Por: Patricia Fachin | Tradução: Moisés Sbardelotto | 01 Novembro 2017
Quando surgiu, a economia do compartilhamento, que tem origem em plataformas da internet que possibilitam trocas no mundo real, “parecia progressista”, pois iria permitir “trocas e comunidades ponto a ponto como uma alternativa às corporações, um futuro mais sustentável com o uso dos nossos carros e posses de forma mais efetiva, e uma nova era de oportunidades econômicas para as pessoas como ‘microempreendedoras’”, diz Tom Slee à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Entretanto, adverte, a “economia do compartilhamento está fornecendo o contrário disso”, e serviços que surgiram com essa proposta compartilhada, como o Uber, estão “minando as redes de segurança social fornecidas pelos padrões de emprego, e o Airbnb está corroendo as comunidades em centros turísticos”.
Autor de Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, publicado recentemente pela Editora Elefante, Slee afirma que “há alguns anos parecia haver a crença de que a internet daria origem a uma terceira forma de organização: já temos mercados e Estados, e agora teríamos redes. Mas, embora as comunidades não comerciais como a Wikipédia fossem a inspiração para esse modelo, a Wikipédia é agora uma exceção: é o único site não comercial no ‘Top 50’ do mundo. A retórica do trabalho livre impulsionado pela paixão ainda persiste, mas crescentemente não ‘bate’ com a realidade altamente comercial”.
Tom Slee | Foto: Reprodução / Twitter
Tom Slee é doutor em Química pela McMaster University, em Hamilton, Ontário, no Canadá, e tem uma longa carreira na indústria de software. Atualmente estuda os problemas provocados pelas corporações do Vale do Silício, na Califórnia. Também é autor de No One Makes You Shop at Wal-Mart (Ninguém te obriga a comprar no Walmart), pela editora Between the Lines (2006). Mantém um site próprio.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Pode nos explicar em que contexto e por que surgiu a chamada economia do compartilhamento?
Tom Slee – A economia do compartilhamento são plataformas de internet, aplicadas a trocas do mundo real. Antes de poderem decolar, elas precisavam de grandes partes do mundo para ter acesso à banda larga, a aplicativos para smartphones (o que realmente só começou em 2008) e para que as pessoas se sentissem confortáveis ao pagar com cartão de crédito pela internet. A disponibilidade de plataformas de computação em nuvem, como a Amazon Web Services, também foi um impulso. Então, a tecnologia para esse tipo de empresa estava pronta em torno de 2009 ou 2010, e quase imediatamente surgiu um ecossistema de empresas de economia do compartilhamento, incluindo serviços domésticos, entregas, empréstimos ponto a ponto [peer-to-peer loans] e, claro, o Uber e o Airbnb.
IHU On-Line – Uma das suas críticas à economia compartilhada se deve ao fato de que as promessas relativas a ela não foram cumpridas, ao contrário, o que se assiste é uma apropriação corporativa da energia coletiva, com investimentos bilionários. Pode nos explicar melhor essa ideia? Quais eram essas promessas e por que elas não foram cumpridas?
Tom Slee – Nos primeiros dias, grande parte da linguagem usada em torno da economia do compartilhamento parecia progressista: trocas e comunidades ponto a ponto como uma alternativa às corporações, um futuro mais sustentável com o uso dos nossos carros e posses de forma mais efetiva, e uma nova era de oportunidades econômicas para as pessoas como “microempreendedoras”.
Mas agora temos o Uber, que é maior e menos responsável do que qualquer companhia de táxi. Ele arrecadou mais de 11 bilhões de dólares, incluindo financiamentos do governo da Arábia Saudita e de fundos especiais disponíveis apenas para indivíduos ricos. Ele opera a sua plataforma de maneira cada vez mais intrusiva e controladora. E, por ser uma empresa privada, não há o mínimo de responsabilização. Em vez de um futuro progressista, eles estão buscando construir um negócio monopolista e antidemocrático, que não respeita o fato de que países diferentes têm regras diferentes. E isso sem contar a série de escândalos que atormentaram a empresa este ano, enquanto ela luta contra denúncias convincentes de sexismo desenfreado, furto de propriedade intelectual, fraude de funcionários do governo e atitudes descuidadas em relação à privacidade.
Outras empresas têm sido menos terríveis, mas, na prática, elas buscam oferecer os mais severos serviços desregulamentados do livre mercado para partes das nossas vidas que anteriormente estavam protegidas.
IHU On-Line – Em seu livro, o senhor diz que “a economia do compartilhamento é um movimento vertiginoso do Vale do Silício para fazer avançar a desregulação sobre todas as áreas de nossas vidas, desafiando as regras democráticas e remodelando as cidades”. A partir disso, de que modo considera que a economia do compartilhamento desregula todas as áreas de nossas vidas, desafia as regras democráticas e remodela as cidades?
Tom Slee – Quando lhes convém, as empresas da economia do compartilhamento afirmam que o trabalho nas suas plataformas não é um trabalho de verdade: que as acomodações do Airbnb não deveriam ter que seguir as regras dos hotéis, e que o Uber não deveria seguir as regras dos táxis. Eles montaram seus negócios de modo a ganhar dinheiro sobre todas as trocas nas suas plataformas, mas afirmam que não são responsáveis quando algo dá errado.
Então, ambos, Uber e Airbnb, rejeitam afirmações de que eles são responsáveis por fornecer um serviço livre de discriminação: essa é uma regra que eles não querem seguir. Eles evitam pagar impostos sobre os seus negócios fora dos Estados Unidos e resistem à aplicação de leis de emprego. Muitos dos ganhos para os trabalhadores conquistados por sindicatos e outros movimentos progressistas estão sob a ameaça desse novo tipo de modelo de emprego.
IHU On-Line – Por quais razões o senhor tem se manifestado contrário à economia do compartilhamento?
Tom Slee – Eu cresci no Reino Unido, em uma família do Partido Trabalhista. Já falamos sobre a linguagem que muitos promotores da economia do compartilhamento usam: de comunidade, de sociedades abertas, de sustentabilidade, de igualdade. Essas são palavras com as quais eu posso me identificar, mas, quanto mais eu olho, mais parece que a economia do compartilhamento está fornecendo o contrário disso. O Uber está minando as redes de segurança social fornecidas pelos padrões de emprego, e o Airbnb está corroendo as comunidades em centros turísticos.
IHU On-Line – Em relação ao Uber e ao Airbnb, é possível dizer que eles apresentam vantagens e desvantagens? O que explica, de outro lado, o sucesso desses tipos de serviços?
Tom Slee – Respondendo a sua última pergunta por primeiro: todos nós desempenhamos vários papéis nas nossas vidas: consumidores, trabalhadores e cidadãos, para nomear apenas três. Alguns serviços da economia do compartilhamento têm um verdadeiro apelo ao nosso “eu” consumidor, mas com um custo para o nosso “eu” cidadão e trabalhador. Definitivamente, havia uma experiência do tipo “uau!” que vinha com a novidade do Airbnb e particularmente do Uber.
Mas há um coro cada vez mais alto que questiona se a tecnologia realmente está fazendo uma grande diferença do ponto de vista dos negócios, e se a economia do compartilhamento tem um futuro financeiramente sólido. O Uber está perdendo mais de um bilhão de dólares por ano. As empresas de serviços domésticos como TaskRabbit ou HomeAway ou quebraram, ou foram vendidas (a Ikea acaba de comprar a TaskRabbit), ou não estão crescendo muito rápido. Empresas de entrega, como a Deliveroo e a Instacart, estão fazendo malabarismos com os modelos de negócios em busca de lucro, mas não está claro se elas encontraram um caminho confiável para ganhar dinheiro. As empresas de empréstimos ponto a ponto tornaram-se muito mais instituições financeiras regulares. Até mesmo o Airbnb está buscando e pesquisando formas para justificar a sua avaliação maciça, sem sinais reais de sucesso.
Muitos mercados da internet tornaram-se “o-vencedor-leva-tudo”, por causa de efeitos em rede. Os investidores do Uber e do Airbnb estão apostando que podem fazer dinheiro ganhando em grande escala, em todo o mundo. Mas outra parte do seu apelo é a capacidade de evitar custos, como eu já disse. Esses dois fatores contribuíram para o sucesso do Uber e do Airbnb até agora, mas não está claro se é uma vantagem sustentável.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta a chegada do trabalho a partir das empresas-aplicativos? Trata-se de uma nova configuração da realidade do trabalho que anuncia o esgotamento da sociedade fordista?
Tom Slee – Se as empresas-aplicativos chegarem ao seu objetivo, então realmente poderemos ver uma reconfiguração que trocará empregos bem remunerados por benefícios para empregos precários sem nenhum compromisso dos empregadores com os seus empregados. Mas estou otimista de que, em muitos países, a base dos direitos e padrões de emprego é forte o suficiente para resistir aos esforços das empresas-aplicativos. É importante lembrar que essa “nova configuração” não é uma inevitabilidade tecnológica: é apenas uma escolha de modelo de negócios, e não precisamos aceitá-la.
IHU On-Line – Quem é o trabalhador das novas plataformas digitais, qual é o seu perfil?
Tom Slee – Depende da plataforma, e eu admito que não estou familiarizado com a situação no Brasil. Prefiro não tentar responder a essa pergunta para um público brasileiro.
IHU On-Line – Há alguma possibilidade de regulamentação das relações de trabalho nas empresas-aplicativos como Uber?
Tom Slee – Definitivamente há uma possibilidade. Cada vez mais, vemos que os países podem regular o comércio na internet. Ainda em 2002, uma das primeiras disputas foi sobre o Yahoo!, que estava vendendo acessórios nazistas na França, onde isso é ilegal. O Yahoo! começou dizendo que era impossível estabelecer regras especiais para a França, mas adivinhe? O governo francês manteve-se firme e indicou que o Yahoo! já havia ajustado a sua publicidade para países diferentes, então eles também poderiam ajustar os itens à venda.
Outro exemplo é que o Airbnb resistiu ao fornecimento de dados detalhados sobre os seus anfitriões, porque isso abre a possibilidade de uma regulamentação efetiva sobre eles. Mas, recentemente, New Orleans conseguiu que o Airbnb fornecesse essa informação. Se os governos forem suficientemente assertivos, pode-se fazer com que as regulamentações trabalhistas e outras definitivamente sejam cumpridas.
IHU On-Line – Pensando dialeticamente, há sinais, possibilidades de algum tipo de emancipação nesse tipo de trabalho?
Tom Slee – Sim, acho que existe. As novas tecnologias muitas vezes oferecem uma mistura de promessa e ameaça, e a economia do compartilhamento não é diferente. Eu espero que algumas das inovações tecnológicas possam se manter, mas para que a mudança dos modelos de negócios seja mais aceitável. Estão ocorrendo experimentações em cooperativas e outras estruturas de propriedade, e será realmente interessante ver se elas vão decolar.
IHU On-Line – Quais são hoje as principais plataformas que surgiram com uma proposta de economia compartilhada e se transformaram em empresa-plataforma? Por que, na sua avaliação, houve esse processo de transição de modo que essas inciativas se transformassem em empresas?
Tom Slee – Não há dúvida de que as maiores são o Uber e o Airbnb, mas a empresa de espaço compartilhado WeWork também começou como uma empresa de “economia compartilhada” e vem crescendo rapidamente, e algumas empresas financeiras como o Lending Club começaram como empresas de crédito ponto a ponto.
Eu acho que a transição aconteceu por causa de uma crença cada vez mais autoenganosa no Vale do Silício de que as empresas multibilionárias podem ser um veículo confiável para as mudanças sociais, desde que sejam administradas pelas pessoas certas. É um ponto de vista que ignora os incentivos em curso para as grandes empresas, onde eles devem agir para manter e estender o controle sobre os seus mercados.
Há alguns anos, parecia haver a crença de que a internet daria origem a uma terceira forma de organização: já temos mercados e Estados, e agora teríamos redes. Mas, embora as comunidades não comerciais como a Wikipédia fossem a inspiração para esse modelo, a Wikipédia é agora uma exceção: é o único site não comercial no “Top 50” do mundo. A retórica do trabalho livre impulsionado pela paixão ainda persiste, mas crescentemente não “bate” com a realidade altamente comercial.
IHU On-Line – Quais são as empresas-plataformas mais rentáveis nos dias de hoje e como elas atuam?
Tom Slee – Para encontrar empresas-aplicativos realmente rentáveis, você precisa olhar para além do modelo da economia do compartilhamento. Google e Facebook são empresas de publicidade e são altamente rentáveis. A Amazon e a Apple são empresas de varejo mais tradicionais, que operam em uma escala enorme, embora o que elas vendam seja surpreendente às vezes. E existem muitas outras empresas-aplicativos bem-sucedidas e rentáveis, mas poucas empresas da economia do compartilhamento estão nesse clube.
IHU On-Line – Diante do avanço das tecnologias e da possibilidade de muitas pessoas ficarem desempregadas, alguns pesquisadores têm sugerido um novo tipo de tributação sobre robôs, por exemplo, para garantir uma renda mínima a todos os cidadãos. Considerando o cenário da economia do compartilhamento, como o senhor vê essa possibilidade de distribuição de uma renda mínima?
Tom Slee – A ideia de uma renda básica é estranha, porque começou como uma ideia progressista, ou de esquerda, como uma extensão do estado de bem-estar e da rede de segurança social. Ela foi adotada por muitos no Vale do Silício, mas com uma inclinação diferente.
Um dos desafios para uma renda básica é que ela requer um nível substancial de tributação para apoiá-la, e não está claro se o Vale do Silício está interessado em pagar esses impostos, seja no nível individual, seja no nível corporativo. Às vezes, parece que eles não estão muito interessados no negócio mundano de pagar as pessoas que trabalham nas suas plataformas, e assim eles querem que, em vez disso, o governo o faça.
Eu acho que a ideia da renda básica tem um futuro promissor e espero que algumas das ideias atuais sejam levadas adiante. Mas espero que esses governos que a estão experimentando não escutem muito o Vale do Silício e, em vez disso, aceitem que a tributação é necessária para a inovação social.
A tributação sobre robôs, para mim, não tem sentido. Muitas vezes, há uma tendência no mundo da tecnologia para afirmar que tudo fica diferente com cada nova invenção, mas eu acho que, repetidamente, constatamos que os nossos princípios econômicos e legais atuais geralmente podem ser estendidos para cobrir essas novas invenções. Eu acho que este será o caso dos robôs: no fim das contas, eles são máquinas, e alguém é o dono delas.
IHU On-Line – O que seria de fato um processo de cooperação social viável para os dias de hoje, que não incorresse nesse modelo de plataforma-empresa? É possível construir um sistema cooperativo sem a interferência do capital?
Tom Slee – Existem algumas experiências com cooperativas e iniciativas de menor escala, e eu acho que são promissoras. É sempre difícil prever o futuro, mas o importante é que a experimentação possa continuar. Ironicamente, a presença de empresas-plataformas massivas tende a inibir a experimentação por parte de novos participantes, de modo que reduzir o poder e a influência das grandes empresas-plataformas (Amazon, Google e outras) pode promover a inovação.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Tom Slee – Talvez eu possa dizer uma palavra sobre os sistemas de classificação usados nas plataformas de economia de compartilhamento, e cada vez mais em outros lugares. Certamente, aqui no Canadá, parece que me pedem para avaliar os lugares que visitei, cada empregado dos serviços com os quais eu interajo, e assim por diante. Mas é importante saber que não há nenhuma prova de que as classificações realmente correspondam à qualidade ou que elas cumpram o trabalho de fazer com que as pessoas se comportem bem. A maioria de nós dá avaliações altas, mesmo que estejamos menos do que felizes, por cortesia ou por um desejo de evitar discordâncias desagradáveis. Se estamos infelizes, muitas pessoas reagem simplesmente não dando uma avaliação. Usar os sistemas de classificação para disciplinar ou até mesmo para contratar trabalhadores é uma prática não confiável e injusta, e eu espero que seja uma moda que passe rapidamente, à medida que as pessoas percebam o quanto tais sistemas são inúteis.
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A economia do compartilhamento não ‘bate’ com a realidade altamente comercial. Entrevista especial com Tom Slee - Instituto Humanitas Unisinos - IHU