Por: Lara Ely | Edição: João Vitor Santos | 04 Fevereiro 2018
Pode-se considerar já como lugar comum a afirmação de que as redes sociais, marca dessa última geração da internet, imprimem mudanças substanciais na sociedade. Entretanto, para Massimo Di Felice, sociólogo, professor da Universidade de São Paulo – USP, essas novas tecnologias impõem “não apenas um conjunto de transformações sociais, culturais, econômicas ou políticas, mas, também, uma alteração epistêmica”. Para ele, implica noutra forma não só de adquirir conhecimento, mas também de atribuir outros significados a ele. “Me parece que as redes digitais, sobretudo as de última geração, apresentam-se, enquanto conectam diversas superfícies (internet of things) permitindo uma interação conectiva, como uma tecnologia biomimética. Isto é, como uma arquitetura informativa que imita os processos de redes informativas da natureza”, completa.
O professor detalha essa transformação usando a metáfora da floresta. “A floresta é uma rede de redes conectadas. Ao andar na floresta passamos a habitá-la, a ser parte dela, mas também ela passa a nos habitar”, aponta. “Da mesma maneira, ao conectarmos a uma rede digital, passamos a ser parte dela e ela passa a nos habitar, modificando nosso comportamento, trazendo assunto e nos tornando dependentes de relações e database”, acrescenta. Assim, nos portamos tanto como usuários que absorvem a informação como também geradores de mais informação. É isso, segundo seus estudos, que possibilita a articulação e constituição de redes de mobilização que, inclusive, borram os ambientes virtuais e não virtuais. “As ecologias infomateriais do Pokémon Go, as formas de sexualidade e de sentir on-line, os movimentos conectados, são exemplos de um novo e particular tipo de ação que acontece entre infossuperfícies e infomaterialidades conectadas”, exemplifica.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Di Felice ainda analisa movimentos como o 15 M na Espanha, o da plataforma Rousseau na Itália, o La Red na Argentina e mesmo as Jornadas de Junho no Brasil sob essa perspectiva. “A expressão Net-ativismo está a indicar um particular tipo de interação infomaterial, resultado do processo de digitalização e das múltiplas interações transorgânicas por este possibilitadas”. Ainda sobre o Brasil, chama atenção para como esse Net-ativismo vai se engendrando no corpo social, levando suas lógicas até entre povos originais e suas lutas, como o caso de demarcações de terras. Para ele, esse é “um novo tipo de protagonismo que, depois de séculos de ‘tutela’ e de apartheid social, os tornam capazes, através da tecnologia e das redes de conexões, de poder fazer alianças, projetos, e de tecer suas próprias relações, sem passar pelos seus históricos intermediários”.
Massimo Di Felice | Foto: Arquivo pessoal
Massimo Di Felice possui graduação em Sociologia pela Università degli Studi La Sapienza, doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo – USP e pós-doutorado em Sociologia pela Universidade Paris Descartes V, Sorbonne. É professor da USP e professor visitante na Università Roma III (Itália), na Université Paul-Valéry Montpellier III (França) e na Universidade Lusófona (Portugal). É autor de Net-Ativismo. Da ação social para o ato conectivo (São Paulo: Paulus, 2017).
Entre outras publicações, destacamos Redes digitais e sustentabilidade - as interações com o meio ambiente na era da informação (São Paulo: Annablume, 2012), Paesaggi Post-urbani: la fine dell`esperienza urbana e le forma comunicative dell´abitare (Milão: Bevivino, 2010), Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (São Paulo: Annablume, 2009) e Do público para as redes (São Caetano do Sul: Difusão, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Da ação social para o ato conectivo. O que vem primeiro? As pessoas se conectam e então agem em prol das causas coletivas, ou se conectam justamente para dar vazão às demandas sociais?
Massimo Di Felice – O subtítulo do meu último livro Net-ativismo é exatamente da ação social para o ato conectivo. O livro é o resultado de uma ampla pesquisa internacional que se estendeu em diversas etapas por seis anos. O objetivo foi tentar analisar e decifrar a qualidade das interações que acontecem em redes e em ecologias conectadas. Tal estudo sucede a pesquisa sobre as formas comunicativas do habitar, relatada no livro Paisagens pós-urbanas, o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar, editado no Brasil pela editora Annablume e traduzido, também, em diversos idiomas.
Se neste primeiro estudo o objetivo foi entender as transformações do habitar a partir do advento das arquiteturas digitais e dos processos de digitalização do território, neste segundo a pesquisa concentra-se na análise da qualidade da ação e das interações que acontecem em redes conectadas e em infoecologias. Depois da imersão nos novos significados interativos do habitar, adverti para a exigência de aprofundar a qualidade e o significado das interações e da ação em contextos conectivos e digitalizados. Depois de ter estudado o movimento neozapatista que reunia etnias indígenas descendentes do povo Maya que através da conexão à internet criaram uma forma de conflitualidade planetária e inovadora, decidi realizar uma pesquisa comparada em quatro países com o objetivo de entender a ecologia das interações net-ativistas. Isto é, o lugar destas atuações e seus dinamismos.
A pesquisa, que obteve o apoio da Fapesp e que durou quatro anos, estendendo-se, além do Brasil, para França (em colaboração com o Ceaq do prof. M. Maffesoli), Portugal (em colaboração com a Universidade Nova de Lisboa, prof. J. Bragança de Miranda) e Itália (em colaboração com a Universidade Roma III, prof. Mario Pireddu), analisou os principais movimentos destes países, chegando à conclusão de que, embora em contextos, culturas e situações políticas muito diferentes, existiam alguns elementos em comum. Em primeiro lugar, todos estes movimentos nasceram na internet e somente sucessivamente ganharam os espaços públicos, as praças e as ruas. Mas mesmo durante a deslocação ou a presença destes nos espaços físicos, continuavam conectados e presentes on-line, postando conteúdo, vídeo, imagens e mantendo um debate aberto e continuado.
Identificamos assim a originalidade de suas ecologias que não poderia ser narrada nem como virtual, nem como presencial ou material. Os fluxos informativos atravessavam a forma de organização, as atuações, os debates e todos os aspectos destes diversos movimentos. A complexidade de tais interações conectadas implicava a necessidade de uma nova teoria da ação que apresentamos com o nome de net-ativismo.
IHU On-Line – Esta sua última obra apresenta uma análise profunda das expressões de um novo tipo de ação social, o net-ativismo, conjunto de interações diversas e complexas que vêm marcando a era digital. Como você ilustraria essas expressões?
Massimo Di Felice – A teoria da ação social, em suas diversas conjugações, de M. Weber, T. Parsons, V. Pareto, J. Habermas, etc. baseia-se em um postulado comum: a atribuição da ação ao indivíduo e ao sujeito humano. Mesmo se gerado por um cálculo racional ou consequência de impulsos instintivos, esta vincula-se sempre, no âmbito da teoria das ciências sociais, ao sujeito-ator, isto é, ao anthropos portador e artífice de seu agir. Uma primeira crítica a esta ideia antropomórfica da ação, a encontramos em M. Serres e, em específico, na sua ideia de contrato natural, contraposta àquela de contrato social.
Para o filósofo francês, de fato, seria necessário superar a ideia moderna e iluminista da contratualidade social que limitava a morfologia do social aos humanos e substituí-la por uma nova contratualidade aberta aos elementos naturais e aos não humanos. Será o seu discípulo B. Latour, como é conhecido, a levar para frente, junto com M. Callon e J. Law, a crítica à ideia da ação antropomórfica e sujeito-cêntrica, segundo escrito na Teoria Ator Rede (TAR). Nesta, Latour propõe a substituição do conceito de ator por aquele de “actante”. Se o primeiro refere-se, obviamente, ao sujeito humano, o segundo, para o pensador francês, indicaria qualquer tipo de entidade, humana e não humana, que intervém e contribui para a realização de uma ação.
Embora, sem dúvida, a TAR tenha tido o mérito de tornar problemática e mais complexa a ideia da ação, oferecendo à mesma uma dimensão agregativa e reticular, todavia, ainda não consegue expressar, na minha opinião, a qualidade da dimensão conectiva e digital das interações em redes infomateriais. Sendo inserida no âmbito das ciências sociais, embora de forma crítica, a TAR desconsidera por inteiro a dimensão conectiva e informativa que, traduzindo cada entidade em código binário e dados, através das formas de processamentos, altera a ecologia das interações e, ao mesmo tempo, modifica a forma originária das diversas entidades.
Em outros termos, o que as redes digitais conectivas de última geração (internet of things, big data, internet ecológica etc) produzem é um processo transubstanciativo que em seguida da transformação de tudo em dados, conecta e hibridiza superfícies diversas. Mais que um processo agregativo, externo, visual e social, a digitalização produz uma alteração, muitas vezes, interna e não visível, das superfícies, produzindo um tipo de ação que modifica a própria substância.
Exemplos destes particulares tipos de ação são as biotecnologias, que alteram as sequências dos códigos da matéria e, portanto, configuram-se não como uma ação de deslocação em direção a um ponto, mas como uma interação transubstanciativa. Outro exemplo vem das ecologias conectivas e reticulares das interações net-ativistas que, como disse, nascem on-line, conquistam os espaços físicos, mas continuam conectadas, criando uma ecologia infomaterial emergente, enquanto construída pelo processo de digitalização e pelas interações entre as diversas entidades.
Portanto, a expressão Net-ativismo está a indicar um particular tipo de interação infomaterial, resultado do processo de digitalização e das múltiplas interações transorgânicas por este possibilitadas. As ecologias infomateriais do Pokémon Go, as formas de sexualidade e de sentir on-line, os movimentos conectados, são exemplos de um novo e particular tipo de ação que acontece entre infossuperfícies e infomaterialidades conectadas. Isto é, uma ação sim em redes, mas digitalizadas e, portanto, não apenas agregativas ou associativas, mas transubstanciativas e conectivas.
IHU On-Line – O senhor compara as interações dos indivíduos das redes sociais às relações ecológicas dentro da floresta. Qual a similaridade?
Massimo Di Felice – As redes e as tecnologias digitais nos impõem não apenas um conjunto de transformações sociais, culturais, econômicas ou políticas, mas, também, uma alteração epistêmica, isto é, uma transformação não apenas da forma de adquirir conhecimento, mas de seu mesmo significado. A forma rede apresenta-se não como uma arquitetura externa, observável, mas como um ambiente a ser habitado, em cujo âmbito, através de sua dimensão conectiva, torna-se possível a interação e a comunicação.
À diferença da média, entendida na tradição dos estudos de comunicação como “meio” ou “canal”, ou de forma ainda pior, como “instrumento” ou “ferramentas”, as redes digitais não transferem apenas conteúdos, mas criam um ambiente de interação que pode ser ativado somente se habitado, isto é, somente fazendo parte e estando a este conectado. Me parece que as redes digitais, sobretudo as de última geração, apresentam-se, enquanto conectam diversas superfícies (internet of things) permitindo uma interação conectiva, como uma tecnologia biomimética. Isto é, como uma arquitetura informativa que imita os processos de redes informativas da natureza.
A rigor as redes digitais funcionam como o ciclo trófico. Elas são uma rede de informações que conectam e combinam dados. Se a própria matéria, seguindo o que nos diz a química e a física subatômica, pode ser considerada um conjunto de redes de dados e informações, a forma para pensar e descrever as redes digitais deve ser algo que vai além da dimensão comunicativa. No livro Net-ativismo aproximo o conjunto de rede de redes informativas ao ecossistema da floresta tropical. A ideia surgiu quando estava andando numa trilha na floresta. Para quem fez esta experiência, acredito que possa ser fácil entender como, ao deslocar-se na mata, experimenta-se a condição de uma “abertura”, isto é, de um andar não somente em direção ao externo, mas também de ser percorrido. Ou seja, de ser atravessado por milhares de mosquitos que continuam a beber nosso sangue, de ser percorrido também por diversos tipos de mata que nos acariciam ou nos golpeiam.
Numa floresta tudo não só está conectado, mas tudo se alimenta e se desloca no outro, não existe externalidade, cada vegetal, cada animal, cada inseto se alimenta da ninfa vital do sangue e da matéria do outro. A floresta é uma rede de redes conectadas. Ao andar na floresta passamos a habitá-la e a ser parte dela, mas também ela passa a nos habitar, como demonstra o princípio da imunidade, já abordado pelo filósofo italiano R. Esposito. Da mesma maneira, ao conectarmos a uma rede digital passamos a ser parte dela e ela passa a nos habitar, modificando nosso comportamento, trazendo assunto e nos tornando dependentes de relações e database. Daí a aproximação das redes digitais com as florestas e os ecossistemas vivos, onde, como no ciclo trófico, tudo circula como informação e tudo se conecta.
IHU On-Line – Tem a ver com o conceito de ecologia de interação transorgânica? O que o conceito define?
Massimo Di Felice – Me parece que as ciências sociais não possuem no seu âmbito conceitos suficientemente complexos para abordar a dimensão conectiva. Esta limita-se a narrar a dimensão relacional e associativa. Mesmo na perspectiva da TAR o foco é a dimensão agregativa e, mais uma vez, a forma social das relações.
No livro Net-ativismo encontra-se um capítulo no qual se aborda em específico a não correspondência entre a forma rede da TAR e aquelas digitais e conectivas. Acredito que seja preciso buscar em outras disciplinas conceitos mais complexos e interativos de redes. E. Haeckel, idealizador do termo ecologia, define a Biologia como a ciência que estuda as relações entre o ambiente, os vegetais e os organismos vivos. Onde por relações deve-se entender não somente as interações comportamentais, mas também aquelas nutritivas, atmosféricas, da luz e da energia etc.
Na perspectiva ecológica, cada entidade é composta e habitada pelas outras. Num ecossistema, assim como na biosfera, não existe externalidade. Portanto, a epistemologia reticular nos propõe um nível maior de complexidade que não se limita ao conjunto agregativo de relações entre entidades e organismos diferentes, mas que alcança a dimensão da composição e da estrutura de cada um destes, identificando um ecossistema, mais do que como o conjunto de diversas espécies animais, vegetais etc., como o conjunto de redes de energias e de fluxos.
Portanto, ao lado de uma dimensão agregativa, as Ciências Biológicas, seja na concepção da ecologia, seja nos estudos dos ecossistemas, nos leva para um nível compositivo no qual se articulam composições a nível molecular e não visível. O processo de digitalização, além de construir um formato parecido com aquele da complexidade ecoinformativa, assume mais um outro nível, que é o nível do processo de informatização, baseado no princípio de transformação dos territórios, das espécies, das coisas, dos vegetais etc, em dados transferíveis e combináveis.
Como nas interações desenvolvidas pelas biotecnologias, baseadas não nas agregações de entidades diversas, mas na alteração das sequências informativas dos códigos (DNA), as alterações acontecem a nível da estrutura informativa através de processos de recombinação dos dados. A arquitetura dos códigos binários permite a combinação e a hibridização de todas as superfícies, produzindo formas transorgânicas e transespecíficas. Volto ao exemplo das ecologias do Pokémon Go, estas são ao mesmo tempo físicas, materiais e informativas, isto é, feita de tijolos, cimento, mas também de circuitos, de silício, de corpos, dispositivos, ondas, imagens pixel etc. Se tiramos uma destas componentes, não teremos mais a ecologia que produz o jogo Pokémon Go, esta é transorgânica. Da mesma maneira a sexualidade e os sentires em redes. O sexo virtual, sobretudo nas suas formas imersivas (3D, computação vestível e espacialidades conectivas), não é, a rigor, uma forma simulacro, pois não imita apenas a sexualidade orgânica, mas introduz sensorialidades híbridas e transorgânicas compostas por pele, carnes, circuitos, databases, sensores, interfaces, tornando o sentir e a ecologia deste sentir um habitar transorgânico ou atópico, como o defini no livro Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e a forma comunicativa do habitar.
IHU On-Line – As redes sociais e os smartphones são portadores de inovação não apenas no âmbito tecnológico, mas também no social, sensorial, político, econômico e cultural. Que tipo de novidade trazida por essas ferramentas mais o impressionam?
Massimo Di Felice – Acredito ter respondido um pouco já a este quesito na pergunta anterior. Gostaria apenas de acrescentar que um aspecto, muitas vezes pouco refletido, é que as redes conectivas são portadoras de uma nova arquitetura informativa e de uma nova forma de comunicação, ecológica, transorgânica e transespecífica. Para esta nova arquitetura informativa e comunicativa não temos ainda uma teoria pronta. Mas é desta inovação que serão geradas as principais transformações da nossa época, em todos os setores, e serão transformações qualitativas.
IHU On-Line – As redes sociais mostram-se potentes na difusão de ideias da era do antropoceno, mas ainda restritas quanto à difusão de práticas de sustentabilidade. Quais os limites e desafios desta questão?
Massimo Di Felice – A conectividade de todas as superfícies geradas pelas redes conectivas é responsável não apenas pela possibilidade de monitoramentos do nosso impacto no meio ambiente, mas, também, e sobretudo, pela criação de uma nova ecologia que está implementando uma condição habitativa reticular, ou seja, baseada numa arquitetura conectiva. E por este conjunto de redes que conectam a biodiversidade, que sempre existiram, mas que ganharam, agora, uma dimensão acelerada através do processo de digitalização, que constatamos o limite do conceito ocidental de sociedade, enquanto construção teórica que produz uma morfologia e uma ecologia limitadas apenas aos atores humanos.
Portanto, além das práticas de monitoramentos de cadeias complexas e de acompanhamento, através dos big data, de processos de interações entre entidades e superfícies diversas, me parece que as redes conectivas estão criando uma nova condição habitativa complexa e aberta. Além disso, tais redes são a expressão de um novo cérebro infossocial que, através da conexão de sensores ambientais, sociais, econômicos e energéticos, contribuirão para a criação de uma nova realidade mais complexa, mais inteligente e mais sustentável. Mas para isso acontecer é necessário passar da inteligência política e humana do social para o cérebro ecológico conectivo, construído através do diálogo fértil entre dados de biodiversidades, territórios, circuitos etc.
Tal conectividade supera tanto a concepção ocidental da natureza como entidade “natural” e separada do humano, quanto aquela de técnica, também considerada como artefato externo. Enquanto existir a ideia de natureza e de técnica, não teremos soluções apropriadas para a construção de novas relações ecológicas mais sustentáveis.
IHU On-Line – Que formas de ativismo na internet, sobretudo no Brasil, têm chamado mais a sua atenção enquanto pesquisador da área?
Massimo Di Felice – O que mais me chamou a atenção no estudo do Net-ativismo no Brasil foram, em primeiro lugar, as Jornadas de Junho, que foram um marco e que mostraram um tipo de ativismo alinhado com as novas formas de conflitualidade que se espalharam, na primeira década dos anos 2000, no mundo inteiro, através da atuação de novas formas de conflitualidade em redes. As Jornadas de Junho, a luta contra a corrupção e os protestos contra a Copa do Mundo, como a lei popular da ficha limpa, expressavam a possibilidade, via redes digitais, da participação direta da população e a luta contra a gestão partidária e clientelista do dinheiro público.
Neste sentido, no Brasil, como no resto do mundo, as redes implementaram a mudança da ideia de política, criticando os partidos políticos e ampliando qualitativamente, ao mesmo tempo, por meio da informatização, a forma de participação de maneira direta e sem mediações. Um dos elementos centrais desta crítica, que se deu no Brasil e no mundo inteiro, foi a questão da representatividade. As estruturas partidárias, centralizadas e monopolizadoras, baseadas em mídias disseminativas (jornais, rádio e TV) não conseguiam mais sintetizar a complexidade dos anseios de participação da população. A tal inicial forma de protesto seguiram a experimentação de plataformas e de estruturas novas e alternativas aos partidos que queriam experimentar novas e mais extensas formas de participação, como no caso do 15 M na Espanha, o da plataforma Rousseau na Itália ou o La Red, na Argentina. Estes primeiros exemplos expressam os anseios por um outro tipo de democracia, não mais limitados ao voto a cada quatro anos, mas abertos a novas práticas de participação.
Nestas novas estruturas, os políticos deixaram de ser os donos da coisa pública ou os salvadores da pátria e os portadores da justiça na terra, para se tornarem o que deveriam ser, isto é, os porta-vozes e os empregados dos cidadãos, que passaram a controlá-los e a orientá-los através de um monitoramento contínuo, possibilitado pelas redes digitais.
Uma segunda coisa que nos chamou atenção e que acompanhamos com uma linha específica de pesquisa é o processo de digitalização que interessou aos povos e os territórios indígenas. Esta temática foi relatada no meu livro que acaba de sair pela editora Paulus, Redes e Ecologias Comunicativas Indígenas, escrito junto aos pesquisadores que compõem a linha que estuda a digitalização dos povos originários. O estudo deste processo nos alertou sobre sua amplitude e sua importância.
Trata-se de uma transformação da ecologia do Estado brasileiro e não apenas da sua esfera pública. Obviamente um dos primeiros efeitos que a digitalização destes povos realizou foi a consolidação de um novo tipo de protagonismo que, depois de séculos de “tutela” e de apartheid social, os tornam capazes, através da tecnologia e das redes de conexões, de poder fazer alianças, projetos, e de tecer suas próprias relações, sem passar pelos seus históricos intermediários: as igrejas, a Funai, as ONGs e os antropólogos.
Mas a consequência deste protagonismo leva a algo muito maior: repensar a própria ideia do Estado e a própria ideia de Brasil. Pois a participação ativa e a presença contemporânea de tais culturas, idiomas, visões de mundo e cosmogonias, que a lógica do estado moderno colocou num passado originário e, portanto, fora da história contemporânea e longe do presente, tem o poder de modificar a ideia e o imaginário do próprio país. Paradoxalmente, hoje, a possibilidade de o Brasil passar da época industrial e moderna para a época e a sociedade da informação não se encontra nas linguagens política, ideológica ou acadêmica, que criaram o Brasil como ele é, mas numa deslocação da própria ideia do comum que estas culturas podem ajudar a pensar. Não se trata de tornar o Brasil indígena, nem de uma atualização do mito rousseauniano do “bom selvagem”, mas de complexificar o Brasil, tornando-o algo maior do que foi reduzido pela política e pela concepção industrial do desenvolvimento.
IHU On-Line – Como o entendimento do ativismo se transforma e ganha novos contornos diante dos relacionamentos existentes nas redes sociais?
Massimo Di Felice – As redes sociais digitais, em suas conformações contemporâneas, são, sem dúvidas, insuficientes para a construção de formas de participação maiores capazes de satisfazer os anseios de ativismo das populações que os partidos e os parlamentos traíram e que não serão mais capazes de reconquistar. A passagem de forma partidária e representativa da democracia não poderá ser realizada pelo Facebook ou pelas demais redes sociais, é preciso construir plataformas de interações específicas e isso já está acontecendo em diversos países.
Como centro de pesquisa, estamos acompanhando este processo muito de perto. Realizamos em São Paulo, em dezembro de 2017, junto com o SESC, o primeiro evento internacional sobre net-ativismo e plataformas digitais para a participação e a decisão colaborativa. O objetivo do evento, que planejamos repetir todos os anos, é reunir as principais experiências de plataformas de participação. Neste primeiro evento participaram a plataforma Rousseau do Movimento 5 Estrelas da Itália, hoje uma das mais avançadas arquiteturas digitais de participação e de tomadas colaborativas de decisão, algumas plataformas indígenas, uma plataforma francesa de colaboração entre empresas, e a plataforma Mudamos, realizada aqui no Brasil.
No nosso centro de pesquisa a linha de pesquisa Net-ativismo está lançando um manifesto internacional sobre a Cidadania Digital que constituirá uma rede internacional de observatórios sobre a cidadania digital. Anualmente os participantes de tais observatórios se reunirão no Brasil junto às principais experiências mundiais de plataformas digitais de participação, para debater, experimentar e pensar o próximo futuro da democracia.
IHU On-Line – As tecnologias digitais hiperconectam os indivíduos e os mantêm em permanente estado de alerta. Chegam a ser invasivas e tóxicas, ao mesmo tempo que aproximam problemas de soluções e oferecem ambiente de horizontalidade. Como superar esse paradoxo para evoluir de forma sustentável como sociedade?
Massimo Di Felice – Em primeiro lugar, a questão deve ser posta superando as categorias de técnica e de natureza. Estas duas categorias são uma invenção da filosofia ocidental e, portanto, ao contrário do que muitas vezes se pensa, não são conceitos universais. Se continuamos a nos expressar utilizando estes dois termos, não conseguiremos avançar em direção a um habitat mais sustentável.
Nos últimos anos, todas as grandes empresas mundiais e, de forma crescente, também as médias e as pequenas, estão passando por processo de reconversão de suas atividades em forma mais sustentável. Trata-se de um processo mundial, que se dá de forma mais rápida ou mais lenta, a depender dos países, mas é uma mudança estrutural sem volta. A mesma coisa diga-se das grandes empresas de comunicação digital como Facebook, Google, etc. Todas se deram prazos vinculantes de reconversão que têm a ver com trocas de materiais com outros não impactantes e, no caso do Google, também, com o uso total de energias renováveis para o desenvolvimento de suas atividades nos próximos anos.
A sociedade será cada vez mais exigente neste aspecto. Vejamos o caso do Brasil. Imagine se, 20 anos atrás, algumas empresas teriam investido seu dinheiro para a própria reconversão sustentável? Era simplesmente impensável. Hoje, não tem praticamente nenhuma que não invista grandes quantias de dinheiro em prol da sustentabilidade. Como chegamos a isso? O que produziu tal radical mudança? Tudo isso seria impensável há somente 20 anos.
Tal transformação no Brasil, como no mundo, se deu pelo advento de uma nova cultura ecológica, não mais antropocêntrica, nem mais baseada numa arquitetura sistêmica, mas reticular e conectiva. Foi através do processo de digitalização (internet of things) que começamos a escutar os não humanos (temperaturas, águas do oceano, florestas, gelo ártico etc.) e foi sempre através dos big data que os cientistas conseguiram desenvolver cenários e diagnósticos cruzando milhões de dados através da interação com inteligências artificiais. Esta alteração informativa gerou uma alteração em nosso próprio imaginário sobre o meio ambiente e sobre o nosso planeta, que se exprime através da difusão de uma lógica reticular, desconhecida até algumas décadas atrás, que nos permite associar naturalmente a nossa forma de nos deslocarmos na cidade, os produtos que olhamos nas estantes do supermercado, com a mudança climática, as emissões de CO2 e o futuro da nossa espécie. Estamos em caminho, devemos acelerar e retirar os obstáculos que estão na nossa frente.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As transformações das relações sociais em tempos de net-ativismo. Entrevista especial com Massimo Di Felice - Instituto Humanitas Unisinos - IHU