Por: João Vitor Santos | 13 Outubro 2020
“A Igreja é missionária e a missão a lança em direção às pessoas”. É assim que o padre Antônio Fontinele define o ‘ser Igreja’. Embora pareça simples, conjugar essa ação se configura como um grande desafio, tanto por parte da instituição Igreja Católica Apostólica Romana, como daqueles leigos e leigas que desejam seguir esse apostolado. Por isso, ele vê a necessidade de todos, juntos, se unirem em movimentos que busquem compreender os desafios de nosso tempo. “Temos que aprender a evangelizar em uma sociedade urbana, globalizada, possuidora de uma tecnologia de ponta, gananciosa e violenta, cercada por bolsões de miséria e exclusão”, provoca, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Nordestino, o padre que foi viver na região amazônica agora será ordenado bispo, no dia 17 de outubro, deixará Rondônia e irá para o coração do estado do Amazonas, em Humaitá. Nesta entrevista, revela os desafios e necessidades de promover uma Igreja em saída no contexto amazônico. “Vivemos num país riquíssimo em natureza, população e território muito promissor. Mas isto não é sinônimo de verdade, muito menos sinônimo de distribuição igualitária e de justiça para todos”, destaca, ao analisar a realidade de Porto Velho, em Rondônia.
Pela frente, sabe que mergulhará nos problemas que estão nas manchetes: pobreza, miséria, degradação ambiental e disputas que reduzem o preço da vida a quase nada. E como se tudo isso não bastasse, também sabe que o problema do narcotráfico vem crescendo na região amazônica. “A Amazônia brasileira é uma rota primária obrigatória dos fluxos de cocaína que se direciona para a Europa e África através de rede que se forma a partir da conexão do Brasil com Guianas, Suriname e países Andinos”, observa.
Ainda nesta entrevista, com longa experiência nas Comunidades Eclesiais de Base, Fontinele avalia a atuação e os desafios do movimento, reflete sobre o atual pontificado e as encíclicas do Papa Francisco, bem como o desafio que lança ao promover o Sínodo Pan-Amazônico. “A Igreja é e será sempre a favor da vida em plenitude para todos e todas. Por isso, o papel da Igreja diante de uma realidade de injustiça, violência e opressão contra os povos amazônicos e contra a Casa Comum é de profecia”, reflete. E, por isso, insiste que “a Igreja precisa ser e será sempre a voz daqueles que a sociedade teima em silenciar”.
Antônio Fontinele de Melo (Foto: arquivo pessoal)
Antônio Fontinele de Melo estudou Filosofia e Teologia no Seminário São João XXIII em Porto Velho, Rondônia. É graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Brasília e em Teologia pelo Centro Superior de Juiz de Fora, Minas Gerais. Também realizou especializações em Pedagogia e exegese bíblica. Foi ordenado diácono em 21 de novembro de 1998 e, em 18 de setembro de 1999, por imposição das mãos de D. Moacyr Grecchi, foi ordenado presbítero na Arquidiocese de Porto Velho. Depois da ordenação, tornou-se pastor da freguesia de São Cristóvão. Ainda atuou como reitor do Seminário Menor Dom Helder Câmara, em Porto Velho, e como coordenador de pastoral cuidado na Arquidiocese de Porto Velho. Além disso, foi o presidente dos Presbíteros da Regional Noroeste da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. Foi também pároco da Catedral do Sagrado Coração de Jesus em Porto Velho e ecônomo da Arquidiocese de Porto Velho.
Desde 2016, leciona no Seminário São João XXIII de Porto Velho e no Centro Universitário Claretiano e na Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia. Em 12 de agosto de 2020, o Papa Francisco o nomeou Bispo de Humaitá, no estado do Amazonas. Sua ordenação episcopal será dia 17 de outubro, às 17h, na Catedral Nossa Senhora da Conceição de Humaitá.
IHU On-Line – O senhor é cearense. O que o levou do Nordeste ao Norte do país? Como foi sua chegada na região amazônica?
Antônio Fontinele – Sim, sou cearense. Nasci em Camocim (CE), sou filho de sertanejo agricultor, de uma família de sete irmãos. O que levou minha família do Nordeste para o Norte, e consequentemente a mim também, foi a busca de uma melhor condição de vida. Portanto, somos migrantes nestas terras de Rondônia, como a maioria das pessoas que aqui vivem, convivem e trabalham neste estado da região Norte do Brasil.
A minha chegada neste chão amazônico foi um choque muito grande, pois eu vinha do interior do Nordeste, de uma experiência e vivência em pequenas cidades. Chegando em Porto Velho, capital de Rondônia, fui morar na periferia da periferia, em uma época marcada por muita violência. Porém, aos poucos fui me integrando nesta nova realidade, vivendo em comunidade e superando as dificuldades. Foi neste contexto que entendi que o meio em que vivemos influencia e repercute na vida das pessoas. Conheci muitos adolescentes e jovens que perderam suas vidas para as drogas e o mundo do crime. Em meio a tudo isso a minha participação na Igreja (nas comunidades de base), a minha entrada no Seminário São João XXIII me levaram a crescer, amadurecer, compreender e a me comprometer com esta região, esta cidade.
Foi em Porto Velho que fiz Filosofia, Teologia, fui ordenado diácono e presbítero. Atuei como pároco na Paróquia São Cristóvão e na Catedral Sagrado Coração de Jesus. Fui coordenador de pastoral e dos presbíteros do Regional Noroeste, ecônomo e assessor das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. E nomeado, em agosto deste ano, como bispo da Diocese de Humaitá-AM.
IHU On-Line – Quais as distinções e similaridades entre essas duas regiões?
Antônio Fontinele – São muitas as distinções e similaridades entre elas, salvaguardando aquilo que é singular em cada uma, destaco apenas algumas diferenças e semelhanças que me parecem relevantes na minha caminhada de padre e, agora, de bispo. Por exemplo, as dimensões dessas duas regiões brasileiras. O Nordeste é grande, somando os nove estados do Nordeste teremos uma área aproximada à da Mongólia, que é o 18º maior país do mundo. No entanto, só o estado do Amazonas já tem uma extensão territorial maior que a da Mongólia. A soma das áreas dos sete estados do Norte equivale a 45% do território nacional e a um território maior que o da Índia, que é o sétimo maior país do planeta. Isso tem um grande impacto na ação missionária da Igreja.
Se falarmos desses dois biomas que são riquíssimos e essenciais para a vida do Planeta, vamos encontrar um mundo de variedades, belezas e desafios. Além das belezas naturais do Nordeste, como o sertão, as praias, os mangues, a caatinga, tem ainda uma culinária fantástica e uma cultura muito forte. Já o Norte, além de alguns pontos de cerrado e mangues, o que predomina é a Floresta Amazônica, que equivale a mais de um terço das reservas florestais do mundo. O turismo é muito forte nessas duas regiões, como também a exploração e o descaso com a natureza.
Por fim, nessas duas regiões encontramos povos ancestrais, nativos, migrantes e imigrantes de todas as partes do mundo. As pessoas dessas duas regiões têm em comum a resistência, a alegria, a criatividade, a simplicidade, a religiosidade popular, a fé, a acolhida, os costumes, as músicas. E, muitas vezes, sofrem em comum o preconceito, a violência e o descaso dos que governam os estados e o país.
IHU On-Line – Que Brasil o senhor apreende aí desde Porto Velho, em Rondônia?
Antônio Fontinele – Rondônia é o terceiro estado mais populoso do Norte. Possui 52 municípios e um vasto território que vem sendo ocupado por uma das populações mais diversificadas do Brasil. Faz fronteira com os estados do Mato Grosso, Amazonas, Acre e Bolívia e tem vários rios importantes, entre eles, o rio Madeira que banha a capital, Porto Velho, o rio Ji-Paraná, o Guaporé e o Mamoré. O clima é equatorial e a economia é baseada na pecuária, na agricultura e no extrativismo de madeira, minérios e borracha.
Rio Madeira, que banha a capital Porto Velho | Foto: Antônio Fontinele/arquivo pessoal
Se for pesquisar, vai encontrar informações que dizem que Rondônia é o terceiro estado mais rico da região Norte, responsável por 11% do PIB da região e continua em ascensão econômica. É o estado que tem o quinto melhor Índice de Desenvolvimento Humano - IDH; a segunda maior taxa de alfabetização e a terceira menor taxa de analfabetismo entre Norte e Nordeste; menor incidência de pobreza; segunda melhor distribuição de renda e o melhor índice de transparência do Brasil. As informações sobre a capital, Porto Velho, vão na mesma linha. Diz que é a capital estadual mais extensa do país, é a cidade que detém o quarto maior PIB da região Norte, e a capital que mais cresce economicamente no país.
Localização do estado de Rondônia | Imagem: Wikipédia
Assim, olhando o Brasil desde Rondônia, mais precisamente, desde Porto Velho, onde vivo e realizo a missão que Deus me confia há 27 anos, entendo que vivemos num país riquíssimo em natureza, população e território muito promissor. Mas isto não é sinônimo de verdade, muito menos sinônimo de distribuição igualitária e de justiça para todos. Dizer que um estado ou uma capital está em ascensão econômica, não significa que isso chegue aos mais pobres. Rondônia é o retrato do Brasil que produz miseráveis para depois escondê-los debaixo do tapete. Empurrando os indígenas, ribeirinhos e quilombolas para fora dos grandes centros, obrigando-os a desaparecerem para não estragar a foto.
Um exemplo claro foi o processo migratório que o estado sofreu no período entre 1978 e 1983, e depois, com mais intensidade em meados de 2008, com o início da construção das hidrelétricas Santo Antônio e Jirau.
Assim como no Brasil, Porto Velho concentra sua riqueza em poucos em detrimento da miséria de muitos. Portanto, a partir de Rondônia, podemos ver que é um Brasil plural onde o processo de crescimento econômico tem deixado os rastros da desigualdade. Essa realidade se torna bem visível nas periferias urbanas.
Localização de Porto Velho em Rondônia | Imagem: Wikipédia
IHU On-Line – Que realidade deve encontrar em Humaitá, no Amazonas, uma cidade que está entre as rodovias Transamazônica e Manaus-Porto Velho e banhada pelo rio Madeira?
Antônio Fontinele – A configuração geográfica da diocese de Humaitá-AM entre as Rodovias Transamazônica e BR 319, que interliga o estado do Amazonas aos estados do Pará e Rondônia, caracteriza-se como uma região de intensa migração das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do Brasil. Às margens do rio Madeira existem inúmeras comunidades ribeirinhas.
Localização de Humaitá, no estado do Amazonas | Imagem: Wikipédia
Na área de abrangência da Diocese há onze povos indígenas: Tenharim, Parintitintin, Jiahui (Diarroy), Pirahã, Mura, Torá, Matunawi, Apurinã, Juma, Sateré e Katukina. Com muitos desafios em relação à valorização da cultura dos povos indígenas e ribeirinhos, e com o desenvolvimento agroindustrial voltado ao capitalismo. Um município com duas universidades, a Estadual e a Federal, formando jovens, porém, ainda sem um centro industrial desenvolvendo o mercado de trabalho, pois a maioria da renda familiar vem do trabalho autônomo.
Na região da Diocese de Humaitá, são pelo menos 11 povos indígenas | Foto: Antônio Fontinele/arquivo pessoal
Trata-se de uma realidade bem complexa que há décadas vem enfrentando vários problemas, tais como conflitos agrários, madeireiros, mortes no campo, o Rio Madeira contaminado, queimadas, migrando uns para a cidade e outros para comunidades vizinhas. Este ano, devido à pandemia, muitos ribeirinhos não conseguiram vender os seus produtos, não tinham como transportar, acarretando a queda do preço da castanha e do açaí. Outra realidade a ser encontrada é em relação às drogas e vícios entre os mais jovens. Um mal a ser enfrentado.
IHU On-Line – Quais os maiores desafios para atuar na região amazônica?
Antônio Fontinele – O Papa Francisco já falava no n. 15 da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium que “a atividade missionária representa ainda hoje o máximo desafio para a Igreja e a primeira de todas as causas, sendo necessário passar de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária”.
Poderíamos fazer uma longa lista de desafios, como a inculturação da fé, o protagonismo dos leigos e leigas, as distâncias, a falta de recursos humanos e financeiros para ação missionária, além das questões estruturais: a pobreza, falta de políticas públicas, graves conflitos territoriais e outros flagelos que assolam a região. Mas, penso que o Papa Francisco descreveu bem que um dos maiores desafios da Igreja na Amazônia é avançar num caminho de conversão pastoral e missionária, que nos faça passar de uma atividade administrativa da situação para uma Igreja em saída, mais aberta ao diálogo e mais inclusiva das diversas culturas, principalmente, a dos povos originários.
Celebração em uma das comunidades ribeirinhas do Rio Madeira | Foto: Antônio Fontinele/arquivo pessoal
IHU On-Line – Qual o papel da Igreja diante dessa realidade dos povos amazônicos, que mistura disputas, ataques e degradações ambientais, mas também o encontro de muitos povos e a luta pela preservação da Amazônia? E como esse papel vem sendo desempenhado?
Antônio Fontinele – Creio que a Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, nos mostra bem qual deve ser a responsabilidade da Igreja em meio a essas realidades da Amazônia. Contribuir para o cuidado com a Casa Comum a partir da visão de Ecologia Integral onde tudo está interligado. O Papa nos fortalece afirmando: “Todos aqueles que estão empenhados na defesa da dignidade das pessoas podem encontrar, na fé cristã, as razões mais profundas para tal compromisso” (LS 65).
A Igreja é e será sempre a favor da vida em plenitude para todos e todas. Por isso, o papel da Igreja diante de uma realidade de injustiça, violência e opressão contra os povos amazônicos e contra a Casa Comum é de profecia. A Igreja precisa ser e será sempre a voz daqueles que a sociedade teima em silenciar. Será sempre a voz profética que denuncia a idolatria do dinheiro em detrimento da vida, e será a voz profética que anuncia que um mundo sem males é possível, convidando todos e todas à conversão.
Esse papel vem sendo desempenhado por muitos leigos e leigas, padres e bispos, religiosos e religiosas, que doam sua própria vida para defender a vida dos povos e da Amazônia. Muitos desses derramaram seu próprio sangue por esta causa maior. E não fizeram em seu próprio nome, fizeram por ser Igreja e pela causa de Jesus Cristo.
Rio Madeira, que banha Humaitá, e a Catedral Nossa Senhora da Conceição
Na Exortação Apostólica Querida Amazônia, o Papa Francisco apresenta quatro sonhos que devem impulsionar o papel da Igreja nesta imensa região:
● Um sonho social (n. 8 – O nosso é o sonho de uma Amazônia que integre e promova todos os seus habitantes, para poderem consolidar o «bem viver». Mas impõe-se um grito profético e um árduo empenho em prol dos mais pobres. Pois, apesar do desastre ecológico que a Amazônia está a enfrentar, deve-se notar que «uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres». Não serve um conservacionismo «que se preocupa com o bioma, porém ignora os povos amazônicos»);
● Um sonho cultural (n. 28 – objetivo é promover a Amazônia; isto, porém, não implica colonizá-la culturalmente, mas fazer de modo que ela própria tire fora o melhor de si mesma. Tal é o sentido da melhor obra educativa: cultivar sem desenraizar, fazer crescer sem enfraquecer a identidade, promover sem invadir. Assim como há potencialidades na natureza que se poderiam perder para sempre, o mesmo pode acontecer com culturas portadoras duma mensagem ainda não escutada e que estão ameaçadas hoje mais do que nunca);
● Um sonho ecológico (n. 41 – Numa realidade cultural como a Amazônia, onde existe uma relação tão estreita do ser humano com a natureza, a vida diária é sempre cósmica. Libertar os outros das suas escravidões implica certamente cuidar do seu meio ambiente e defendê-lo e – mais importante ainda – ajudar o coração do homem a abrir-se confiadamente àquele Deus que não só criou tudo o que existe, mas também Se nos deu a Si mesmo em Jesus Cristo. O Senhor, que primeiro cuida de nós, ensina-nos a cuidar dos nossos irmãos e irmãs e do ambiente que Ele nos dá de prenda cada dia. Esta é a primeira ecologia que precisamos. Na Amazônia, compreendem-se melhor as palavras de Bento XVI, quando dizia que, «ao lado da ecologia da natureza, existe uma ecologia que podemos designar “humana”, a qual, por sua vez, requer uma “ecologia social”. E isto requer que a humanidade (…) tome consciência cada vez mais das ligações existentes entre a ecologia natural, ou seja, o respeito pela natureza, e a ecologia humana». Esta insistência em que «tudo está interligado» vale especialmente para um território como a Amazônia);
● Um sonho eclesial (n. 61 – A Igreja é chamada a caminhar com os povos da Amazônia. Na América Latina, esta caminhada teve expressões privilegiadas, como a Conferência dos Bispos em Medellín (1968) e a sua aplicação à Amazônia em Santarém (1972); e, depois, em Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). O caminho continua e o trabalho missionário, se quiser desenvolver uma Igreja com rosto amazônico, precisa de crescer numa cultura do encontro rumo a uma «harmonia pluriforme». Mas, para tornar possível esta encarnação da Igreja e do Evangelho, deve ressoar incessantemente o grande anúncio missionário).
IHU On-Line – As queimadas na região amazônica viraram manchete internacional neste ano. Como tem visto essa realidade de perto?
Antônio Fontinele – O que vemos em toda a região amazônica são as chamas, as queimadas consumindo vastas áreas de floresta, que primeiramente contou com a ação predatória humana, com os desmatamentos que ocorreram na região. As cidades amanhecem encobertas por uma extensa nuvem de fumaça de queimadas vindas de diferentes pontos da Amazônia. O que vemos em muitas cidades da Amazônia parece uma obra de ficção, as cidades em névoa por uma densa nuvem de fumaça. Infelizmente, os incêndios na Amazônia não ocorrem de forma natural, são consequências da ação humana em que os principais responsáveis estão associados à grilagem de terras públicas ou terra indígena, à renovação das vastas áreas de pastagem para a agropecuária e outras.
Queimadas que assolam todo o Brasil também são uma realidade na região de Humaitá | Foto: Antônio Fontinele/arquivo pessoal
Dados oficiais e sérios (Inpe) apontam um aumento muito grande: na primeira quinzena de setembro, eram mais de 20.485 focos de queimadas na Amazônia brasileira, e pouco o governo tem feito para combater, ao contrário, incentiva o desmatamento, a grilagem de terra, com a flexibilização das leis ambientais. As queimadas na Amazônia, além de causarem prejuízo para o ecossistema, causam sérios problemas de saúde para toda a população, ainda mais neste tempo que atravessamos, como humanidade, a pandemia pela covid-19, que ataca diretamente o sistema respiratório.
Um fato relevante, que me chamou a atenção com relação à devastação da Amazônia, aconteceu nas Santas Missões Populares em 2007 na Arquidiocese de Porto Velho, quando durante essa jornada, nas comunidades, um dos missionários falava sobre a preservação da natureza e apresentava a Amazônia como jardim e farmácia da comunidade, falando das diversas plantas medicinais, bem como diversas frutas e alimentos que a mãe terra nos oferece. Assim, as pessoas iam relatando seus conhecimentos sobres as plantas medicinais bem como as frutas e sementes que a natureza oferece e, ao mesmo tempo, declaravam o quanto o seu habitat havia mudado com a derrubada das florestas, as perdas irreparáveis e até mesmo a falta d’água no período do verão.
IHU On-Line – Além das queimadas, quais os maiores problemas da Amazônia brasileira?
Antônio Fontinele – A lista é bem grande e não saberia dizer qual a prioridade ou urgência entre elas por serem todos problemas gravíssimos. Entre tantos, podemos citar o desmatamento ilegal que gera trabalhos escravos. A pirataria bioecológica feita às surdinas por países que enviam seus espiões para colher plantas, ervas, fluidos nativos e, inclusive, sangue dos indígenas da Amazônia e depois patenteiam, impedindo que os povos originários façam uso do que é seu por direito. Tudo isso agravado por uma burocracia morosa brasileira sobre a política das patentes.
Outro grande problema é a grilagem de terras, que gera muita violência e assassinatos, muitas vezes acobertados por aqueles que deveriam lutar pela verdade e pela justiça. Estupros, miséria, doenças e falta de acesso à saúde pública. O problema das hidrelétricas, que não trazem nenhum benefício para as comunidades locais, nem mesmo no valor e na qualidade do fornecimento de energia. O envenenamento das águas e das terras pelas mineradoras e pelo uso de agrotóxicos nas monoculturas do agronegócio. O tráfico de pessoas, de órgãos e de drogas, somado à falta de policiamento e fiscalização dos rios, florestas e ares. O preconceito e a violência contra os povos originários.
IHU On-Line – Recentemente, reportagens têm denunciado a entrada pesada do narcotráfico na Amazônia, especialmente nas comunidades locais. Como o senhor tem visto mais esse problema? Como enfrentá-lo?
Antônio Fontinele – A Amazônia brasileira cumpre importante função geográfica de conectividade do narcotráfico em nível nacional e internacional. De fato, representa uma área de trânsito da cocaína produzida nos países da comunidade Andina, sendo utilizada como corredor de importação/exportação de cocaína, e objeto de interesse do crime organizado.
Além desses problemas de ordem político-econômica, está presente o desafio da segurança regional, onde o Estado brasileiro é chamado a monitorar as fronteiras da Amazônia com os seus países vizinhos, em especial, aqueles que estão no mapa da Pan-Amazônia produtores de cocaína.
De acordo com o relatório do Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crimes - UNODC, a “economia das drogas” apresenta-se como uma verdadeira indústria que, na última década do milênio, chegou a faturar US$ 870 bilhões. Nestes termos, a concentração no comércio do tráfico de drogas chega a 1,5% de todas as riquezas que são produzidas e que correspondem ao Produto Interno Bruto - PIB mundial, e, portanto, chega a movimentar 40% das outras atividades ilegais lucrativas do crime organizado, tais como tráfico de armas, tráfico de pessoas e lavagem de dinheiro.
A UNODC (2014) aponta também que no Brasil houve um crescimento do consumo de cocaína, o que, de certa forma, é favorecido pela sua localização geográfica, pelo aumento do poder de compra da população e pela conectividade existente entre organizações criminosas com os cartéis colombianos. E a Amazônia brasileira é uma rota primária obrigatória dos fluxos de cocaína que se direciona para a Europa e África através de rede que se forma a partir da conexão do Brasil com Guianas, Suriname e países Andinos. A bacia Amazônica torna-se necessariamente um grande corredor de cocaína que alimenta, inclusive, o mercado brasileiro.
A vulnerabilidade da fronteira que a região enfrenta, associada à pobreza da população, facilita o assédio de narcotraficantes em relação aos ribeirinhos que desenvolvem a função de “mulas” ou de guias sobre os rios da Amazônia e completam a função do Brasil, um país que beneficia, distribui e consume a cocaína de origem andina. Então, o narcotráfico na Amazônia destaca-se como uma das mais significativas e preocupantes ameaças à soberania nacional, de forma que suas redes criam estruturas de poder que utilizam algumas cidades da região como espécie de bases operacionais que se tornam espécies de territórios em redes de um circuito espacial do narcotráfico.
Somando-se a estes fatos, a região amazônica ainda enfrenta as ações vinculadas à economia do crime, aquelas em redes que desafiam o poder do Estado, como o narcotráfico, por exemplo. Tem-se também baixo grau de desenvolvimento econômico e social em algumas áreas, além do que, há uma baixa densidade demográfica e atuação precária do Estado com os seus serviços públicos. E isto contribui para o surgimento de zonas de instabilidade na fronteira.
É preciso criar estratégias de cooperação entre os países da Amazônia internacional com o intuito de formular intervenções em zonas de fronteiras, voltadas para a construção da cidadania, porém respeitando as especificidades de cada lugar, considerando a diversidade que há nas relações sociais quando se refere a uma região múltipla, complexa e dinâmica como a Amazônia. Cabe ao Estado elaborar políticas públicas que impeçam o fortalecimento do narcotráfico em seu território.
IHU On-Line – O senhor tem estudos sobre as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs e o trabalho em missão. Quais as contribuições das CEBs nesses desafios missionários e como analisa a articulação desses grupos hoje?
Antônio Fontinele – A missão não é uma atividade a mais da Igreja, mas constitui a própria essência de ser Igreja, atendendo ao apelo de Cristo. “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16,15).
As CEBs pautam sua atuação em valores que têm seus pontos altos na dignidade da pessoa humana, no bem comum e na justiça social. Nos tempos atuais temos vários desafios a serem superados, como a globalização e o individualismo, o pluralismo cultural e religioso e a imposição de um pensamento único, a urbanização e a violência, crença e descrença, adesões parciais às verdades da fé, religião invisível, sincretismo, esoterismo, banalização da religião e a mercantilização da fé.
Diante dessas complexidades, as CEBs têm como missão enfrentar tal problemática a partir dos anseios populares; aprofundar a reflexão sobre as contradições da modernidade e apresentar caminhos de superação, e sendo “fermento na massa”, como sinal de esperança, alimentando a espiritualidade de que outro mundo é possível. “Eu vi e ouvi os clamores do meu povo e desci para libertá-lo.” Hoje, as CEBs têm como missão acolher e amar o campo e principalmente a cidade e sua diversidade cultural, ver além, pontos negativos, e também os positivos como oportunidade para intensificar a ação transformadora, a missão em prol da vida. É preciso descobrir valores como proximidade, solidariedade, senso de justiça, lutas em defesa da vida, da liberdade e da dignidade, entendendo os símbolos, as bandeiras de lutas do campo e da cidade, ir ao encontro, sair de si, tornar-se CEBs missionárias, indo para as praças, conjuntos habitacionais, para locais de lazer, para as periferias.
Além disso tudo, devem se tornar comunidades abertas itinerantes, peregrinas e não fechadas. Devem agir com uma mística própria, que atenda aos apelos do campo e da cidade, baseadas na fé, na Palavra de Deus e na realidade. Seu lema é servir, atingindo o coração das pessoas; provocando mudanças a serviço da vida; acolhendo os que sofrem; lutando pela cidadania; incentivando a partilha e irradiando a semente transformadora e libertadora do evangelho. As CEBs em missão precisam tornar-se, de fato, uma rede de comunidades que atenda aos apelos e as urgências do campo e da cidade com acolhimento e acompanhamento das necessidades espirituais e existenciais.
Para Fontinele, a Igreja é missão e o essencial é estar presente na comunidade | Foto: Arquivo pessoal Antônio Fontinele
Ser CEBs em missão é ser semente de uma nova realidade social e eclesial, baseada no amor misericordioso de Deus, que acolhe, perdoa e transforma. Temos que aprender a evangelizar em uma sociedade urbana, globalizada, possuidora de uma tecnologia de ponta, gananciosa e violenta, cercada por bolsões de miséria e exclusão. Como discípulos missionários, precisamos semear a esperança e revelar, a partir de Jesus Cristo, o caminho, a verdade e a vida. As CEBs são fruto de um povo que se faz Igreja e de uma Igreja que se faz povo numa perspectiva libertadora.
IHU On-Line – O que o senhor entende como ‘uma Igreja próxima das pessoas’?
Antônio Fontinele – Penso que não se trata de nenhuma novidade, mas de voltar ao que é a essência da Igreja, a sua identidade mais profunda, que é a missão. São Lourenço no século III já dizia que o maior tesouro da Igreja são os pobres.
A Igreja é missionária e a missão a lança em direção às pessoas. Um exemplo bonito é do senhor Eniel. Ele nasceu em Minas Gerais, migrou para o norte do Paraná com sua família, depois para o Mato Grosso e, em seguida, para Rondônia. Em 1991, foi trabalhar na vila de Buritis, onde havia várias serrarias. Contando apenas com uma bicicleta, de 1993 a 2005, seu Eniel fundou 65 comunidades no interior do recém-criado município e sempre as visitava para animá-las. É um exemplo extraordinário de missionariedade. Nessa época, Buritis era visitada de vez em quando por um padre.
Nas palavras do Papa Francisco, a Igreja que assume a sua identidade missionária é totalmente misericordiosa, pobre e para os pobres, uma Igreja mais aberta, dialogante, acolhedora e empenhada no cuidado da nossa Casa Comum. Uma Igreja tem que ser simples e próxima do povo, saindo de si e assumindo o espírito missionário; uma Igreja acolhedora, sincera, realista, que promove a cultura do encontro e da ternura; uma Igreja preocupada com a dor e o sofrimento humano, a guerra, a fome, o desemprego, os anciões, onde os últimos sejam os primeiros. A Igreja da misericórdia e da compaixão, que cura as feridas, cuida da criação, de portas abertas, que sai às ruas e vai às margens sociais e existenciais, às fronteiras, aos que estão longe, mesmo sob o risco de sofrer acidentes; uma Igreja que abre caminhos novos e vai sem medo de servir.
As festas populares do Norte do país, como a de São Francisco de Assis, em Porto Velho, revelam a importância da religiosidade popular e de uma Igreja junto ao seu povo | Foto: Arquivo pessoal Antônio Fontinele
IHU On-Line – Que contribuições a Teologia pode legar para uma compreensão do que é a biodiversidade? E especialmente na região onde o senhor vive, como esses dois conceitos se materializam?
Antônio Fontinele – Sabemos que a questão ambiental apresenta, além de demandas econômicas, sociais e políticas, questões éticas e religiosas. Nesse âmbito, a Igreja tem o dever de se empenhar, visto que a dimensão ética consiste na nossa responsabilidade pelos pobres, que são os mais afetados. É o que nos diz o Papa Francisco na Laudato Si’: o grito da natureza e o grito dos pobres são o mesmo grito. A dimensão ética reflete na dimensão religiosa visto que nossa fé em um Deus criador que nos fez guardiões da Casa Comum nos diz que o verdadeiro louvor a Deus se traduz na ética do cuidado para com todas as suas criaturas.
A teologia e a biodiversidade se materializam na Igreja como um todo, portanto, também aqui em Porto Velho, como uma Ecoteologia, que gera uma espiritualidade ecológica e amplia o campo de vivência, de experiência e de diálogo com os povos originários. É neste contexto que se identificam os desafios evangelizadores na Amazônia.
Para Fontinele, na região amazônica se dá uma Ecoteologia, numa mistura entre os sacramentos e a conexão com o meio ambiente | Foto: Arquivo pessoal Antônio Fontinele
IHU On-Line – Como o Sínodo da Amazônia tem repercutido nas comunidades por onde tem passado? Já é possível falar em frutificação desses movimentos?
Antônio Fontinele – O Sínodo da Amazônia tem repercutido através das rodas de conversas, vídeos formativos, na formação das lideranças e na busca de uma nova forma de evangelizar e cuidar da biodiversidade da região amazônica.
Um dos frutos concretos é a abertura para refletir como Igreja sobre a necessidade de um clero autóctone; sobre a maior participação das mulheres e sobre a necessidade de formar uma Igreja com rosto amazônico, o que significa uma Igreja mais inculturada, com uma identidade própria, que rompe com a ideologia colonizadora, respeitando a história, a identidade, os problemas e os sonhos dos povos amazônicos. Por fim, uma Igreja mais consciente, missionária e profética, defensora da vida como um todo.
IHU On-Line – Agora no início de outubro, o Papa Francisco publicou a Encíclica Fratelli Tutti. Como o senhor analisa esse documento?
Antônio Fontinele – A Encíclica é um documento belíssimo e denso que exige uma releitura e reflexão, portanto, não me sinto apto ainda para fazer uma análise mais sistemática. Porém, compartilho algumas impressões iniciais que podem ser de luz para nosso caminho na Igreja da Amazônia.
Alguns críticos estão afirmando que esta é a encíclica mais política do papado de Francisco. Pode ser, mas, a meu ver, trata-se da encíclica mais evangélica, profundamente permeada por um apelo profundo de conversão dirigida a cada pessoa em particular, como um irmão que fala ao coração de outro irmão. O documento apostólico traz uma análise de conjuntura, destacando os pontos positivos e negativos da comunidade mundial, mas os oito capítulos deste documento parecem querer traçar um caminho possível para restaurar e se viver o amor fraterno e universal, que valoriza a todos indistintamente.
Essa encíclica ilumina a nossa ação missionária porque mostra que no coração do missionário e na sua ação evangelizadora não pode haver dicotomia entre o amor a Deus e o amor ao próximo, seja ele de qualquer etnia, cultura, gênero ou cor. A verdadeira evangelização se faz amando, porque ser irmãos é a vocação mais profunda da humanidade. Por fim, o documento é profundamente ecumênico e inter-religioso, e não pretende ser um tratado dogmático sobre a fraternidade e a amizade social, mas um apelo à vivência do amor fraterno e à nossa capacidade de sonhar a fraternidade universal.
IHU On-Line – Que relação essa última encíclica estabelece com Laudato si’? E o que ambas revelam sobre este pontificado?
Antônio Fontinele – Podemos traçar muitas relações, a começar pelos títulos inspirados em São Francisco de Assis. A busca do amor fraterno que não conhece barreiras perpassa os documentos e é a linha mestra que conduz o pensamento do Papa Francisco que sonha com um mundo de paz, mas não quer sonhar sozinho, e por isso comunica seu sonho em forma de encíclica.
O louvor que brota da Laudato si’ pela Criação se estende agora na Fratelli Tutti, mostrando que nessa Casa Comum somos todos irmãos e irmãs. Assim como na Laudato Si’, esse louvor podia ser eclipsado pela ganância de alguns, gerando um planeta doente, no qual os principais atingidos são os mais inocentes e indefesos, a natureza e os pobres. E na Fratelli Tutti mostra que quando não vivemos a ética do cuidado e não respeitamos a vida em sua plenitude, não reconhecemos o próximo como irmão e renegamos a vocação profunda da humanidade que é sermos todos filhos e filhas do mesmo Pai, consequentemente, irmãos universais.
IHU On-Line – O que Fratelli Tutti tem a dizer ao povo amazônico? E ao Brasil de hoje?
Antônio Fontinele – Talvez a mensagem mais enfática do documento Fratelli Tutti para os povos amazônicos e para o Brasil de hoje seja reforçar a ideia de que para preservar a Amazônia é necessário dar-se as mãos como irmãos e irmãs e trabalharmos juntos na preservação da vida.
Diante da catástrofe socioambiental e climática que desafia globalmente a sociedade humana; diante da insana ganância humana que explora a Terra e oprime seus irmãos mais frágeis, é necessário e urgente sair da indiferença ou das hesitações para tomar as decisões exigidas pela crise. Mas nada poderemos fazer individualmente. O caminho está em redescobrir a nossa vocação de irmãos e irmãs e abraçar nossa missão de guardiões da Casa Comum.
Poema de Antônio Fontinele | Arte: Natália Froner/IHU
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Os desafios de ser Igreja em missão no contexto amazônico. Entrevista especial com Antônio Fontinele de Melo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU