Na entrevista a seguir, José de Souza Martins, José Geraldo de Sousa Junior, José Luís Oreiro, Valério Arcary e Miguel Rossetto analisam as manifestações de 7 de setembro
Ao invés de atos politizados organizados por cidadãos que reivindicam o cumprimento da democracia, o que se pôde observar nas manifestações da última terça-feira, 07 de setembro, foi uma "política despolitizada, divorciada da concepção clássica e civilizada de política, que aqui deixou de ser de cidadãos para ser de atores", disse o sociólogo José de Souza Martins na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Os atos que marcaram o dia da Independência, avalia, foram "uma grande conspiração antipatriótica para difundir a cultura da idolatria de Bolsonaro como substituta da consciência de pátria", formados pela "presença de ativistas de aluguel".
O jurista e ex-reitor da Universidade de Brasília - UnB, José Geraldo de Sousa Junior, compartilha da mesma análise. "No gramado e na avenida, um presidente isolado numa bolha de mobilização artificial, preparada com antecedência e financiada pelo setor mais canibalizador da economia, o agronegócio, sequestrou o dia da Independência", destacou na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Em seus pronunciamentos, observa, Bolsonaro "falou como um presidente que não governa, que conspira; que não se solidariza com o social, mas com os seus interesses, de seus domésticos e associados; que não tem empatia com o povo e com a vida, só se liga nos negócios".
O economista José Luís Oreiro sublinha que a "manifestação de 7 de setembro foi feita, no fundo, com dois objetivos: primeiro, animar a sua plateia e, segundo, para juntá-los em poucos lugares para dar a impressão para o Congresso Nacional e para o Supremo Tribunal Federal de que o Bolsonaro tem muita força". Mas a agenda do presidente até as eleições presidenciais do próximo ano, ressalta, é tentar manter o grupo de apoiadores coeso. "O que as manifestações indicam é o desespero de Bolsonaro, que está tentando, com essas manobras, manter os seus 20% de aprovação para ver se ele consegue chegar no segundo turno [das eleições de 2022] e aí polarizar com Lula".
Para o historiador Valério Arcary, nas manifestações "Bolsonaro deixou claro que não renunciará à luta implacável pelo poder". A tática do presidente no momento, pontua, "consiste em ganhar tempo. Morde a assopra. Ocupa o centro das cidades, mas não autoriza distúrbios. Faz ameaças golpistas, mas lança uma carta apaziguadora. Mas qual é a estratégia? Garantir um reposicionamento melhor para a disputa eleitoral, e garantir a reeleição? Sim, mas não é só isso. O governo da extrema direita liderado por um neofascista não é um governo 'normal' com uma agenda de contrarreformas neoliberais. Bolsonaro tem como estratégia uma nova localização do capitalismo brasileiro no mundo em uma aliança estratégica com uma fração do imperialismo norte-americano contra a China".
Miguel Rossetto propõe que a esquerda “Sem perder sua identidade programática, sem parar de denunciar o desastre neoliberal para o Brasil, sem deixar de anunciar um novo projeto popular para o país, deve buscar uma ampla unidade política com todos os setores democráticos e colocar no centro da disputa a garantia da soberania popular”.
José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do Youtube)
José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professor visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulus Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015) e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016).
José Geraldo de Sousa Jr. (Foto: Agência Brasil)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais. Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D'Plácido, 2016).
José Oreiro (Foto: FGV)
José Luis da Costa Oreiro é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, possui mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ e doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia pela UFRJ. Atualmente é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília - UnB. Entre as inúmeras publicações, destacamos o livro Macroeconomia do Desenvolvimento: uma perspectiva keynesiana (publicado pela LTC em 2016) e o livro Macrodinâmica Pós-Keynesiana: crescimento e distribuição de renda (Alta Books, 2018).
Valério Arcary (Foto: Reprodução)
Valério Arcary é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo - USP. É professor aposentado do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - IFSP.
Miguel Rossetto (Imagem: Forum Internacional do Software Livre / Creative Commons
Miguel Rosseto nasceu em São Leopoldo (RS) no dia 4 de maio de 1960. Fez o curso técnico de mecânico na Fundação E. T. Liberato, em Novo Hamburgo, entre 1974 e 1978, tendo trabalhado como metalúrgico em fábricas da Região Metropolitana de Porto Alegre. Ainda em 1978, ingressou na Universidade do Vale dos Sinos - Unisinos, onde frequentou o curso de ciências sociais até 1982, sem chegar a concluí-lo. Foi deputado federal (1995-1999); ministro do Desenvolvimento Agrário (2003-2006 e 2014); ministro chefe da Secretaria da Presidência da República (2015) e ministro do Trabalho e Previdência Social (2015-2016).
IHU - Como interpreta as manifestações de 7 de setembro? O que elas indicam?
José de Souza Martins – Há muitas questões ocultas e decisivas nas manifestações deste 7 de setembro, tanto as dos bolsonaristas em Brasília, no Rio [de Janeiro] e em São Paulo, quanto as das oposições ao governo Bolsonaro, as anomalias que o caracterizam e os problemas sociais, econômicos e políticos que cria.
Sem levá-las em conta, torna-se sofrível qualquer análise do ocorrido no dia 7. Estamos em meio a um processo político marcado por impasses e incertezas, o que não aconselha comparar os tamanhos das multidões envolvidas e em confronto e chegar a alguma conclusão sobre a tendência da população. Sobretudo a tendência que se configurará nas eleições de 3 de outubro de 2022 e de que o 7 de setembro de 2021 pode ter sido um preâmbulo.
Não há dúvida, de um ponto de vista próprio da sociedade do espetáculo, o que a nossa politicamente se tornou, que essas três emblemáticas manifestações bolsonaristas foram triunfais e expressam uma nova, diferente e problemática característica da política brasileira. Uma política despolitizada, divorciada da concepção clássica e civilizada de política, que aqui deixou de ser de cidadãos para ser de atores – figurantes e coadjuvantes, como aqueles pastores evangélicos, ostensivamente ao lado de Bolsonaro, que vestiam a camisa amarela dos manifestantes oficiais. O propriamente político e protagonista desmentido pela expressão sisuda de quem estava no púlpito de uma igreja fundamentalista, não ato partidário de massa.
Essas manifestações foram significativas expressões da manipulação teatral de impressões sobre a realidade dramática. Uma técnica de fundo sociológico para reduzir a consciência política da população a um extemporâneo carnaval de rua. E também a uma consciência superficial do dia sem historicidade, momentâneo e passageiro. Uma grande conspiração antipatriótica para difundir a cultura da idolatria de Bolsonaro como substituta da consciência de pátria. Um dia só fragmentariamente político, desconectado do processo histórico e da práxis propriamente política.
O dia da Pátria não foi um dia cronológico, pois reduzido a algumas horas, subitamente devolvido ao cotidiano banal e comum de todos os dias. Desaparecido do palco o ator único da dimensão simbólica dessa forma peculiar de golpe de Estado, os figurantes ficaram sem roteiro e reduziram-se a uma multidão de deslumbrados turistas de ocasião. Isso ficou evidente no comparativamente silêncio em relação ao que é propriamente político, no vazio súbito da praça e da rua cheias, imediatamente após os discursos de Bolsonaro, a multidão desconectada, como se o interruptor tivesse sido desligado.
Diferente do preparo meramente reativo e sem técnica das multidões das oposições, proporcionalmente inferiores nas três cidades, a convocação das multidões bolsonaristas foi tecnicamente preparada ao longo de dois anos. Os indícios desse preparo foram muito claros, enquanto as oposições estiveram, nos atos do dia 7, ainda marcadas pela velha e desastrosa lógica da improvisação e da disputa pela hegemonia entre os grupos participantes. A lógica do próprio enfraquecimento, de falta de uma unidade referencial de projeto histórico, social e político de superação de contradições e diferenças. O partidarismo sem política.
Desde os episódios de rua que marcaram os movimentos pelo impedimento de Dilma Rousseff, têm neles havido presença de ativistas de aluguel. Assunto que não tem sido devidamente discutido no Brasil. Um fenômeno que se difundira pouco antes com a nova direita europeia, especialmente na Alemanha e na França. Eles surgiram também aqui, no início dos anos 2010, com a função de fermento de massa, a visibilidade de uns poucos alugados ativos para arrastar a massa dos espontâneos, alienados e indiferentes. A massa da ação política pós-moderna do nosso capitalismo subdesenvolvido. As faixas e cartazes tecnicamente preparados e neles as frases de efeito completamente diferentes das da intensidade vivencial dos que lutam porque têm carecimentos próprios da situação de marginalização e de exclusão social, conhecidos e característicos do protesto popular espontâneo. Aliás, aqui, tanto na esquerda quanto na direita, diferente do que acontece nos partidos civilizados, a política é instrumento dos partidos em vez de serem os partidos instrumentos da política.
A massa de manifestantes bolsonaristas, especialmente em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, as mais numerosas e impressionantes, foram predominantemente massas “importadas” de outras cidades e de outros estados e não massas “locais”. Nos dias anteriores ao 7 de setembro, os jornais noticiaram os deslocamentos patrocinados e induzidos de grandes grupos. Em São Paulo, lotaram os hotéis próximos à Avenida Paulista. Dois deles receberam seus hóspedes que vieram para participar das manifestações da avenida com brigadeiros verde-amarelos. Símbolos da pátria podiam ser comidos. E foram.
Multidões “locais” teriam sido menores e menos impressionantes. Os bolsonaristas dispersos por estados e municípios foram reunidos em grandes multidões, nessas e em outras localidades, para dar a falsa impressão numérica que deram. Multidões para fotografar e filmar. O próprio Bolsonaro sobrevoou em helicóptero militar a multidão de Brasília.
Só trazendo gente de longe, em numerosas caravanas, foi possível juntar multidões compactas e impressionantes. Multidões para ver, de figurantes e não de militantes, multidões pós-modernas, multidões de aluguel, como no caso do ônibus vindo de Pompeia (transporte, dinheiro para alimentação, e camiseta alusiva ao evento). Notas de cem reais distribuídas dentro do ônibus a cada um dos participantes, cuja linguagem eufórica e festiva dizia quem socialmente eram. Um dos participantes mencionou o nome de uma empresa local envolvida no patrocínio da excursão. O que a empresa desmentiu pelas redes sociais. Porém, os indícios são de que grupos locais de poder patrocinaram o ajuntamento nas capitais para formar o cenário compacto de uma popularidade dispersa e insuficiente para assegurar a Bolsonaro a reeleição pretendida em 2022. Uma adesão meramente teatral.
É claro que comparadas com as multidões das oposições, estas últimas foram pequenas, porque multidões de militantes de causas sociais, verdadeiras. Não estavam passeando, estavam lutando. Essa é uma diferença decisiva. É claro que a multidão fictícia e de aluguel provavelmente votará em Bolsonaro, mas será ele o voto disperso dos municípios. O tamanho das multidões bolsonaristas do 7 de setembro não é de tamanho eleitoral, como mostraram pesquisas de opinião realizadas em todo o Brasil na respectiva semana. Mas poderá resultar delas um efeito demonstração, o perigoso efeito do já venceu.
A multidão fictícia gerou o lado ficcional de Bolsonaro. Sua multidão imaginária. Ele reagiu como se o Brasil inteiro tivesse acorrido às manifestações para concordar com ele, para segui-lo. As demonstrações evidenciaram que o Brasil bolsonarista é um Brasil de figurante, como indiquei. Nenhum dos estereótipos mobilizados em suas ações desconstrutivas, subversivas, com o propósito de aliciar polícias militares, caminhoneiros e outras figuras politicamente esdrúxulas e impróprias, realizaram as ações demolidoras das bravatas presidenciais.
José Geraldo de Sousa Junior - Afinal, não houve desfile militar no 7 de setembro. A Defesa recomendara aos comandos da Aeronáutica, Exército e Marinha suspender a tradicional cerimônia da Esplanada “em razão da pandemia de Covid-19” (que seja). Outras atividades, menos expressivas que a parada da Independência, fizeram parte da ordem do dia das tropas. Em Brasília, houve um sobrevoo de uma esquadrilha de tucanos da FAB. No gramado e na avenida, um presidente isolado numa bolha de mobilização artificial, preparada com antecedência e financiada pelo setor mais canibalizador da economia, o agronegócio, sequestrou o dia da Independência. Falou para um auditório que junta um setor da classe média ignorante, solipsista, de baixa consciência social e comunitária e uma ralé (como diz Jessé Souza; Marx chamaria de lumpen, aí incluídos os segmentos milicianos recrutados num submundo de funções subalternas e do crime organizado). Mas falou como um presidente que não governa, que conspira; que não se solidariza com o social, mas com os seus interesses, de seus domésticos e associados; que não tem empatia com o povo e com a vida, só se liga nos negócios.
Como disse Marx no 18 Brumário de Luís Bonaparte, num contexto parecido, "escapa-se do despotismo de uma classe para cair no despotismo de um indivíduo, e precisamente sob a autoridade de um indivíduo sem autoridade". E ele continua, que não deixa a própria sociedade, organizada, que age na construção de padrões institucionalizados de gestão da política e da justiça, para assim, conquistar novos conteúdos, mas que ao contrário, privatiza essa institucionalidade fazendo-a "voltar a sua forma mais antiga de dominação", ‘capataziados’ desavergonhadamente por pica-paus por ele armados e pelo pastoreio hipocritamente moralista de empreendedores das crenças e da boa-fé dos que buscam algum refúgio na espiritualidade em tempos sombrios.
José Luís Oreiro – Foi a prova de que o presidente da República está desesperado. Quer dizer, a sua popularidade está cada vez mais baixa: mais de 60% dos brasileiros rejeitam o governo Bolsonaro; ele tem uma aprovação de pouco mais de 20%. Ele sabe que se essa aprovação cair abaixo de 20%, ele fica com uma situação muito frágil no Congresso Nacional, a ponto de ser disparado um pedido de impeachment. Ele sabe também que as perspectivas da economia brasileira daqui para a frente são muito ruins, seja por conta da aceleração da inflação, seja por conta da crise energética, seja por conta do problema dos precatórios, que vai tirar todo o espaço fiscal que o governo pensava que teria no ano que vem para fazer o pacote de bondades e tentar cacifar eleitoralmente o presidente da República.
Então, a agenda do Bolsonaro é tentar manter coesos esses 20%. A manifestação de 7 de setembro foi feita, no fundo, com dois objetivos: primeiro, animar a sua plateia e, segundo, para juntá-los em poucos lugares para dar a impressão para o Congresso Nacional e para o Supremo Tribunal Federal de que o Bolsonaro tem muita força. Mas na verdade, essas manifestações foram meticulosamente organizadas, financiadas por empresários bolsonaristas. O que as manifestações indicam é o desespero de Bolsonaro, que está tentando, com essas manobras, manter os seus 20% de aprovação para ver se ele consegue chegar no segundo turno [das eleições de 2022] e aí polarizar com Lula. É isso que as manifestações indicam.
Valério Arcary - O grito da Paulista no dia do grito do Ipiranga foi vitória ou morte. Ao anunciar sua estratégia, Bolsonaro deixou claro que não renunciará à luta implacável pelo poder, custe o que custar. Acumulou forças. Os dois objetivos táticos imediatos da mobilização contrarrevolucionária eram uma advertência à oposição liberal de que incendiará o país em caso de perigo de impeachment, e a polarização contra os ministros Alexandre de Moraes e Barroso do STF que cercam sua corrente e família com investigações e prisões. Mas é muito mais grave. Deixa no ar para a fração da classe dominante que se deslocou para a oposição, nos últimos quarenta dias, a ameaça de que não aceitará o resultado de eleições, se perder. Não respeitará as regras do regime democrático-liberal, não haverá transmissão pacífica de faixa em Brasília em janeiro de 2023. O chefe dos neofascistas procura se relocalizar para as eleições de 2022, mas promete que está disposto a tudo e, portanto, agita a sua base social, também, para a possibilidade de uma ruptura institucional, em algum momento. Ou seja, tudo ou nada, ou ameaça de guerra civil.
A contraofensiva se deu no marco de um enfraquecimento ininterrupto. Mas demonstrou que não está derrotado. Considerar somente os graus de aprovação e rejeição revelados pelas pesquisas de opinião é insuficiente para a aferição da relação de forças social e política. Diante de centenas de milhares de pessoas, altamente motivadas, Bolsonaro se fortaleceu. Não foi um fiasco. Bolsonaro ainda não tem uma legenda eleitoral, mas provou que controla um “partido de combate”, ou seja, a organização de um movimento contrarrevolucionário que tem ideologia neofascista, estratégia política, potência social, capacidade financeira de autossustentação, iniciativa nas ruas e nas redes sociais, relações internacionais, forte influência militar e policial e uma liderança com autoridade messiânica.
Miguel Rossetto – O fato político central, gravíssimo, que ocorreu no sete de setembro foi a declaração de Bolsonaro de que não vai cumprir decisão judicial, não vai respeitar o Supremo Tribunal Federal - STF, não reconhecesse as regras eleitorais definidas pelos Congresso Nacional – em especial a manutenção do voto secreto, declara que o Tribunal Superior Eleitoral - TSE é uma fraude, e que só Deus o tira da presidência. Agora não mais por um tuite ou por uma rede social, mas em uma orgia autoritária pública. As redes bolsonaristas prepararam esta manifestação por semanas, atemorizando a sociedade com ameaças de violência e de um golpe contra a democracia e as liberdades. A sociedade atemorizada é reveladora de um Estado de exceção já presente. A participação ativa de oficiais das polícias militares e das forças armadas revela um limite ultrapassado.
IHU - Como avalia os pronunciamentos do presidente em relação aos demais poderes?
José de Souza Martins – Procurei observar as reações do dia seguinte à fala do presidente nos comícios de Brasília e de São Paulo. No caso de um funcionário do poder, como ele, além do mais sistemático crítico da Constituição, das instituições, das leis, das regras de civilidade e da própria liturgia da função que ocupa, é na diversidade dessas reações que estão os verdadeiros conteúdos do que ele disse. Nunca o governante, mesmo o ditador, é dono do conteúdo do que diz. É no caráter relacional de fala e efeito, de ouvido e interpretado, que está o quanto o que é dito expressa o que é propriamente anômico no comportamento de quem nos governa.
A repercussão interpretativa, sobretudo de cúmplices e coadjuvantes, em casos assim, é que desconstrói e revela o quanto o governante age de maneira “normal” ou de maneira “patológica”. O principal protagonista do Estado brasileiro, nessas reações, não se encaixou, nos pronunciamentos e ações do dia 7 de setembro, nas expectativas rituais próprias da função que ocupa. Nele, o Estado brasileiro está doente e em decomposição.
Nesse sentido, o 7 de setembro de Jair Messias Bolsonaro foi um dia de rupturas no seu quadro de referência e no seu quadro de apoios. Mais do que as manifestações vigorosas dos opositores de seu governo, em diferentes cidades brasileiras, o principal opositor deste governo, no dia 7, foi o governante. Ao se devotar desabridamente ao desmonte das instituições que, constitucionalmente, ele deve personificar, Bolsonaro fraturou a própria possibilidade de permanecer no governo. Como disse, em seu vigoroso, patriótico, legalista e necessário pronunciamento sobre os acontecimentos do dia, o presidente do Supremo Tribunal Federal - STF, ministro Luiz Fux, o presidente da República cometeu crime de responsabilidade e cabe à Câmara dos Deputados examinar o caso e decidir se Bolsonaro deve permanecer no poder ou não.
O Bolsonaro absoluto, no que disse no dia, na perspectiva das instituições da República, tornou-se relativo e muito menor do que julga ser. Confirmou sua própria desqualificação para governar, que já havia ficado evidente na melancólica reunião de governo do dia 22 de abril. Ele não se encaixa no perfil constitucional da Presidência da República. Confirmou o que vinha ficando evidente desde o dia 1º de janeiro de 2019: todos os dias desse penoso período político da história brasileira ele reafirmou sua renúncia tácita ao mandato para o qual fora eleito por maioria de votos. No dia 7 de setembro, ele próprio confirmou que do eleito resta apenas um desorientado farrapo político que está levando o país a impasses de solução difícil.
José Geraldo de Sousa Junior - Com todo cuidado para não fazer extrapolações impróprias – por exemplo, enaltecer indevidamente conceitos políticos como fascismo, autoritarismo –, vejo nos pronunciamentos, pelo que descrevi acima, um tanto do que Umberto Eco denominava fascismo eterno, reconhecendo nos discursos, principalmente no dia 7, em eventos descolados da institucionalidade, embora com o uso privado (partidário, eleitoral) de bens e recursos públicos, uma desconsideração pouco republicana da relação que deve existir entre os poderes e com a própria Constituição do país.
Umberto Eco põe em relevo algumas características desse fascismo identificadas sem muito esforço nesses pronunciamentos:
• Culto da tradição (“Deus, pátria, família e propriedade”);
• Repulsa ao modernismo (na sua pior forma, o negacionismo);
• Culto da ação pela ação (o cotidiano transformado numa performance permanente);
• Não aceitação do pensamento crítico (investida permanente às universidades e à liberdade de organização e de pensamento);
• O racismo na essência (facilmente derivado para a criminalização do outro erigido em ameaça);
• O apelo aos precarizados e frustrados (como em 1851 na França, tão bem descritos por Marx e por Victor Hugo, em História de um Crime, sobre os mesmos eventos);
• O nacionalismo como identidade social (mantra do anticomunismo);
• A vida como guerra permanente (um inimigo a cada dia, matar ou morrer, como foi gritado nos atos do dia 7 e nas arruaças que ainda prosseguem, embora erráticas);
• O heroísmo como norma (o refrão ao diapasão da discursividade, na campanha atual como na de 2018, prossegue sendo "mito, mito");
• O machismo como espécie de virtude (sem lugar para a liberdade de opção sexual e de gênero);
• O líder se apresenta como intérprete único da vontade comum do povo (refrão de todo o discurso, sobretudo na avenida Paulista).
Apesar de tudo, preserva-se o cuidado, que ultimamente tem orientado a postura de gente mais experimentada no Legislativo e sobretudo no Judiciário, em face de mobilizações explícitas por rupturas institucionais, querendo arrombar as portas da Lei (a Constituição). Leia-se o artigo do ministro [Enrique Ricardo] Lewandowski, na Folha de São Paulo, evidenciando a tipicidade de quem atenta contra as instituições. Mas há ainda a rua, aí sim, o lugar originário para a disputa de projetos, mesmo ao risco dos que já sem o tudo, chafurdam no nada, em seu ensaio de golpeamento à Constituição que pode receber dura resposta incriminadora das Instituições (Justiça e Parlamento). Afinal, o 7 de setembro também foi ocasião de manifestação de protesto contra esse estado de coisas, país afora, capitaneados pelo Grito dos Excluídos e pelas manifestações indígenas por seus direitos originários.
José Luís Oreiro – As manifestações do presidente não me surpreendem. Quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro, disse que tinha que ocorrer uma guerra civil no Brasil para matar pelo menos 30 mil pessoas. Durante o impeachment da presidente Dilma, ele fez, no plenário do Congresso Nacional, um elogio a um torturador. Quer dizer, nada que sai da boca dessa pessoa que ocupa a presidência da República de forma temporária me surpreende. Os pronunciamentos são antidemocráticos, configuram crimes de responsabilidade, principalmente o discurso feito na Av. Paulista, em que ele cita nominalmente o ministro Alexandre de Moraes, dizendo que não iria mais obedecer a ordens de um ministro do STF. Ou seja, ele simplesmente rasgou a Constituição. Mas ele já fez vários crimes de responsabilidade; esse é só mais um. A questão é saber quando o Congresso Nacional vai assumir o papel que lhe compete e abrir o processo de impeachment contra este ser que ocupa a presidência da República.
Valério Arcary - A tática de Bolsonaro, neste momento, consiste em ganhar tempo. Morde a assopra. Ocupa o centro das cidades, mas não autoriza distúrbios. Faz ameaças golpistas, mas lança uma carta apaziguadora. Mas qual é a estratégia? Garantir um reposicionamento melhor para a disputa eleitoral, e garantir a reeleição? Sim, mas não é só isso. O governo da extrema direita liderado por um neofascista não é um governo “normal” com uma agenda de contrarreformas neoliberais. Bolsonaro tem como estratégia uma nova localização do capitalismo brasileiro no mundo em uma aliança estratégica com uma fração do imperialismo norte-americano contra a China. O plano de recolonização repousa na expectativa de que as inversões estrangeiras são a chave para retomada do crescimento econômico. Mas para isso é necessário impor uma derrota histórica à classe trabalhadora e ao povo pobre e oprimido. Uma mudança qualitativa na relação social de forças só é possível com a subversão do regime e pode garantir a concentração máxima de poderes. O projeto é golpista, bonapartista, contrarrevolucionário. As formas, os tempos, os desenhos das iniciativas insurrecionais são táticas. Mas incontornáveis.
Miguel Rossetto – Bolsonaro provocou uma crise institucional, ameaçou a democracia e se declarou fora da Constituição. Ou Bolsonaro é derrotado já, impedido de continuar ocupando a presidência da República, ou a escalada autoritária continuará; que ninguém duvide. Não foi um rompante de arrogância, mas a continuidade de um processo político que se apresentou com a homenagem ao torturador Brilhante Ustra em fevereiro de 2016, e iniciou quando do golpe contra Dilma Rousseff.
IHU - Que desdobramentos políticos e institucionais vislumbra daqui para frente e como avalia os pronunciamentos institucionais feitos após as manifestações?
José de Souza Martins – O destroçamento do mandato presidencial tem implicações complicadas e perigosas. Alcança de vários modos todos os que se envolveram com este governo. A manifestação de afastamento formal, no dia seguinte, dos vários partidos políticos que o apoiavam ou que não se posicionavam ativamente contra o governo, reformula o quadro de referência do governo no Congresso Nacional, porque dos pronunciamentos de Bolsonaro, sai enfraquecido. As Forças Armadas foram atingidas no imaginário dos setores que as consideravam imunes ao facciosismo e ao engano. Elas se deixaram envolver excessivamente pelas opções equivocadas do governante.
No meu modo de ver, não ficará de pé nem mesmo a ideologia geopolítica do vice-presidente Hamilton Mourão que a expressou em conferências em duas lojas maçônicas, em Brasília e no Rio [de Janeiro], em 2017 e 2018. É uma ideologia arcaica, politicamente anacrônica, estéril quanto a ser uma alternativa para um país do porte do Brasil e da sua riqueza de possibilidades.
É aí que a coisa se complica. Se Bolsonaro for impedido, possibilidade que agora é politicamente real, Mourão assumirá o poder, munido do mesmo equipamento ideológico que, disfarçadamente, constitui a referência militar do governo Bolsonaro. Os militares brasileiros, especialmente os do Exército, estão desatualizados quanto ao capitalismo subdesenvolvido que supõem ser sinônimo de democracia e de inserção geopolítica. Seu mapa do mundo é obsoleto, sua concepção da política é ultrapassada e seu conhecimento do Brasil é pobre porque excessivamente militarizada.
No dia 7 de setembro, os discursos de Bolsonaro desconstruíram as bases dessas fantasias num momento em que mesmo as oposições, apegadas ao ultrapassado, não têm projeto alternativo de superação da monstruosidade política em que as eleições de 2018 nos transformaram.
O capitalismo bolsonarista é o do desmonte do Estado e da revogação da legislação dos direitos sociais que, positivamente, tem protegido o Brasil da transformação deste capitalismo num capitalismo rentista, especulativo e predatório, impatriótico. É ele inspirado nas simplificações interpretativas da realidade social como subproduto virtuoso da economia dependente, a de Milton Friedman.
O capitalismo imaginário da geopolítica da dependência, pretendido pelo general Hamilton Mourão em várias manifestações durante a campanha eleitoral, fica sob ângulo crítico a partir dos desastres sociais que se multiplicaram, sobretudo em consequência do modo incompetente e suspeito como o governo tratou da questão da pandemia.
Ao convocar para os ministérios pessoas do tipo que ganhou visibilidade pública na reunião de 22 de abril, formou um governo majoritariamente de pessoas com ele parecidas, nas insuficiências de compreensão da realidade, as dos diferentes âmbitos da atuação do Estado, como na educação, na cultura, no meio ambiente, na questão social e na questão militar. Bolsonaro e seus acompanhantes e seguidores deixarão apenas um legado desastroso para as novas gerações, o legado de uma pátria saqueada de suas possibilidades históricas.
José Geraldo de Sousa Junior - No próprio dia 7 foi perceptível, ressalvados alguns setores que se confundem com essa postura obscurantista e desqualificada, um evidente mal-estar, um manifesto desconforto. Até mesmo na condução editorial de alguns veículos da grande imprensa, esquecidos de, ou querendo nos fazer esquecer, sua enorme contribuição para forjar esse estado de coisas. Conforme afirmei em artigo publicado neste 9 de setembro no Jornal Brasil Popular ("Alimentar Crocodilos Esperando Ser Devorado por Último"), começa a perceber-se já em ambientes, antes impropriamente corteses, que alguém leu o discurso de Churchill, que em 1940, no crescimento da ameaça nazifascista, advertiu que o apaziguador e o colaboracionista (passador de pano) são aqueles que alimentam crocodilos esperando ser devorados por último. Chamberlain não tem assento no Conselho da República.
A combinação entre neoliberalismo e pandemia intensificou no Brasil, mais que em qualquer outro país em contexto semelhante, a situação que Boaventura de Sousa Santos (O Futuro Começa Agora. Da Pandemia à Utopia. São Paulo: Boitempo, 2021) caracteriza pelas desigualdades e as discriminações sociais que marcam as sociedades contemporâneas. Segundo ele, acarretando um sofrimento humano muito desigual, provocado pelo modelo econômico-social ao Estado, à ciência e à resistência e criatividade dos grupos sociais mais excluídos para se protegerem e minorarem os riscos.
Num outro texto no qual, por isso, propugna por uma nova declaração universal dos direitos humanos (Opinião 15 de janeiro de 2020), ele sugere que procuremos nos orientar diante da incerteza que oscila entre o medo e a esperança para encontrar o necessário equilíbrio entre ambos, pois “medo sem esperança leva à desistência e a esperança sem medo pode levar a uma autoconfiança destrutiva”.
Tentei refletir sobre esse equilíbrio em discussão recente na Universidade Federal de Goiás – Efetividade dos Direitos Humanos e Construção da Cidadania em Tempos Sombrios – para exatamente convocar à atitude que não se acumplicie. Porque, lembrando Darcy Ribeiro, também seremos culpados se nos entregarmos à rendição conformista, a esse estado de coisas, verdadeiramente inconstitucional.
Com efeito, devemos ousar refletir sobre os problemas que assolam a população, construir alternativas políticas e econômicas para a superação do cenário atual, questionando, com Darcy, “que culpa temos, enquanto classe dominante, no sacrifício e no sofrimento do povo brasileiro. Somos inocentes? Quem, letrado, não tem culpa neste país dos analfabetos? Quem, rico, está isento de responsabilidades neste país da miséria? Quem, saciado e farto, é inocente neste país da fome?”.
Nem nós, na sociedade, nas nossas entidades e organizações, nem as autoridades em seus espaços institucionais, queremos ser cúmplices desse desgoverno e da prática de um já extenso rol de crimes de responsabilidade (leia-se o discurso do presidente do STF). E não é necessário esperar 2022. Pois, atenção, o jacaré está crescendo debaixo da cama.
José Luís Oreiro – Daqui até o ano que vem, vamos ficar com esse jogo. Estamos aguardando as manifestações do dia 12, contra Bolsonaro; vamos ver qual vai ser o tamanho delas. Vislumbro que esse clima de instabilidade política vai ser mantido até as eleições, mas elas vão acontecer.
O desdobramento político é que cada vez mais a candidatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva torna-se amplamente favorita e com vitória em 2022, até mesmo no primeiro turno. Se há dois meses eu tinha dúvidas sobre a possibilidade de Bolsonaro chegar no segundo turno, hoje eu acho que ele pode sequer chegar, dado o desespero em que se encontra. Essa gritaria do Bolsonaro e seus aliados não é sinal de força; é sinal de fraqueza. Quem tem poder de verdade não grita. Quando você grita é ou porque perdeu a razão ou porque perdeu o poder ou as duas coisas.
Os pronunciamentos institucionais têm ficado muito a desejar. Assisti ao do Arthur Lira, que foi ruim. O do [Luiz] Fux foi melhor, mas o grande problema do Brasil é que nós nunca atacamos a raiz dos problemas. Vou dar como exemplo o que aconteceu na segunda-feira, no jogo entre Brasil e Argentina, em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa entrou em campo para prender os quatro argentinos que haviam mentido para a Polícia Federal e que deveriam cumprir quarentena. Eu vi muita gente criticando a Anvisa, questionando por que ela não esperou terminar o jogo. A Anvisa fez o correto; a lei tem que ser cumprida. Se Bolsonaro tivesse perdido o mandato dele quando elogiou [Carlos Brilhante] Ustra durante a sessão de impeachment da presidente Dilma na Câmara dos Deputados, nós não estaríamos com esse problema hoje.
Este defeito brasileiro de não ser radical, de não ter soluções definitivas, é o nosso problema. Vamos “empurrando as coisas com a barriga”, achando que elas vão se resolver com o tempo. Não, elas não vão; elas podem piorar com o tempo. Bolsonaro é a maior prova disso. Toda hora que ele avança o sinal, vem o pessoal e diz “deixa disso”, “passa o pano”, “vamos fazer as pazes”. Ele já deveria ter sido tirado do cargo há muito tempo. Tudo isso só prejudica o país. Temos problemas seríssimos de desemprego, inflação, gente passando fome e morrendo por causa da pandemia, e estamos discutindo voto impresso, impeachment de ministro do STF, porque simplesmente mandou prender pessoas que estavam incitando a prática de crimes nas redes sociais. Ou seja, isso aqui está virando uma bagunça porque as pessoas não querem ser radicais no cumprimento da lei. A lei é dura, mas é lei, como se diz em latim, dura lex, sed lex.
Valério Arcary - Mudou a política da oposição liberal com o giro de Doria e Kassab pelo impeachment. A classe dominante está dividida. A parcela que deslocou para a oposição tentou exercer pressão institucional. Pediu a tutela militar, e não funcionou. Tentou a tutela do Centrão, não funcionou. Hesita em avançar na direção do impeachment. A direita liberal está muito mais preocupada com a posição das Forças Armadas do que com o Centrão. E há insegurança com o papel de Mourão.
A decisão das Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, da Coalizão Negra por direitos de manter a Jornada Nacional de Luta de 7 de setembro demonstrou-se correta. Foi correta porque o perigo de uma divisão e, em consequência, desmoralização de parcelas da militância de todos os movimentos e partidos era real. É preciso preservar a firmeza, a capacidade de cálculo tático e lucidez estratégica. Cinco anos de derrotas acumuladas deixaram feridas. Há instabilidade em nossas fileiras. Deve nos causar perplexidade as oscilações "bipolares" de avaliação da conjuntura, indo do desfalecimento à euforia em dias, mesmo em meios de esquerda sérios. Não faz sentido que durante uma semana tenha prevalecido uma visão apocalíptica de iminência de "perigo real e imediato" de autogolpe e, na sequência, a conclusão de que o bolsonarismo teria "flopado". Temos pressa, por isso nos movemos com responsabilidade. Voltaremos às ruas e seremos maioria, mas é necessário construir mobilizações em patamar superior às de maio, junho e julho.
O impacto das manifestações bolsonaristas não deve dividir a esquerda. Já vimos que a pulverização de posições sobre a Jornada do 7 de setembro foi um desastre, e as declarações inoportunas desagregaram. Diante do novo momento da conjuntura é necessária uma mudança de tática. A tática de unidade na ação passou a ter maior importância porque um setor da oposição liberal se deslocou, finalmente, para a defesa do impeachment. É incerto e delicado, mas necessário lutar por Atos unitários pelo Fora Bolsonaro. Mas devemos preparar a iniciativa respeitando os espaços construídos de Frente Única de Esquerda, e a independência política em defesa das reivindicações dos trabalhadores. Uma mudança de tática não deve dividir a esquerda. A fragmentação é um perigo real. A Frente Única foi o maior passo em frente no ano de 2021. A questão central é que a capacidade da esquerda de colocar em movimento sua base social de implantação revelou-se, por enquanto, insuficiente para abrir o caminho do impeachment. Não foi o bastante a tragédia sanitária, econômica, social e política que nos amargura. Seiscentos mil mortes, desemprego acima de 14 milhões de desamparados, vinte milhões em insegurança alimentar, inflação na vertigem dos 10%, perigo de apagão elétrico, incêndios no pantanal e na Amazônia, invasão de terras indígenas, redução de 30% das inscrições no Enem, não foram o bastante. Lula deveria ter reagido, mas é pensamento mágico imaginar que um vídeo de uma convocação de Lula seria o suficiente para um salto de qualidade na capacidade de mobilização da esquerda.
Miguel Rossetto – O projeto de poder bolsonarista é antidemocrático, autoritário. A resposta do presidente do TSE, Barroso, foi a mais clara, corajosa e objetiva, enfrentando e denunciando as várias tentativas golpistas de Bolsonaro. As respostas dos presidentes da Câmara e do Senado, diante da gravidade da crise, vergonhosas, e beiram à cumplicidade. Como em outros momentos da nossa história vivemos uma encruzilhada: ou vence o projeto autoritário, funcional aos interesses de acumulação da riqueza e da renda nacional e de privilégios de uma elite local perversa ou é vitoriosa a democracia, espaço de luta política vital para os interesses populares. A acomodação política neste momento representa unicamente fôlego aos golpistas. Sem perder sua identidade programática, sem parar de denunciar o desastre neoliberal para o Brasil, sem deixar de anunciar um novo projeto popular para o país, a esquerda deve buscar uma ampla unidade política com todos os setores democráticos e colocar no centro da disputa a garantia da soberania popular, da democracia e trabalhar de forma decidida pelo impeachment de Bolsonaro. Que ninguém duvide do que esta turma é capaz de fazer; já estão fazendo.