Por: Patricia Fachin | 21 Setembro 2018
“Todos os candidatos disponíveis estão brigando, empunhando bandeiras, chavões e propostas que são apenas uma mirada vesga pelo espelho retrovisor; é um deserto de ideias sobre a maior revolução tecnológica da história da humanidade e ninguém é capaz de articular um modelo de desenvolvimento que coloque essa preeminência da ‘iconomia’, da cultura digital e da economia criativa”, adverte Gilson Schwartz na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line.
Na avaliação do economista, se o Estado não tiver um planejamento de como o Brasil fará parte da revolução tecnológica gerada pela internet, “podem falar o que quiserem de previdência, de petróleo e de agricultura, pois todo o resto perde o sentido se não houver essa perspectiva da economia como ‘iconomia’ de ícone, de inteligência e criatividade”. Sem uma atenção para essa agenda, frisa, continuaremos a insistir em “velhos bordões”, como “Estado versus mercado, direita versus esquerda”.
O economista também reflete sobre as dificuldades do Brasil em se inserir na revolução digital e menciona, entre os entraves que dificultam esse processo, a “disputa macropolítica, que diz respeito aos recursos do Estado”, a “carência de pensar a economia numa perspectiva que seja da economia da informação, da educação e da cultura e não a economia dos recursos naturais, dos mercados ou do planejamento estatal”. Embora a transformação digital seja algo recente, pontua, “começamos a discutir esse novo modelo em 2002. Então estou falando de um diálogo que é discutido há duas décadas no Brasil”.
Gilson Schwartz | Foto: USP
Gilson Schwartz é graduado em Economia e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É pesquisador associado ao Núcleo de Política e Gestão Tecnológica - PGT da USP e integra o Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Diversitas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — O que significa falar em iconomização da vida?
Gilson Schwartz — Sou de uma geração que acompanhou o nascimento da internet e começou a trabalhar muito cedo com ela. Já nos primórdios da internet, nos anos 90 do século passado, uma das principais visões globais sobre o que seria a internet era a de que ela seria uma vida digital. Isso já expressava uma realidade que cresceu exponencialmente: as redes cresceram e continuam crescendo e o fenômeno da digitalização se tornou quase que sinônimo de vida real. A própria internet se tonou internet das coisas, ou seja, todas as coisas inanimadas fazem parte dessa rede supostamente inteligente, programada e altamente conectada. O outro lado da própria digitalização é que ela se tornou, em si mesma, invisível, e a realidade passa justamente a ser percebida por todos através dela, onde estão os ícones, os quais passam a organizar até mesmo a nossa forma de se vestir, de andar, e até de fazer uma entrevista pelo celular, como estamos fazendo agora. Ou seja, essa tecnologia permite mais mobilidade e uma série de inovações importantes.
O ponto comum de toda essa digitalização é que o digital passa a ser algo natural, ou seja, faz parte da natureza. A grande questão é quais são os ícones que você, seus amigos, sua família, sua comunidade usam, quais são os ícones que organizam a nossa vida digital. Nicholas Negroponte já alertou há muito tempo, e com muita razão, que essa vida digital constitui uma “iconomia”, ou seja, não é simplesmente um processo tecnológico de digitalização, mas trata-se de um processo simbólico em que surgem novas formas de produzir riqueza, valor, emprego. Até novas moedas estão surgindo. É isto que chamo de “iconomia”, uma economia dos ícones que corresponde à economia política da vida digital.
IHU On-Line — Como esses ícones digitais têm mudado a nossa vida? Alguns teóricos avaliam que a internet e a digitalização têm gerado mais controle na sociedade e outros ressaltam os aspectos positivos que surgiram com esse fenômeno. Qual é o seu balanço?
Gilson Schwartz — O contraponto entre controle ou poder, de um lado, e liberdade, de outro, não é novo e não é algo que se restringe à tecnologia digital. O contraponto entre controle e liberdade ou entre poder e criatividade, já é discutido na sociologia ocidental há muito tempo, pelo menos desde o final do feudalismo, quando se percebe uma cultura emergente, que coloca no lugar de Deus, no lugar dessa potência universal, eterna e magnânima, o ser humano com todas as suas certezas e incertezas. O projeto cartesiano funda a nossa capacidade de fazer ciência justamente a partir da independência e autonomia do sujeito. Esse projeto teve várias etapas ao longo da história e surgiu muito antes das máquinas de calcular. Mas foi mais intenso exatamente no período em que o capitalismo estava se estabelecendo em escala global, num período em que surgiu a contabilidade, surgiram as calculadoras e máquinas de calcular. Desde esse período, Leibniz e outros se perguntam sobre qual é a relação entre o sujeito que pensa e entre o mundo que está aí, o objeto, e sobre qual é a nossa capacidade de estabelecer relações entre o sujeito e o mundo através de instrumentos. Aí você pergunta que instrumentos são esses. Eles são, por exemplo, a própria imprensa e a escrita. Esses são, desde o início, instrumentos de informação que podem tanto servir ao controle, quanto a “sair do controle”, tanto à opressão quanto à emancipação. A mesma ferramenta pode ser usada para matar ou conscientizar; essa é uma decisão que diz respeito ao livre-arbítrio do ser humano.
Essa é a construção que está implícita também na internet, ou seja, o homem pode usar a internet para fazer bullying, para fazer discurso de ódio, ou pode usar a internet para mobilizar a comunidade a limpar um córrego ou ajudar na reforma de uma escola. O que se faz com essa ferramenta? Mais poder, controle e violência, ou mais liberdade, consciência e criatividade? É o livre-arbítrio dos indivíduos e das coletividades que decide. A tecnologia em si não tem o poder de tomar uma decisão; a tomada de decisão é humana. Por mais que a inteligência artificial esteja tomando decisões no lugar dos humanos ou induzindo o comportamento de humanos com a robotização, para que isso ocorra, alguém tem que programar esses robôs. Em última análise, se você está usando uma livraria digital, por exemplo, e o robô programou errado, você vai poder exercer seu direito de consumidor.
Evidentemente há o risco de as empresas que dominam essas tecnologias em grande escala utilizarem a própria tecnologia para aumentar o controle e a extração de lucros, a redução de custos e a violência contra o próprio consumidor. Não é por acaso que as maiores reclamações do serviço de defesa do consumidor, há muitos anos, são contra as grandes empresas da área de telecomunicação, de audiovisual, da cultura digital. A quantidade de escândalos mostrando a manipulação e o controle, praticamente sufocando os espaços efetivos de diálogo, de comunicação, é algo que preocupa todo mundo que observa a evolução da internet. Queremos, sim, mais liberdade, mais criatividade, mais emancipação, mas evidentemente essas coisas tendem a estar associadas a uma concentração de poder econômico, político e letal no sentido de permitir ou não às pessoas - dependendo da sua senha, do código, do ícone que se pode acessar - a sua própria sobrevivência física, que pode estar ameaçada.
IHU On-Line — Os algoritmos têm um potencial de poder, controle e vigilância maior ou mais grave do que outros instrumentos de poder usados no passado?
Gilson Schwartz — Não acho que seja mais grave. Ao contrário do passado, essa tecnologia atrai, uma parte do funcionamento dela, a exigência de letramento, de alfabetização. É uma nova forma de alfabetização no sentido de uma capacidade de poder lidar com as interfaces “iconômicas”. Estamos imersos num modo de consumo digital que traz em si mesmo quase que uma obrigatoriedade do indivíduo que consome de ter mais consciência do que significa aquele processo de consumo. Hoje, um usuário de um serviço de TV a cabo tem mais consciência do custo, do benefício, das tensões envolvidas naquele consumo, do que um consumidor de açúcar do século XVI. Há muito mais informações e, para poder consumir essas informações, é preciso estar informado, estar letrado, estar capacitado para tirar um proveito positivo disso e não ser apenas mais um numa manada que é explorada por um serviço de internet.
Numa companhia aérea tudo está na mão de algoritmos que foram desenhados com o objetivo de reduzir custos e aumentar lucros, e a ideia da companhia é que o consumidor resolva seus problemas na Justiça. Trata-se de uma ditadura da corporação que controla a informação, e o cidadão acaba sendo uma vítima de um jogo que ele é obrigado a jogar. Mas essa não é uma questão restrita à tecnologia. A tecnologia e a informação justamente têm o potencial de nos fazer tomar consciência dessas desigualdades que expressam as assimetrias e contradições que são próprias do capitalismo e da própria história da dominação dos homens uns sobre os outros. Mas essa nova tecnologia, ao contrário de praticamente todas as anteriores, traz a questão da regulação, da confiança, da habilidade para utilizá-la. Não é à toa que a União Europeia aprovou recentemente uma legislação muito mais rigorosa para que fique cada vez mais claro aos consumidores que compromissos, principalmente do ponto de vista da sua privacidade e intimidade, eles estão dispostos a assumir em troca dos benefícios de apertar um botão – que já é uma linguagem antiga –, de encostar o dedo num ícone e ter acesso a um filme no conforto da sua casa.
Toda a infraestrutura em volta desse “encostar no ícone” constitui uma economia política de dimensões globais, cujas leis de funcionamento estão sendo visualizadas e imaginadas, porque ao contrário das tecnologias anteriores, a característica principal da informação é exatamente a sua flexibilidade, plasticidade no sentido de que é possível, de fato, transformar um conjunto de informações em outro completamente novo. Ou seja, fazer inovação a partir da criatividade, da liberdade. Agora, se os sistemas empresariais, universitários e de governo estabelecem regras que obedecem a algoritmos cuja lógica não pode ser questionada ou só pode ser questionada na Justiça, com processos lentos e caros, aí estamos com um problema sério. Mas esse problema não é de ordem tecnológica, mas sim política.
IHU On-Line — O senhor já afirmou que se não quisermos ser levados pela internet, mas, ao contrário, levar a internet como algo que tem sentido econômico, a solução é política e isso significa garantir padrões mínimos de acesso livre à tecnologia. Estamos caminhando nessa direção ou não? A regulação da União Europeia sinaliza o que especificamente em relação a isso?
Gilson Schwartz — Como sabemos, a regulação surge depois dos fatos consumados e muitos prejuízos causados. Já é normal no caso das novas tecnologias que a velocidade com que ocorre a inovação, inclusive a invenção de novos serviços e modelos de negócios, é muito superior à agilidade dos sistemas de coordenação de leis. E, no caso do judiciário, nem se fala, porque o judiciário já está assoberbado com um atraso estrutural na promoção da justiça e com um impacto tecnológico que multiplica exponencialmente a incapacidade do próprio judiciário de correr atrás desse processo. Mas todos estão correndo atrás; ninguém está ignorando o fenômeno.
O que falta é a inserção da economia política nesse tipo de inovação. A economia política não pode ser discutida independentemente da dimensão cumulativa, ao contrário da ação tecnológica tradicional, que imagina uma realidade econômica autônoma, por exemplo, do mercado, com leis próprias de funcionamento. No caso da economia digital, da vida digital, essas distinções — mercado, Estado, público, privado, nacional, global, local — passam por uma redefinição, que é fruto da tecnologia, mas também de mudanças nas correlações de poder, que a própria comunicação provoca. Hoje um jovem se informa sobre política numa rede social. Então é outra dinâmica de formação da opinião pública, que balança a estrutura das instituições existentes. Portanto, estamos num período de transição.
No caso específico do Brasil, por ser um país cuja sociedade é altamente comunicativa, esses contrastes se manifestam com uma violência especial, tanto de quem tem poder, quanto de quem trafega no âmbito da Justiça. Felizmente vivemos há um bom tempo numa democracia e há, de fato, uma demanda por informação e educação muito grande do povo brasileiro. O Brasil é especialmente forte na propensão a consumir informação, mas ele é especialmente fraco porque o brasileiro está mal informado, mal educado, tem pouco acesso à cultura e à própria diversidade cultural, e isso só irá favorecer o discurso de ódio e preconceito. Na medida em que há uma desigualdade muito grande, essa contradição — muita demanda social por informação, educação e cultura versus mídia controlada, elitizada, cara e internacionalizada — deixa o país realmente em uma encruzilhada preocupante.
Mais da metade da população brasileira não tem ensino médio completo. Que tipo de internet e que tipo de “iconomia” vão se desenvolver aqui? Esta é minha preocupação: que prestemos mais atenção às cadeias associadas de fato à oferta e à demanda de informação, mas não acreditando que isso é questão de mercado, porque não é nem mercado e nem Estado, mas uma mistura entre as fronteiras para estabelecer novas fronteiras. E, nessas novas fronteiras, a exclusão é fatal.
IHU On-Line — Como está o investimento em “iconomia” no Brasil? Como a “iconomia” já modificou o desenvolvimento econômico brasileiro e como ela poderia favorecer novas mudanças no projeto desenvolvimentista brasileiro?
Gilson Schwartz — O tema é muito amplo, mas gostaria de trazer à nossa memória a obra daquele que é um dos grandes pensadores do desenvolvimento econômico: Celso Furtado. Ele tem um livro magistral, pequeno, que todo mundo pode acessar facilmente, chamado “O mito do desenvolvimento econômico”. Nessa obra ele alerta, com muita força, para a questão da cultura na definição do que seja desenvolvimento e no perigo que representa transplantar para países em desenvolvimento, com seus problemas sociais, territoriais, agrários etc., modelos de consumo, tais como aqueles alcançados por sociedades com industrialização avançada. Ao contrário de desenvolver, deverá aumentar o custo na periferia, porque uma minoria irá se apropriar — como já aconteceu no ciclo da cana-de-açúcar, no ciclo do ouro, entre outros. Isto é, os ciclos econômicos no Brasil sempre acabam batendo de frente com a possibilidade de desenvolvimento. Apesar das etapas sucessivas, a superação da dependência e a redução da desigualdade nunca são alcançadas.
Lembremos daquela frase que o ministro da ditadura, Delfim Netto, dizia: “Primeiro o bolo precisa crescer para depois dividir”. Imagina isso aplicado à educação, à inteligência e à cultura. Se deixamos a inteligência, a educação e a cultura crescerem muito nas mãos de poucos, não terá o que dividir depois. A temporalidade da concentração de poder intelectual do incentivo tecnológico e cultural não tem nada a ver com essa imagem física de um bolo que cresce e depois é dividido. Essa foi uma narrativa criada por um ministro da ditadura militar e implicou muito desenvolvimento, mas também aumentou brutalmente a destruição do ser humano brasileiro, da natureza e das cidades. Que desenvolvimento é esse? Celso Furtado alertava para isso, e ele não chegou a ver na sua plenitude essa desigualdade global de natureza digital, essa economia política dos ícones digitais.
É fundamental entender que o digital é uma dimensão “iconômica”, ou seja, só funciona se houver letramento, se houver capacidade intelectual. Ao contrário dos conceitos industriais do século passado e do XIX, onde o que conta ainda é a capacidade produtiva, que é um conceito ligado a uma engenharia da produção física, de coisas, nós agora estamos no domínio da engenharia da produção do imaterial, do intelectual, do intangível, do “iconômico”. Portanto, é preciso repensar nosso modelo de desenvolvimento.
Infelizmente — e eu tenho que dizer isso —, todos os candidatos disponíveis estão brigando, empunhando bandeiras, chavões e propostas que são apenas uma mirada vesga pelo espelho retrovisor. É um deserto de ideias sobre a maior revolução tecnológica da história da humanidade e ninguém é capaz de articular um modelo de desenvolvimento que coloque essa preeminência da “iconomia”, da cultura digital e da economia criativa; não há um único candidato capaz de colocar essa questão, já não digo em alta prioridade mas, pelo menos, na lista das suas metas. Vemos isso no momento em que o Museu Nacional é completamente destruído pelas chamas.
Não estamos vendo entre os líderes, inclusive não só partidários, mas líderes em vários setores, um chamado para essa que é a revolução central. Ao contrário, estamos colocando cortes de gastos na cultura, na educação, na ciência e tecnologia, imaginando que transplantar o modelo americano ou o modelo europeu para o Brasil resolveria os nossos problemas e chegaríamos ao primeiro mundo. É exatamente essa ilusão de uma temporalidade completamente fantástica que Celso Furtado denunciava e alertava para a necessidade de se pensar, a partir da cultura brasileira e latino-americana, que mundo queremos, que tecnologia queremos, como queremos aplicar a tecnologia.
Se o governo não tomar essas questões em mãos, podem falar o que quiserem de previdência, de petróleo e de agricultura, pois todo o resto perde o sentido se não houver essa perspectiva da economia como “iconomia” de ícone, de inteligência e criatividade. Fora disso, é apenas voltar para os velhos bordões e contrapontos: Estado versus mercado, direita versus esquerda, ou seja, coisas que eram prioritárias 200, 300 ou 400 anos depois do início do capitalismo, quando surgiram esses conceitos. É lamentável que ainda estejamos presos nessa narrativa e nessa semântica.
IHU On-Line — Por que o Brasil não despertou para essa revolução digital ainda? Quais são as dificuldades? Faltam projetos, falta conhecimento? Qual é o papel das universidades nesse processo?
Gilson Schwartz — É um fenômeno complexo. Mas, sem dúvida, existe uma disputa macropolítica, que diz respeito aos recursos do Estado, ou seja, é uma disputa acerca de onde esses recursos serão investidos. Essas políticas de direcionamento de distribuição de recursos vultosos para investimentos atenderam a uma lógica do século XIX, início do século XX; é um atraso na formulação de projetos de desenvolvimento. Celso Furtado deu esse alerta no final da vida dele.
Então, de um lado, ainda tem essa grande carência de pensar a economia numa perspectiva que seja da economia da informação, da educação e da cultura e não a economia dos recursos naturais, dos mercados ou do planejamento estatal. É uma economia de redes digitais, é outro passo. Embora isso seja recente, começamos a discutir esse novo modelo em 2002. Então estou falando de um diálogo que é discutido há duas décadas no Brasil.
Existe uma carência de formulação dessa perspectiva, uma espécie de ignorância voluntária, mas ela não é ingênua, é interessada, porque é um país excessivamente dominado por algumas grandes indústrias cuja matriz é completamente ultrapassada, pois estamos no país do caminhão, do carro, do petróleo, das grandes máquinas. E, claro, a grande disputa histórica que continua é a da agricultura, da agroindústria e da relação entre os grandes proprietários de terra, as grandes corporações e os interesses muito mais difusos, contraditórios e, muitas vezes, até instáveis das populações urbanas que dependem, quase que totalmente, em sua grande maioria, dos setores de serviços, que são uma tendência da economia, mas que têm uma dificuldade de formular e de se organizar muito maior.
É preciso voltar a se fazer uma análise de quais são os grandes setores da economia brasileira, quem controla esses setores, porque são esses grandes agentes que determinam o sentido da política econômica. Agora, falando em concentração e controle sobre as riquezas da nação, é evidente que, apesar de toda a democratização, em nenhum momento houve a vontade ou a força política para mexer no sistema financeiro. Tanto é que entra década e sai década, e não se discute o financiamento de longo prazo no Brasil, que é feito apenas pelo BNDES, porque o nosso sistema financeiro é totalmente concentrado nesta ciranda financeira da dívida pública. Enquanto isso, nós estamos, apesar de terem se estabilizado os preços e criado o Plano Real — isso foi em 1994, um quarto de século atrás — discutindo política de curto prazo há 25 anos. Não se discute o que queremos para o Brasil no longo prazo, que papel e que peso terão os bancos, a indústria automobilística, a agricultura, que tipo de agricultura, que tipo de alimento, que tipo de animal queremos comer, criados em quais condições.
Neste momento há um silêncio. O Brasil esqueceu o que ele seria. Antigamente se dizia “o Brasil é o país do futuro” e hoje o futuro saiu até mesmo da pauta política. As discussões estão de olho no retrovisor, usando a linguagem, a problemática e as metodologias do século passado.
IHU On-Line — Pode nos dar alguns exemplos de em que tipos de projetos de tecnologia e de inteligência o Brasil deveria investir em se tratando de “iconomia”?
Gilson Schwartz — Você mencionou as universidades anteriormente. O que observamos hoje, nos países mais avançados, é a mobilização do conhecimento científico e tecnológico. Especialmente nas Ciências Sociais e nas Humanidades há uma iniciativa para identificar novas agendas, que não sejam estritamente as agendas corporativas, mesmo porque algumas dessas grandes corporações, por exemplo, que atuam na área de minérios ou energia, terão que ser controladas, caso contrário a extensão da vida no planeta estará colocada num horizonte cada vez mais imprevisível.
A integração entre universidade, o debate, a pesquisa, a criatividade e a inovação é o que vemos em muitos países. O Brasil precisaria começar repensando a infraestrutura educacional na universidade. Quantas vezes se falou que o importante é a educação. Então, vamos detalhar exatamente que modelo é esse, que educação é essa, que não seja simplesmente transferir verba ou criar novas universidades, mas que também integre essas universidades aos desafios contemporâneos da sociedade e até da humanidade.
IHU On-Line — O senhor diz que a internet provocou uma abertura sem precedentes aos meios de produção, conhecimento e informação e que ela tem gerado uma transformação importante na democratização do conhecimento. Apesar do avanço tecnológico, alguns pesquisadores chamam atenção para os riscos de desemprego no futuro justamente por conta desse desenvolvimento tecnológico. Considerando o desenvolvimento das tecnologias até esse momento, diria que esse risco é real?
Gilson Schwartz — As pesquisas mais recentes indicam que ainda há um enorme potencial de surgimento de novas habilidades, profissões e modelos de geração de emprego e renda. Sou bastante otimista com relação a essa emergência de oportunidades, mas também realista ou até pessimista quanto à velocidade em que o acesso às oportunidades é facilitado para as populações mais pobres, em territórios vulneráveis de sociedades que sufocam a esfera pública.
IHU On-Line — Como o senhor avalia a crise no Vale do Silício? Por que há um êxodo tecnológico na região?
Gilson Schwartz — Começou há dois anos um ajuste brutal que é representado pela eleição de Trump. O protecionismo afeta a própria capacidade do "Vale" de exportar seus modelos — veja por exemplo a reação europeia, regulando (e multando) de forma cada vez mais expressiva as grandes corporações norte-americanas que atuam na "iconomia" (Google, Amazon, Microsoft etc.). Há também uma relativa expansão do modelo "startupista" em que outros países passam a oferecer condições, inclusive subsídios, para as "start ups", em geral em territórios irrigados pela produção de grandes universidades. A própria crise de 2008 ainda está sendo digerida por governos, empresas e trabalhadores/consumidores, levando a cenários de maior cautela dos investidores e mesmo a novas investidas no campo das fusões e aquisições que geram esses gigantes corporativos que perdem a capacidade de inovar se não comprarem continuamente as pequenas empresas de fato inovadoras. Esse conjunto de fatores abala algumas importantes vantagens competitivas do "Vale", embora haja uma forte resposta do governo dos EUA por meio de gastos militares.
Desde o início, a internet é fruto do investimento público dos EUA no complexo industrial-militar. Daí o risco de vermos a internet ficar muito parecida com o "big brother", não o da Globo, mas o clássico de Orwell, que alertava para os perigos do totalitarismo e dos populismos autoritários, com a morte da política democrática e a exclusão social como principais marcas numa época sem esperanças.
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O Brasil e o deserto de ideias sobre a maior revolução tecnológica da história da humanidade. Entrevista especial com Gilson Schwartz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU