sobre o mundo muda, o que nos faz trazer de alguma forma a visão multiespécie para a aula. Ela nos faz transformar o ambiente escolar, que era algo apartado do mundo, em um lugar que vê, sente e participa do mundo.
IHU - Deseja acrescentar algo?
Nicole Cristina Machado Borges - Estar na escola e lidar com todas as questões do ambiente escolar e ainda assim tentar fazer diferente não é uma tarefa fácil. Acredito que muitas vezes entramos em contradição, acabamos por cair no método tradicional, cobramos a mudança que queremos ver no mundo e na sala de aula, mas o sistema não torna isso fácil. Mas, muitas vezes, a educação está aí, nas brechas. Pensar fora do tradicional é algo trabalhoso e muitas vezes dolorido, promove uma mudança interna e externa no ser professor – nunca é uma tarefa fácil. Acredito que, à medida que vamos nos formando, vamos mudando nossa prática docente. Tenho esperança de que com o tempo mudaremos nossa visão do mundo, vamos perceber o mundo nas suas relações multiespecíficas e assim teremos uma nova forma de educar. Ensinar é deixar marcas e ser marcado, é afeto, é afetar e ser afetado, é um constante movimento.