15 Março 2021
"Não há depois. O depois já é o agora. Quando o poder político da saúde pública está nas mãos de amadores, gente com poder de decisão mas sem discernimento, o depois está nos cemitérios, nos índices alarmantes de mortes evitáveis de uma população desamparada e conformista", escreve José de Souza Martins, sociólogo, pesquisador Emérito do CNPq e da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras e autor de Nuto Sant’Anna, A Poética do Desencontro (Imprensa Oficial, 2021).
“Depois da pandemia” é a ideia de referência de todas as interpretações de futuro, aqui feitas, para indicar-nos que, supostamente, há uma saída para o caos em que o país se encontra. A pandemia é só o pretexto que acoberta a diversidade de âmbitos da crise que estamos vivendo. É só a doença passar que tudo voltará ao lugar. Qual lugar?
O lugar desse retorno imaginário é uma ficção ideológica, um lugar e um tempo que nunca existiram e não tem condições sociais, econômicas e políticas de existir. É o futuro fantasioso do caduco neoliberalismo econômico que estaria, assim, criando sua sociedade ideal. A sociedade sem gente perturbadora da economia, a que reivindica direitos e respeito à condição humana. E aos direitos sociais justos e necessários.
J. S. Martins, “Companheiros” (2012) (Foto: Arquivo pessoal)
O capitalismo desse “depois” é uma invenção que despoja o verdadeiro capitalismo de tudo que lhe é próprio, especialmente as tensões da criatividade, da inovação e das conquistas sociais. Estamos vivendo os últimos momentos de um capitalismo de gente e os primeiros momentos de um capitalismo de coisas, de gente coisificada, que não pensa, não reclama, não exige, não opina, não protagoniza as possibilidades históricas e sociais que o próprio capitalismo é capaz de criar.
Tudo que parece errado no Brasil de hoje é apenas expressão da nossa pós-modernidade oportunista do acaso e do “E daí?” A de um país que banalizou a vida e a ciência e tornou-se refém de um senso comum pobre e enganador. Nesse sentido, o governo Bolsonaro é o nosso primeiro governo pós-moderno, o do Brasil sem futuro.
O atual regime político brasileiro é ideologicamente alimentado pelos absurdos interpretativos de Milton Friedman, em “Capitalismo e Liberdade”. Obra ultrapassada de mais de 60 anos, continua “informando” os toscos que precisam de justificativas pretensamente teóricas para suas aspirações de ganhar muito e pagar por ele um preço social pequeno. A obra pressupõe que a liberdade econômica assegura a liberdade política. O que não se confirmou. A liberdade econômica atual triunfou com base no autoritarismo político, como ocorreu no Chile e no Brasil. É a economia da Guerra Fria. Nessa obra o autor confunde a intervenção reguladora do Estado na economia capitalista com socialismo e com comunismo. Confunde comunismo com stalinismo e a ele reduz o pensamento e as soluções de esquerda.
O pensamento de esquerda, tem uma decisiva função no conhecimento crítico das irracionalidades e contradições do capitalismo e expressa as carências da sociedade em face do poder e do dinheiro que a sufocam. O pensamento de esquerda é que contém os elementos críticos que iluminam os fatores de crise do capitalismo e permitem definir rumos de sua superação.
Franklin Delano Roosevelt salvou o capitalismo americano da Grande Depressão fazendo justamente o que Friedman não recomendaria. Foi o que transformou a América falida na potência que conhecemos.
A economia brasileira só chegaria aonde chegou, nos anos 1930 a 1950, graças à intervenção do Estado em setores em que a iniciativa privada era incapaz de fazer os investimentos necessários, como a siderurgia e, também, o petróleo.
Esse “depois” expressa o arraigado de uma deformação ideológica e alienante. A de que a história é evolutiva, que naturalmente descarta as irracionalidades que a perturbam. Irracionalidades que se difundem para além da economia, como no caso das consequências destrutivas da pandemia. E por via indireta recaem sobre a economia, sonegando-lhe mercado e força de trabalho, inviabilizando-a cada vez mais. Friedman não deixou uma teoria de superação do caos destrutivo que sua receita de capitalismo provoca.
Não há depois. O depois já é o agora. Quando o poder político da saúde pública está nas mãos de amadores, gente com poder de decisão mas sem discernimento, o depois está nos cemitérios, nos índices alarmantes de mortes evitáveis de uma população desamparada e conformista.
Para o sombrio depois dos desarranjos da pandemia, da economia neoliberal e do populismo pseudo-religioso das crenças lucrativas, temos a alternativa que os países capitalistas, democráticos e civilizados adotam: chamem as oposições, as esquerdas. Elas conhecem a rota do bom senso, do equilíbrio, da pluralidade democrática, das políticas fundadas na ciência. Mas, as oposições precisam rever-se profundamente para que possam ter o protagonismo renovador de que o país carece.
As teses econômicas, políticas e geopolíticas assumidas pelo governo Bolsonaro são anacrônicas, anômicas e ultrapassadas. Já eram obsoletas e descabidas quando fundamentaram o pensamento de Friedman que inspira o governo e seus despistados e incondicionais apoiadores.
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Depois da pandemia. Artigo de José de Souza Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU