Para o filósofo alemão, o capitalismo é a causa destrutiva e autodestrutiva da vida e do planeta
As críticas ao sistema capitalista não podem se limitar a chamar a atenção para o fato de que este sistema econômico gera "uma injustiça social enorme porque joga a maior parte da população na miséria e favorece apenas uma parte da população", disse o filósofo alemão Anselm Jappe em conferência virtual ministrada no Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 18-05-2022. Segundo ele, neste aspecto, "as sociedades anteriores, escravagistas ou feudais, eram sociedades que, do ponto de vista da distribuição injusta e desigual da atividade social, não deviam nada ao capitalismo". O ponto essencial da crítica, disse, deve concentrar-se no aspecto "destrutivo e autodestrutivo" do capitalismo.
Hoje, contextualizou, os "aspectos mais visíveis da autodestruição do capitalismo" são "o aquecimento global, a nova extinção dos seres humanos ou o esgotamento dos recursos naturais da vida". Na interpretação dele, o fenômeno que está por trás da mudança climática e da crise ecológica não é o antropoceno, mas, sim, o "capitaloceno". "Não é o homem enquanto tal que é um destrutor natural das sociedades, ou seja, é preciso falar de um capitaloceno: é depois que a humanidade entrou na sua fase capitalista que houve uma desregulação e um desequilíbrio irreversível da estrutura biológica e mesmo geológica da Terra".
A seguir, publicamos a conferência "A guerra e a sociedade da autodestruição", ministrada por Jappe no Instituto Humanitas Unisinos, no Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo. A programação completa do ciclo está disponível aqui.
Anselm Jappe (Foto: Lavra Palavra)
Anselm Jappe é filósofo e ensaísta nascido na Alemanha. Estudou na Itália e na França, onde vive atualmente. Além de inúmeros artigos publicados na revista Krisis, é autor de, entre outros, "A sociedade Autofágica" (São Paulo: Elefante Editora, 2021), "As Aventuras da Mercadoria. Para uma nova teoria do valor" (Lisboa: Antígona, 2006) e "Guy Debord" (Petrópolis: Vozes, 1999).
IHU – Que relações existem entre o capitalismo e a destruição das sociedades?
Anselm Jappe – Há uma relação entre o capitalismo e a destruição da sociedade, seja no nível econômico, ecológico ou psicológico. A abordagem que proponho é inspirada no que chamamos de “crítica do valor”, ou seja, uma abordagem pós-marxista iniciada por Robert Kurz e outros autores do fim dos anos 1980 na Alemanha. É uma abordagem que ajudo a difundir na França e na Itália desde os seus princípios – e é uma abordagem que encontrou muita ressonância no Brasil.
Entre as particularidades dessa abordagem da crítica do valor está o fato de ela não fazer apenas uma crítica moral do capitalismo ou da sociedade mercantil, mas em insistir no lado destrutivo e autodestrutivo dessa sociedade. Primeiramente, como vocês sabem, a leitura do capitalismo proposta pela crítica do valor é fundada em certas categorias da obra de Marx, notadamente aquelas desenvolvidas no início de O Capital, como mercadoria, trabalho abstrato, dinheiro, valor e o valor mercantil, criado pelo lado abstrato do trabalho. Ao mesmo tempo, a crítica do valor é fundada na luta de classes. Nesse sentido, a crítica do valor julga que a crítica do capitalismo deve ser mais profunda, ou seja, fundada naquelas categorias.
A crítica do valor retoma as intuições de Marx, indo, de certa forma, contra outras intuições dele. Ou seja, a crítica do valor não está, de modo algum, do lado de uma ortodoxia marxista, querendo encontrar a interpretação correta. A questão é muito mais usar os conceitos fundamentais de Marx para tentar entender o mundo contemporâneo, para se chegar em resultados completamente diferentes do que pode chegar o marxismo ou a esquerda tradicionais.
IHU – Pode dar um exemplo?
Anselm Jappe – A crítica do valor não insiste apenas no lado injusto do capitalismo. É claro que o capitalismo representa uma injustiça social enorme porque joga a maior parte da população na miséria e favorece apenas uma parte da população – isso é evidente e frequentemente denunciado. Mas não podemos limitar a crítica do capitalismo a essa questão da desigualdade porque ele, nesse sentido, não inovou muito. As sociedades anteriores, escravagistas ou feudais, eram sociedades que, do ponto de vista da distribuição injusta e desigual da atividade social, não deviam nada ao capitalismo. O caráter mais típico e específico do capitalismo e da sociedade moderna, capitalista e burguesa – que são termos que uso mais ou menos da mesma maneira –, é justamente o destrutivo e autodestrutivo. O capitalismo contém um dinamismo que é algo completamente novo, que o distingue de outras formas de sociedades, como as feudais, asiáticas, escravagistas na Europa ou as sociedades tradicionais incas no Peru – isso para não falar de outras que são chamadas de primitivas, sociedades que conheceram evoluções muito lentas sem revoluções nas forças produtivas, porque se baseavam sempre no essencial: em uma produção agrícola e uma distribuição que se fundava na reprodução cíclica dos mesmos recursos. Eram sociedades caracterizadas por uma tendência à estabilidade, o que não significa que não poderia haver enormes desastres. Mas as sociedades tinham uma tendência a voltar ao seu ponto de partida e, portanto, se caracterizavam pela prevalência do lado cíclico em detrimento do lado linear. Nesse sentido, as saídas de rotas poderiam ser reparadas no curso de décadas.
IHU – O que muda na sociedade capitalista?
Anselm Jappe – O capitalismo é idêntico ao capitalismo industrial. Ou seja, há uma aplicação sistemática da tecnologia e de máquinas na produção, o que significa uma explosão da produção que começou no século XVIII na Inglaterra, no setor têxtil, primeiramente, mas que, pouco a pouco, desde dois séculos e meio, invadiu o mundo inteiro e todas as esferas da vida. Esse dinamismo e caráter linear tende sempre a aprofundar-se sem jamais voltar a níveis anteriores, o que torna a sociedade contemporânea tão perigosa. Essa parece uma tendência irreversível, que não pode ser controlada por ninguém nem depender da vontade de ninguém. Para a abordagem que defendo, da crítica do valor, o capitalismo não é apenas uma questão de uma sociedade regida por classes ou por um comitê de poderosos que fica manipulando a sociedade. Isso, evidentemente, existe, mas faz parte apenas da execução de regras e leis muito mais profundas daquilo para o qual Marx chamou a atenção, ou seja, o fato da obrigatoriedade da valorização do valor, que faz parte do processo da totalidade.
As políticas econômicas organizadas pelo que chamamos de governos ou classes dominantes são essencialmente a execução de leis que são o que Marx chama de o fetichismo da mercadoria.
IHU – Quais são os aspectos destrutivos do capitalismo?
Anselm Jappe – Vou falar rapidamente de quatro aspectos desse caráter destrutivo. Esse caráter destrutivo e autodestrutivo não é tão evidente e simples, porque poderíamos imaginar uma sociedade injusta em que uma minoria domina uma maioria, mas que poderia ter uma base estável, como a sociedade feudal na Idade Média na Europa ou na China ou sociedades escravagistas, que eram sociedades injustas, mas não eram tendentes à autodestruição como é o capitalismo.
O primeiro aspecto é o econômico, ou seja, o que é diretamente ligado ao dinamismo do valor. A característica do modo de produção capitalista é a dupla natureza do trabalho. Ou seja, toda a atividade no capitalismo tem um lado concreto e um lado abstrato. Todas as atividades, embora sejam diferentes umas das outras materialmente, se equalizam. Obviamente, o conceito de trabalho abstrato não tem nada a ver com trabalho imaterial – o trabalho imaterial, o trabalho dos cientistas, sempre tem um lado concreto, que produz alguma coisa que serve a alguma necessidade. Mas, por outro lado, qualquer atividade, quer seja material ou imaterial, é um dispêndio de energia humana: trabalha-se durante um determinado período de tempo, independentemente do que se produz nele. Na verdade, não é o tempo que produz o valor, mas a energia humana – como esse dispêndio de nervos e músculos, como chamava Marx, que é medido pelo tempo e que decide, no fim das contas, o valor econômico das coisas através de uma série de aspectos complexos. Por exemplo, se forem necessárias duas horas para produzir uma mesa, ela terá um valor de duas horas. O valor é aquilo que determina a troca de mercadorias no mercado e não é determinado pela sua possibilidade de ser um objeto útil e ter uma necessidade, mas, sim, pela sua capacidade de conter valor. Então, se o tempo para produzir uma mercadoria diminui, o preço dessa mercadoria também vai diminuir – estamos falando de categorias abstratas. Isso é uma coisa muito visível todos os dias, se formos considerar a quantidade de dinheiro que se precisa dar para as mercadorias.
A teoria do valor em Marx não é uma teoria econômica simplesmente. Marx sugere que o valor é uma categoria histórica que não existe necessariamente em outras sociedades e é uma categoria que traz muitos problemas. Ou seja, o valor não é simplesmente uma unidade de medida que facilita as trocas. Nas sociedades capitalistas, somente o lado abstrato, o tempo necessário para produzir algo, acaba sendo o lado que conta. Isso porque o valor contém o sobrevalor, o mais valor, aquilo que dá lugar ao lucro. Isto é, o tempo que o trabalhador trabalha além do necessário para pagar seu salário. É por essa razão que podemos parar a produção de cereais e jogá-la no mar se ela não contém suficientemente valor ou se ela não gera suficientemente lucro, e investir em outro setor que vai dar mais lucro. O mais valor é sempre explicado como uma categoria mais moralista ligada à avidez e não ligada a uma estrutura econômica que faz com que a mercadoria não seja apreciada.
Marx também tinha dito que sua inovação mais importante era essa dupla natureza do trabalho, mas aqueles que hoje defendem Marx dizem que seu conceito principal é a luta de classes. Isso é muito discutível porque a ideia de luta de classes existia muito antes do capitalismo, enquanto a dupla natureza do trabalho, a subordinação do lado concreto da produção ao seu lado abstrato quantitativo, isso, sim, é algo encontrável apenas na sociedade capitalista burguesa.
Isso já indica um grande potencial destrutivo, porque há uma diferença na produção de conteúdo. Ou seja, no mundo da produção de mercadorias, a única coisa que conta é que as mercadorias contêm o máximo de trabalho possível, porque é só assim que se obtém o valor e o mais valor. Então, a capacidade dos objetos de satisfazer a necessidade dos desejos humanos é algo absolutamente secundário e quase que um efeito colateral. O que interessa é o fato de essa mercadoria poder ser trocável por uma quantidade de dinheiro. Isso gera uma diferença nas sociedades precedentes anteriores: as produções eram feitas para um senhor, para um proprietário, mas as produções tinham muito mais um caráter de utilidade, sobretudo no seu lado alimentar, enquanto na sociedade capitalista, o conteúdo da produção é uma espécie de pretexto ou mal necessário para se chegar ao que realmente importa, ou seja, transformar uma quantidade de dinheiro em uma quantidade ainda maior. Significa simplesmente transformar um dólar em cem dólares.
Se se produz veneno ou brinquedo, isso não tem nenhuma importância. Então, a sociedade capitalista é uma sociedade estruturalmente irrefletida e cega frente ao conteúdo da produção. Ela não se interessa pelas consequências para o produtor ou para o consumidor. Essa máquina de produção avança sozinha e apenas acidentalmente sacia algumas necessidades. Uma grande parte do que é produzido no mundo hoje é completamente inútil. Há superestruturas para levar produtos agrícolas de uma parte a outra do mundo quando na verdade eles poderiam ser produzidos nos próprios lugares, localmente. Essa diferença quanto ao conteúdo da produção já é um lado destrutivo e autodestrutivo do capitalismo, ou seja, uma perda de controle da sociedade sobre essa produção sobre si mesma. Isso porque se um produtor ou um grupo de produtores quisesse privilegiar o conteúdo da produção – o que Marx chama de valor de uso – em detrimento do valor mercantil, esses produtores seriam rapidamente esmagados pela concorrência ou pela dinâmica do capitalismo que, como eu disse, não tem nenhum órgão sensorial para perceber o lado concreto das coisas.
Há também um outro aspecto mais específico nessa pulsão destrutiva do capitalismo que é a substituição da força de trabalho pelas tecnologias. Nós temos a ideia de que o trabalho é necessário para produzir uma mercadoria – quanto mais trabalho, a mercadoria contém mais trabalho –, mas o capitalismo é a sociedade da concorrência, que faz parte do seu núcleo. Isso faz com que nunca tenha sido possível um capitalismo organizado ou monopolizado. Isso faz com que cada produtor de capital produza de forma mais barata para conquistar mercado e isso significa produzir mais coisas em menos tempo e produzir usando a tecnologia. Se um artesão, no século XVIII, fizesse uma camisa em uma certa quantidade de tempo [uma hora] e seu patrão lhe desse ferramentas para produzir três camisas ao invés de uma no mesmo tempo, sua camisa só valeria vinte minutos, e não mais uma hora. Ou seja, há uma diminuição, um repartimento nesse mesmo espaço de tempo na produção de três mercadorias. O primeiro que tem acesso a esse tipo de produção ganha uma enorme vantagem, porque vai conseguir vender o produto por um preço muito menor e vai conseguir esmagar os outros capitalistas. É por isso que as tecnologias são sempre usadas e nunca foi possível impedir o seu uso.
Mas isso abre um paradoxo autodestrutivo na produção capitalista porque o interesse do capital particular entra em contraste total com o interesse total do sistema. O capitalista particular tem interesse em investir na tecnologia e operar de modo que produza mais através de tecnologias. Mas isso significa que o valor de cada mercadoria, de cada produto, vai diminuindo e, com o passar do tempo, cada vez que novas tecnologias são usadas, há um novo padrão de produção e os preços vão caindo até uma nova rodada de usos de tecnologias. Isso aconteceu durante toda a história do capitalismo: sempre se produz mais e se aumenta a produção com o uso de tecnologias. Isso significa que as mercadorias contêm sempre menos valor. Então, se se produz 12 camisas em uma hora, cada camisa só produz cinco minutos de valor. Isso significa que o lucro que vem do mais valor é cada vez menor quando se produz mais camisas em uma hora. Isso deveria ter provocado a destruição do capitalismo desde o início se não houvesse o aumento da produção de mercadorias pelas tecnologias, se não houvesse uma compensação do ponto de vista dos mercados. Se uma mercadoria só contém cinco minutos de valor e, portanto, se produz doze camisas em uma hora, e não mais uma só, então o conjunto do valor é produzido. Se o artesão produz uma camisa em uma hora, o valor da camisa é de uma hora e 10% seria o mais valor e, portanto, cinco minutos seria o mais valor e o lucro do produtor. Se o dono do capital tem muitas máquinas, o mesmo operário pode fazer doze camisas em uma hora e isso significa que agora cada camisa só vale cinco minutos. Mesmo se quiséssemos admitir que ele tem 30% de lucro, isso significa que cada camisa só tem dois minutos de lucro em relação à antiga camisa produzida em uma hora. Mas esse efeito pode ser compensado. Por exemplo, se o operário faz 15 camisas ao invés de uma, a porção de valor produzida em cada camisa compensa, no conjunto, a quantidade de valor que existia em uma só camisa na produção artesanal. Então, o aumento quantitativo da produção vai compensando a redução do valor contida em cada mercadoria particular. Esse é um fato central para compreender o dinamismo do capitalismo.
A tecnologia leva a uma diminuição do valor de cada mercadoria e para não ir à derrocada, o capitalismo precisa aumentar a produção total. Quanto mais o valor diminuir em cada mercadoria particular, mais precisa-se aumentar a produção na totalidade. Essa nunca é uma solução definitiva, mas o capitalismo precisa sempre correr mais rápido do que sua própria derrocada.
Marx usa essa metáfora da “troca do trabalho vivo pelas máquinas” porque na verdade é uma vantagem para o particular imediato, mas significa cerrar o galho sobre o qual todo o sistema está sentado, como se fosse atirar uma bala no próprio pé. Isso porque o capitalismo destrói o seu próprio fundamento: a única razão do capitalismo é o valor, ou seja, a transformação do trabalho em valor. O capitalismo luta todos os dias contra a sua própria lógica. Há uma compulsão para se aumentar a todo momento a produção.
Cada inovação tecnológica no capitalismo diminui a parte do valor em cada mercadoria, que deve ser compensada com o aumento da produtividade na totalidade da sociedade. O que foi efetivamente o caso na expansão capitalista, tanto no sentido de uma colonização do mundo inteiro, mas também uma colonização no interior das sociedades, transformando em enormes atividades as que eram feitas em casa e foram transformadas em mercadorias, seja o caso de doces e geleias, seja o caso da educação. Então, o capitalismo precisa permanentemente transformar setores da vida social em mercadorias para encontrar sempre novos terrenos de valorização para usar a força de trabalho de forma lucrativa. Mas isso não pode continuar de forma infinita.
Historicamente, nos anos 1970, houve um momento em que o desenvolvimento das tecnologias que substituem a força de trabalho foi tão grande que não foi mais possível manter a produção no mesmo ritmo. Então, a crítica do valor afirma que, sobretudo a partir desse momento, há uns 50 anos, o capitalismo já perdeu seu caráter lucrativo e sobrevive somente graças às finanças, ao mundo financeiro. Ou seja, graças ao aumento do capital fictício em termos de valorização criada em papel. Então, desde uns 50 anos o capitalismo vive uma estagnação permanente, o que não impede grandes lucros para alguns atores econômicos e algumas empresas. Nesse sentido, o conjunto do capitalismo foi além da sua capacidade de expansão. Essa perda de velocidade consiste no fato de que o trabalho vivo, o trabalho no momento da sua execução, que é a única fonte de valor, desempenha um papel cada vez menor na produção em relação à tecnologia, em relação à automatização e ao uso de máquinas de informática que, enquanto tal, podem significar um lucro imediato individual, mas, do ponto de vista global, não contribui para o desenvolvimento do capitalismo.
A crítica do valor, desde o início, anunciou que o capitalismo estava se encaminhando para uma grande crise terminal. Isso não significa que ele iria ruir de um dia para o outro, mas significa simplesmente que ele não ia mais ter capacidade de crescimento e que ia sobreviver graças a muitos subterfúgios e ao capital fictício através da especulação financeira. A especulação financeira – os bancos, os mercados, as bolsas – não é a culpada pela crise mundial. Pelo contrário, é o mundo da finança que maquia e esconde a verdadeira crise, bem mais profunda, do mecanismo de valorização enquanto tal. O capitalismo, de certa forma, já conseguiu minar suas próprias bases e continua essencialmente a sobreviver nos moldes de uma ficção que a qualquer momento pode ruir e desabar. A todo momento que há uma crise nas bolsas, uma crise de dívida, os problemas aparecem.
IHU – Como relaciona o capitalismo com a crise ecológica?
Anselm Jappe – Este é o aspecto mais visível da autodestruição do capitalismo: o aquecimento global, a nova extinção dos seres humanos ou o esgotamento dos recursos naturais da vida. Fala-se do antropoceno, da importância do papel destrutivo da intervenção humana, sobretudo no ciclo da vida que chega a mudar a geologia do planeta. Mas outros respondem de forma bastante correta que o problema não é o antropoceno; não é o homem enquanto tal que é um destrutor natural das sociedades, ou seja, é preciso falar de um capitaloceno: é depois que a humanidade entrou na sua fase capitalista que houve uma desregulação e um desequilíbrio irreversível da estrutura biológica e mesmo geológica terra.
É verdade que uma boa parte do que hoje se chama de “ecologia” em geral não tem muita consciência do que significa o capitalismo e não tem poder de propor nada além de um desenvolvimento sustentável para poder salvar o capitalismo. Mas esses movimentos que criticam a autodestruição das bases da vida não vão muito além de uma crítica a empresas que destroem a natureza ou companhias de empresas mineiras ou de petróleo ou extrativas. Então, se centram muito na necessidade de regular o capitalismo. Isso é uma espécie de “cavalo de batalha” do que se chama comumente de ecossocialismo. Esse tipo de abordagem não vai muito longe nessa relação entre capitalismo e ecologia.
No meu entender, a estrutura mesma da sociedade capitalista, nessa relação com a dupla natureza do trabalho, é o que, na verdade, explica verdadeiramente onde está a raiz da destruição da natureza. Vou tentar expor o porquê brevemente. O aumento do uso da tecnologia e a diminuição do trabalho faz com que a mercadoria contenha menos trabalho implicado. Então, o valor é menor. Para evitar que isso se represente em uma diminuição da massa de valor global, é preciso produzir cada vez mais. Se produzimos 15 camisas com uma máquina, o lucro é maior do que o da produção de uma camisa artesanal. Mas não existe apenas o lado do valor abstrato; existe o lado concreto, porque 15 camisas produzidas exigem mais recursos naturais, além dos produtos químicos para tratar os tecidos. Então, o fato que a mercadoria produza menor valor não significa que ela use menos recursos naturais ou menos energia. Podemos dizer que alguns procedimentos produtivos usam menos recursos. Por exemplo, um carro hoje pesa muito menos do que um carro nos anos 1950. Também foram encontradas formas menos poluentes de aquecer as casas, mas isso não impede que o consumo de energia nunca tenha diminuído e nunca diminua na mesma proporção da diminuição do trabalho necessário para produzir uma mercadoria. A menor quantidade do uso de trabalho para poder produzir poderia ser uma boa notícia para uma sociedade que não fosse fundada no trabalho, uma sociedade razoável. Mas não estamos em uma sociedade razoável e racional. Estamos em uma sociedade fundada na produção, em que é sempre necessário, de qualquer modo, produzir cada vez mais, em que os produtos sempre chegam a uma obsolescência cada vez mais rápido para serem substituídos por outros em um contexto em que o comércio internacional e os transportes internacionais levam as mercadorias de um lado para o outro do planeta a todo momento. Então, isso significa que o capitalismo está condenado a consumir cada vez mais energia. A diminuição do trabalho necessário na produção produz indiretamente um aumento do consumo de energia.
Capitalismo: a produção de tudo que existe em mercadoria
Estamos em um nível de reflexão muito mais profundo do que a simples reflexão acerca dos grandes lucros das grandes empresas ou de setores industriais. É necessariamente essa contradição entre o lado abstrato e o lado concreto que leva compulsivamente a uma produção cada vez maior. Não é possível sair da destruição ecológica sem sair dessas bases da sociedade, ou seja, das bases dessa produção que visa apenas produzir quantidade de dinheiro investida. Uma vez que nós aceitamos essa base da vida social econômica, todo o resto nos acompanha. É uma consequência dessa sociedade, porque a sociedade mercantil tem a tendência de transformar tudo o que existe em produto, seja a floresta Amazônica, seja a saúde das pessoas idosas, o encontro humano, a cultura.
Praticamente tudo isso contribuiu nesse caldeirão da valorização, e o capitalismo, em plena crise, não está disposto a sair de cena. Muito pelo contrário, ele quer jogar tudo no caldeirão da valorização e tudo deve contribuir para a valorização de novos mercados e novas possibilidades de lucros. Como alguém disse certa vez, o capitalismo parece uma espécie de navio no qual não há mais combustível para navegar, mas seguimos jogando as madeiras do próprio navio para alimentar as suas caldeiras e assim ele vai se autodestruindo.
O problema se situa no nível global, ou seja, na base mesma da sociedade capitalista. Nesse sentido, nenhuma forma de desenvolvimento sustentável ou de capitalismo ecológico é possível. Isso não é possível, primeiramente, porque essas propostas querem salvar o essencial, ou seja, as categorias de mercadoria, dinheiro e trabalho. Mas é possível ver, ao mesmo tempo, que o capitalismo está tão em crise que ele não é capaz de conceder nada, de fazer qualquer concessão, nem mesmo em seu próprio interesse.
Vemos isso a cada dia e eu poderia citar exemplos da França. Quando há um conflito entre os interesses naturais, de um lado, e o lobby, de outro lado, seja de produtores de bicicletas ou de grandes empresas como a Monsanto, cada vez que é preciso decidir entre algum interesse econômico e algum interesse ecológico, sempre se privilegia o interesse econômico. No Brasil, é possível encontrar exemplos ainda mais evidentes. Estamos realmente em uma oposição frontal entre a ecologia e a economia e não podemos acreditar que seja possível salvar as bases culturais da vida continuando com a economia capitalista, fazendo algumas pequenas mudanças. Isso não é possível.
As ideias em torno da economia solidária, do decrescimento e das teorias que remontam à obra pioneira de Ivan Illich, são propostas que trazem questões interessantes e corretas de romper com todo e qualquer crescimento econômico, mas não avançam quando a questão é tomar posição perante questões anticapitalistas. Elas propõem muito mais uma reforma dentro do quadro capitalista, dentro do quadro existente, querendo salvar categorias capitalistas, como postos de trabalho, ou querendo usar diferentemente o dinheiro. Elas querem também muitas vezes fazer uso da política, indo ao parlamento ou participando das eleições. Essas propostas de economias alternativas podem contribuir e preparar os espíritos para a necessidade de uma mudança radical, mas na verdade não são capazes de indicar o caminho e a via por medo de consequências muito radicais.
IHU – Quais são as consequências do capitalismo no plano psicológico?
Anselm Jappe – Esse é um aspecto descrito no meu livro “A sociedade autofágica”. Neste livro, dei muito peso à categoria do narcisismo, essa categoria psicanalítica desenvolvida por Freud. O narcisista é uma pessoa que não é capaz de levar em conta o mundo em torno de si. É uma pessoa que vive essencialmente através das suas próprias projeções e que vê o mundo e as outras pessoas simplesmente como instrumentos de si. Portanto, é uma pessoa incapaz de empatia, de solidariedade e de criar laços com os outros. O narcisismo é uma patologia que existe em vários níveis de gravidade. Os psicanalistas em geral dizem que houve um aumento muito grande do narcisismo nas últimas décadas em relação à neurose clássica. A neurose clássica, segundo Freud, era essencialmente ligada à repressão dos prazeres, dos desejos, ou seja, há uma ideia de renúncia, enquanto o narcisismo se baseia muito mais em uma incitação ao gozo. Isso tem uma relação com a questão econômica por causa do crédito na sociedade, que contribui para o endividamento das pessoas. Isso tem relação com o capitalismo porque o narcisista tem um vazio interior e essa questão narcísica psicológica tem uma relação com o aspecto da mercadoria.
Na base da sociedade mercantil se encontra o vazio, o puro nada. Essa espécie de apagamento de qualquer conteúdo na produção se reproduz de certa forma na vida psíquica dos indivíduos, porque o narcísico não conhece senão a si mesmo e é alguém que nunca se enriqueceu no decurso de verdadeiras relações com os outros. O narcísico é uma pessoa essencialmente pobre interiormente e em um determinado momento sente esse vazio e o descarga na forma de violência sobre os outros. Uma das formas mais extremas e destrutivas que pode tomar esse caráter narcísico são as matanças e os assassinatos em massa que se multiplicam cada vez mais, sobretudo nos EUA: pessoas que entram em determinado lugar, em uma igreja, em uma escola, em locais de trabalho, no cinema, e matam todas as pessoas que encontram pela frente e, normalmente, até se suicidam depois. Sob certos ângulos, é possível chamar essas matanças de matanças sem nenhuma ideologia explícita, sobretudo nos casos de colegas de escola que matam seus próprios colegas. Mas há outros exemplos de massacres, como ocorreram também nos EUA, contra negros em nome dos supremacistas brancos. Ocorreu um caso recentemente e o autor deixou um documento, cerca de 50 páginas, em que explica suas teorias racistas e antissemitas. Então, podemos distinguir um lado mais ideológico e outro não ideológico nesses assassinatos em massa. Mas podemos encontrar uma raiz comum em ambos: uma espécie de ressentimento colossal. Trata-se geralmente de indivíduos isolados que só conheceram o mundo através das telas, são pessoas solitárias, que são gravemente atingidas pelo narcisismo e querem simplesmente expressar o seu rejeito pela sociedade na forma de violência. São pessoas que têm um ressentimento terrível em relação à sociedade. Em geral há pessoas que têm boas razões para se sentirem maltratadas.
O ressentimento tem relação com a tendência autodestrutiva do capitalismo, uma espécie de ódio de si mesmo. Há também, segundo os psicólogos, um sentimento de vazio que tem relação com esse outro aspecto abstrato que é a forma valor e o fetichismo da mercadoria, a ausência, portanto, de um verdadeiro conteúdo.
Para terminar, quero dizer que esse lado destrutivo do capitalismo, sobretudo nessa última fase, está no sentido de eliminar todo e qualquer limite no plano social e psicológico. Portanto, o capitalismo quer levar as pessoas a fazer tudo que quiserem fazer, enquanto as sociedades tradicionais em geral se baseavam muito mais em dizer para os indivíduos o que eles não deveriam fazer, baseando na ideia de limites. Hoje, ao contrário, a publicidade e a sociedade de consumo levam as pessoas à ideia de que o indivíduo não deve conhecer limites e deve fazer tudo o que deseja fazer. O capitalismo, mesmo do ponto de vista sociocultural, eliminou o que se poderia chamar de barreiras que fazem com que as pessoas evitem se jogar no vazio.