12 Mai 2016
“Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta. O Papa Francisco pratica essa escuta ao citar como fontes de seus escritos muitas Igrejas locais e também o magistério científico dos teólogos. “É uma escuta recíproca, onde cada um tem algo a aprender”, escreve Paulo Suess, teólogo.
Segundo ele, “a sinodalidade é vivida por sujeitos ativos de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas ações. O sensus fidei impede uma rígida separação entre Ecclesia docens e Ecclesia discens” (Discurso, l.c., p. 2). Para os discípulos de Jesus “a única autoridade é a autoridade do serviço, o único poder é o poder da cruz” (ibid. p. 4.). E essa autoridade do serviço se realiza nos três níveis de uma “Igreja toda sinodal” (ibid., p. 5): nas Igrejas particulares, nas Conferências Episcopais e na Igreja universal, ou dito de modo mais simples: nas comunidades e paróquias, nas dioceses e no Vaticano”
Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia, no Instituto Teológico de São Paulo – ITESP. Entre suas publicações, estão Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007) e Impulsos e intervenções. Atualidade da Missão (São Paulo: Paulus, 2012) e Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015).
Eis o artigo.
Os paradigmas com suas dimensões eclesiológicas, pastorais e teológicas, que se revelam cada vez com mais clareza como estruturantes do pensamento do Papa Francisco, são os seguintes:
- missionariedade como núcleo da Igreja evangelizadora em saída;
- marginalidade da periferia existencial e geográfica como lugar teológico do encontro com marginalizados e marginais, fugitivos e refugiados, pobres e feridos, excluídos e não reconhecidos;
- sinodalidade, misericórdia e alegria como modos de operação entre saída da acomodação e chegada, permanência e vida partilhada nas periferias.
A teologia de Francisco não se resume num almanaque de imperativos pastorais desconexos que precisam ser vigiados pelo Prefeito da Congregação pela Doutrina da Fé. Trata-se de uma teologia trinitária e profética, pastoral e espiritualmente orientada. A Trindade pode ser compreendida como mandala da fé e de Deus. Essa mandala integra o múltiplo e o diferente na unidade do Espírito Santo: A horizontalidade universal do Pai, a verticalidade do Filho encarnado e a circularidade do Espírito Santo, enviado para dobrar a rigidez do centro, consolar os que sofrem, defender os pobres e os que o mundo não reconhece em sua dignidade.
O Pai, que é amor, é também o protomissionário que envia. Ele é o início e o fim da missão. O Filho, que é caminho, convoca e envia a comunidade missionária que no Concílio dos Apóstolos em Jerusalém encontrou na sinodalidade um modus operandi (cf. At 15). O Espírito Santo, que antecipa com sua presença a chegada dos discípulos missionários, é “descanso na luta, brisa no calor, conforto no pranto” (cf. Sequência de Pentecostes). Nas margens da periferia, Deus torna-se Pai dos pobres no Espírito Santo. Deus-amor forja o caminhar juntos, o caminho misericordioso e alegre da sinodalidade no Espírito. A periferia é o lugar do nada e do tudo, o despojamento radical e a plenitude. É o lugar onde Deus coloca seu berço humano e sua cruz divina. A periferia, que é limite geográfico-histórico e existencial, é também lugar de passagem, ou pelo portal da morte e do retorno à acomodação ou pelo portal da vida histórica e escatológica que se revela na fidelidade da resistência.
1. A missão
A missão é ordem e obra do amor de Deus. Ele nos amou primeiro (1Jo 4,19). E nesse amor ele nos deu a ordem de sair de qualquer tipo de instalação. “Na Palavra de Deus, aparece constantemente este dinamismo de «saída»” (EG 20), que nos lembra a Evangelii gaudium. “Abraão aceitou o chamado para partir rumo a uma nova terra [cf. Gn 12,1-3]. Moisés ouviu o chamado de Deus: «Vai; Eu te envio» [Ex 3,10], e fez sair o povo para a terra prometida [cf. Ex 3,17]. A Jeremias disse: «Irás aonde Eu te enviar» [Jr 1,7]. Naquele «ide» de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta nova «saída» missionária” (EG 20).
Qual é a finalidade dessa saída? A EG aponta para uma metodologia com quatro pilares de uma pastoral em chave missionária (EG 33ss):
a) Abandonar o cômodo critério pastoral, seu imobilismo e tradicionalismo: “fez-se sempre assim” (EG 33).
b) “Ouvir a todos” (EG 31). Faz parte de um “processo participativo” que promove “uma comunhão dinâmica, aberta, missionária” (EG 31) e sinodal.
c) “Saída de si próprio para o irmão” (EG 179). A Igreja em saída é uma Igreja despojada com as portas abertas (cf. EG 46). No outro “está o prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós” (EG 179). A “resposta à doação absolutamente gratuita de Deus” (EG 179) é a saída de si como “absoluta prioridade” da vida cristã. “A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros. Isto é, definitivamente, a missão” (EG 10).
d) Concentrar-se “no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG 35). “As elaborações conceituais hão de favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não nos afastar dela” (EG 194).
Como operacionalizar essa saída? “Sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias”? (EG 20). A Igreja “em saída” encontra obstáculos. A saída exige “prudência e audácia” (EG 47), “coragem” (EG 33, 167, 194) e “ousadia” (EG 85, 129). O modelo dessa missionariedade é a itinerância do próprio Jesus.
Quem se propõe a “ser o fermento de Deus no meio da humanidade” (EG 114) está sempre em busca de “respostas que encorajem, deem esperança e novo vigor para o caminho” (ibid.) do povo de Deus. Essa Igreja cumpre a sua missão quando se torna “o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho” (EG 114).
Os verbos preferenciais de Francisco, para caracterizar a visão de uma Igreja, que é por sua natureza missionária (AG 2, DAp 347), são: abrir, sair, caminhar, converter (transformar), priorizar, despojar e diversificar na unidade do Espírito Santo. Enfim, a missão tem sua raiz e seu fim não na propaganda nem nas múltiplas atividades nossas, mas na atração do Deus trino e uno que se encarnou em nosso meio: “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).
2. A margem
Lugar de atuação e horizonte da “Igreja em saída” são as periferias. Ser Igreja em saída para as margens não é natural, é opção que “deriva da nossa fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e marginalizados” (EG 186). As periferias, que são lugares de encontro com os marginalizados e os marginais, os fugitivos e os refugiados, com os desesperados e os excluídos, são também lugares do encontro com Deus, que no presépio se fez pequeno; no Egito se fez um refugiado; no monte das oliveiras, um desesperado; no tribunal da época, um acusado; na cruz, um condenado à morte e, aparentemente, um abandonado por Deus e pela humanidade.
Pela encarnação, Deus tem experiência com as periferias existenciais e geográficas. Além do sacrário, a periferia é o lugar seguro do encontro com esse Deus anônimo, escondido e fiel. Se a Evangelii gaudium nos diz: “Todos somos convidados a aceitar este chamado: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20), não quer dizer que as periferias são lugares das trevas. O sofrimento, o abandono e o pecado podem obscurecer nosso tempo de vida e aprofundar nossa solidão. Mas, é tarefa da missão mostrar que a luta pela vida é a luta pela glória de Deus que irrompe nas trevas históricas, na audácia do líder tupinambá Babau, na gratuidade da vida da Irmã Dorothy Stang, na solidariedade dos mártires da UCA de El Salvador, na fidelidade dos sete mártires de Tibhirine, na Argélia. Todos eles, que vieram da grande aflição das periferias, souberam viver “a afetividade irmanada com a racionalidade da luta; a eficácia na loucura da gratuidade” (Plano Pastoral do Cimi, n. 86) tentando construir um mundo para todos. Eles não precisam de holofotes nem da propaganda midiática, “não precisam de sol nem de lua para sua iluminação, pois a glória de Deus é a sua luz e a sua lâmpada é o Cordeiro” (Ap 21,23).
Visando a vida para todos, Francisco pode generalizar: “No coração de Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo «Se fez pobre» (2Cor 8,9). Todo o caminho da nossa redenção está assinalado pelos pobres” (EG 197). Ouvir o clamor dos pobres não é um mérito especial, mas expressão da nossa fé na presença de Deus e expressão da nossa indignação contra aqueles que tentam apagar essa glória de Deus no meio dos marginalizados.
Nesse contexto, o Papa Francisco cita longamente os Bispos do Brasil: “Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde – lesadas em seus direitos. [...] Escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda” (EG 191).
Esse privilégio da periferia não seria uma quebra do princípio evangélico da igualdade? O papa responde com clareza: “Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc 14, 14). [...] Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos! (EG 48). Este vínculo entre a fé e os pobres “tem consequências na vida de fé de todos os cristãos [...] Inspirada por tal preferência, a Igreja fez uma opção pelos pobres” (EG 198). E essa é a opção da Igreja povo de Deus. Não se trata de preferências setoriais ou individualistas. Priorizar as periferias e preocupar-se com elas são tarefas da Igreja como comunidade missionária e de seu caminhar na unidade e diversidade do Espírito Santo.
3. O Sínodo
Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco sublinhou a importância do Sínodo como atualização do espírito da sinodalidade e colegialidade. Em sua entrevista programática com o padre Antonio Spadaro, SJ, de agosto de 2013, na Casa Santa Marta, Francisco falou de sua visão da sinodalidade: “Devemos caminhar juntos [...]. A sinodalidade vive-se em vários níveis. Talvez seja tempo de mudar a metodologia do sínodo, porque a atual parece-me estática. [...] Nas relações ecumênicas, isto é importante: não só conhecer-se melhor, mas também reconhecer o que o Espírito semeou nos outros como um dom também para nós” (SPADARO, Entrevista, Paulus/Loyola, 2013, p. 24). Perguntado sobre sua visão da unidade, Francisco respondeu: “Devemos caminhar unidos nas diferenças.
Não há outro caminho para nos unirmos. Este é o caminho de Jesus” (ibid.). Por isso, deve-se tornar os sínodos “menos rígidos na forma. [...] Quero que seja uma consulta real, não formal” (ibid., p. 16). “Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as estruturas centrais da Igreja universal precisam ouvir esse apelo a uma conversão pastoral. [...] Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e sua dinâmica missionária” (EG 32).
Em seu discurso por ocasião da comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos, dia 17 de outubro de 2015, o Papa Francisco qualificou o Sínodo como “um dos legados mais preciosos da última sessão conciliar. [...] O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” (Discurso, www.vatican.va /17.10.2015, p. 2). “Igreja sinodal” é um pleonasmo, porque, segundo João Crisóstomo (+407), “Igreja e Sínodo são sinônimos” (ibid. p. 4). O papa dá nesse discurso uma verdadeira aula sobre a função da sinodalidade na Igreja. “Estou convencido de que, numa Igreja sinodal, também o exercício do primado petrino poderá receber maior luz. O Papa não está, sozinho, acima da Igreja; mas, dentro dela, como batizado entre batizados” (Discurso, l.c. p. 6).
Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta. O Papa Francisco pratica essa escuta ao citar como fontes de seus escritos muitas Igrejas locais e também o magistério científico dos teólogos. “É uma escuta recíproca, onde cada um tem algo a aprender”. A sinodalidade é vivida por sujeitos ativos de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas ações. O sensus fidei impede uma rígida separação entre Ecclesia docens e Ecclesia discens” (Discurso, l.c., p. 2). Para os discípulos de Jesus “a única autoridade é a autoridade do serviço, o único poder é o poder da cruz” (ibid. p. 4.). E essa autoridade do serviço se realiza nos três níveis de uma “Igreja toda sinodal” (ibid., p.
5): nas Igrejas particulares, nas Conferências Episcopais e na Igreja universal, ou dito de modo mais simples: nas comunidades e paróquias, nas dioceses e no Vaticano.
Como se pode perceber, a sinodalidade toca hoje em pontos nevrálgicos da Igreja católica: ministerialidade, colegialidade, ecumenismo, magistério partilhado, autoridade como serviço, exercício do papado e de sua conversão (Discurso, l.c., p. 6). A sinodalidade tem um grande valor para a Igreja e o mundo, pois, apesar de invocar participação, solidariedade e transparência na administração dos assuntos públicos, frequentemente entrega o destino de populações inteiras nas mãos gananciosas de grupos restritos de poder. [...] Cultivamos o sonho de que a redescoberta da dignidade inviolável dos povos e da função de serviço da autoridade poderão ajudar também a sociedade civil a edificar-se na justiça e na fraternidade” (ibid., p. 6).
A “redescoberta” aponta para práticas, hoje, esquecidas. O “sonho” alimenta a esperança na possibilidade de um projeto do bem viver para todos. A força de suscitar essa memória e prática da dignidade inviolável, e de sustentar esse desejo do bem viver está em cada um de nós. Está no reconhecimento dos outros em sua alteridade, na opção de amá-los em sua pobreza e na disposição de resistir com eles contra as múltiplas ofertas de uma vida alienada.
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Missionariedade, Marginalidade, Sinodalidade. A missão de caminhar juntos para a periferia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU