18 Fevereiro 2022
Encontramo-nos com o Franco "Bifo" Berardi (Bolonha, 1949) na cafeteria do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCB). Está na capital catalã para participar do ciclo La máscara nunca miente que, por meio de material documental, audiovisual e a participação de vozes como a do filósofo italiano, debate sobre fenômenos que vão da identidade a protestos sociais ou ao poder. Refletirá com jovens sobre os efeitos da pandemia e, em especial, aqueles que podem ser provocados por tudo o que esta geração viveu durante os últimos tempos.
Berardi é um pensador, um ativista de esquerda e, sobretudo, um agitador de consciências. Incomoda com suas perguntas e com suas respostas. Em seu último livro, El tercer inconsciente (Caja Negra) desnuda a sociedade capitalista e um mundo que já antes da pandemia dava sinais de se aproximar do colapso.
Para Berardi, o caos geopolítico pode ser a única saída, a alternativa à extinção da civilização do modo como a conhecemos. Nós nos acostumamos a considerar normal um mundo no qual se confunde acumular bens com desfrutar deles. Mas não é e ele nos lembra disso em seus livros e também com veemência em conversas como esta.
A entrevista é de Neus Tomàs, publicada por El Diario, 16-02-2022. A tradução é do Cepat.
Em seu último livro, explica como durante a pandemia vimos anarquistas respeitando as leis e fascistas reivindicando liberdade. É porque o conceito de liberdade se perverteu?
É por muitas razões. A primeira é porque o vírus desencadeou um efeito de indeterminismo definitivo e que faz com que todas as regras da ciência, da política e da moral modernas se mostrem impotentes. A segunda é porque o conceito de liberdade é uma mentira desde o princípio. As escolhas que podemos fazer são sempre parciais, nunca absolutas.
O conceito moderno, maquiavélico, de liberdade é o de uma infinita potência da vontade humana que nunca existiu. Os automatismos técnicos, financeiros, psíquicos e ambientais estão determinando tudo. Portanto, proclamar a liberdade é só uma mentira útil para os que buscam servir apenas aos seus interesses.
Você comentou, em certa ocasião, que a liberdade é uma palavra suja quando a usamos no contexto do capitalismo ou do colonialismo. Capitalismo e liberdade são incompatíveis?
Como a liberdade não significa nada em nível prático, o capitalismo pode conviver com a liberdade porque a liberdade não é nada. A liberdade foi utilizada em nível político para impor as formas de vida e opressão que são próprias da expansão capitalista.
A política moderna é a liberdade de oprimir a mulher, os povos colonizados, os trabalhadores... Em nome do quê? Em nome de minha liberdade.
Uma das coisas que se verificou durante esses meses é o que você define como uma relação assimétrica entre a economia e a vida.
Quando falamos de economia, falamos de economia capitalista, apesar de a etimologia da palavra abrir a possibilidade de outros horizontes. Mas o que conhecemos é uma economia de crescimento, acumulação e lucro.
Leio Paul Krugman com muito respeito e ele continua dizendo que a economia vai bem, que os salários estão melhorando. Então, por que quatro milhões e meio de trabalhadores americanos decidiram parar de trabalhar?
Os economistas têm um problema: só podem pensar em termos econômicos. Não veem a vida real e por isso Krugman não consegue compreender que o problema dos trabalhadores americanos é a miséria existencial em relação à economia contemporânea. Crescimento significa hoje um crime sistemático contra a natureza, o corpo humano, a igualdade e a felicidade. Contra tudo.
Movimentos como ‘Fridays for Future’ e nomes como o de Greta Thunberg trazem alguma esperança para você?
Fridays for Future é um movimento inteligente porque compreendeu que existe uma contradição fundamental entre crescimento econômico e possibilidade de uma vida feliz. Isso me dá esperança por encontrar pessoas inteligentes.
É melhor morrer com pessoas assim do que com porcos e fascistas. Mas não acredito que o movimento de Greta Thunberg possa salvar o planeta, nem nossa vida.
Uma das afirmações mais contundentes é a de que você não vê uma terceira via entre o comunismo e a extinção. Não é uma previsão muito radical?
É uma previsão muito realista. A possibilidade de sobrevivência feliz do gênero humano passa pela capacidade de retornar ao útil e ao frugal. Voltar ao útil significa se perguntar sobre o que eu preciso: alimentos, água, afetos... são bem poucas coisas e são as que me garantem a felicidade.
Desde que começamos a definir a realidade como um valor de troca e não como valor de uso, iniciamos o caminho do capitalismo, da desigualdade e da miséria.
Frugal significa que o prazer não está na acumulação, mas no tempo de desfrute. Chamo de comunismo a igualdade, a utilidade e a frugalidade.
A social-democracia não poderia servir para se aproximar dessa utilidade e frugalidade?
A social-democracia foi muitas coisas na história. Inicialmente, foram uns assassinos que mataram os espartaquistas da revolução berlinense. Depois, tornaram-se instrumentos do imperialismo europeu. Mais tarde, já com Tony Blair, foram a força social que permitiu destroçar o sistema de saúde e educacional públicos.
Mas, ao mesmo tempo, admito que os social-democratas raciocinam não apenas em termos políticos, mas também em termos de bem-estar. É uma contradição que devemos entender e utilizar.
Não podemos negar que a Espanha é hoje o país mais civilizado da Europa. É o único no qual as pessoas sorriem pela rua e isso se dá porque há um social-democrata no poder. Não confio muito em Pedro Sánchez, mas é alguém disposto a abrir oportunidades.
O grande problema da social-democracia é que nunca esteve disposta a se distanciar do supremacismo da raça branca. Não entendo como o governo mais humano da União Europeia está disposto a repetir o erro de Aznar, em 2004, em uma guerra idiota, suicida e assassina.
Hoje, pode acontecer uma nova guerra e Sánchez dá a razão aos americanos. Por quê? Porque o supremacismo branco não está nos programas eleitorais, está no subconsciente. Esse é o pecado original da social-democracia.
Nesse conflito a que se refere, que tem a Ucrânia como cenário, como avalia o papel da União Europeia?
Reconheço que a União Europeia significou um enorme progresso porque questionou a identidade nacional. Deste ponto de vista, sou europeísta. Mas, ao mesmo tempo, vejo a Europa da fronteira da Polônia e Bielorrússia, do canal da Sicília, Ceuta e Melilla, da fronteira da Croácia e Bósnia... onde crianças são mortas com cães ou deixadas para morrer de frio, afogando-se no mar, e a conclusão é que a União Europeia é uma mistura de progressismo social-democrata e de preconceito inconsciente nazista.
Nazista?
Sim, nazista. Porque sempre pensamos que o nazismo é o mal absoluto. Mas o mal absoluto não existe, é uma forma de dizer que você é diferente de Hitler. E uma pessoa pode dizer: “sou bom porque sou diferente de Hitler”, mas na realidade no fundo não são diferentes, se essa pessoa pensa que os povos que não fazem parte da comunidade economicamente dominadora não merecem viver ou que, em todo caso, só merecem viver se servem aos seus interesses econômicos.
Faço a você uma das perguntas que você também se faz e para a qual não sei se tem resposta, apesar de ter escrito muitas vezes sobre este assunto. É possível uma vida feliz nesse horizonte de extinção que você traça?
Penso que posso confessar que vivi uma vida feliz. Apesar da asma, sigo vivendo-a. Eu continuo a vivê-la porque não espero nada.
A maneira de ser feliz é não esperar nada da vida?
Sim. O segredo de uma boa relação consigo mesmo e com os outros é não esperar que a felicidade possa vir de fora, da acumulação de bens. Trata-se de reduzir ao máximo as necessidades.
Existe um mal-entendido a propósito da riqueza. Pensamos que a riqueza é uma acumulação de bens quando na verdade é o desfrute dos bens. Lacan fala da contínua estimulação do desejo, que não encontra prazer. Esse é o coração da infelicidade contemporânea.
Considera que é preciso evitar a repetição do velho discurso antifascista, baseado no objetivo de restaurar a democracia. Como deveria ser esse discurso para frear o avanço dos novos movimentos de extrema direita?
Eu não tenho muito medo da direita fascista, nem na Itália, nem na Espanha.
Por que não sente medo?
Porque não vejo a diferença entre a direita fascista e a maioria dos cidadãos europeus. Não importa que votem no PSOE ou no PP porque no fundo quando se trata de rejeitar milhões de africanos ou de outros pontos do planeta concordam perfeitamente.
Giorgia Meloni e Santiago Abascal representam a verdade profunda da alma europeia neste momento. Esse é o problema. É por isso que me faz rir que se fale em restaurar a democracia. Biden rejeitou mais migrantes em um ano do que Trump em quatro.
O que me interessa é como é possível mudar as relações opressivas e não podem ser mudadas com a democracia. Detesto Trump, mas quando se trata de analisar o comportamento supremacista, não há diferença entre ele e Biden.
E se não for com a democracia, como essas relações opressivas podem ser mudadas?
O apocalipse nos ajudará a sair da ditadura capitalista.
Defina o que entende por apocalipse.
Apocalipse é o desencadeamento do caos geopolítico. O caos é meu amigo, se me permite sair da asfixia do automatismo financeiro.
Ainda vota?
Na Itália, não voto. Se votasse na Espanha, seria no Podemos porque é uma tentativa. Ainda que seja uma tentativa fracassada, é uma tentativa.
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“O apocalipse nos ajudará a sair da ditadura capitalista”. Entrevista com Franco 'Bifo' Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU