Por: Patricia Fachin | 03 Julho 2017
Para explicar a absolvição da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral – TSE em meio a uma série de escândalos políticos, disputas e apostas em torno da permanência de Michel Temer na Presidência da República até a sucessão presidencial em 2018, o sociólogo Luiz Werneck Vianna recorre a Max Weber para defender que o que tem imperado no país, especialmente na decisão do TSE, é uma ética da responsabilidade. O que, segundo ele, não significa a ausência de uma ética de convicções. “Essas duas éticas não se contrapõem, ao contrário do que certas opiniões ingênuas formulam, elas se complementam. O estadista, o homem de Estado verdadeiro, é aquele que é capaz de ser fiel a uma ética de responsabilidade sem abdicar das suas convicções, fazendo com que essas convicções estejam presentes na sua tomada de posição, que tem que considerar o mundo”, afirma.
De acordo com ele, embora houvesse “elementos para a condenação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral”, diante do caos em que o país se encontra, “o formalismo jurídico não vai levar a lugar nenhum” e, portanto, outros elementos foram considerados na decisão política dos juízes do TSE. “Acredito que naquela decisão esteve presente, sim, um cálculo político dos juízes que resolveram absolver a chapa, com uma ética de responsabilidade, pois onde nos teria levado uma ética de convicção estranha e exótica à da responsabilidade? Onde? Está se preparando a sociedade para uma saída à direita, é isso? Ela está aí, rondando”, diz.
Embora faça elogios e críticas à atuação do Ministério Público e do Judiciário na cena política, Werneck Vianna insiste que o que falta ao país é “clarividência”, “reflexão” e um “projeto”. “Temos que ir aos fundamentos nessa hora de caos em que todas as referências estão sendo destruídas. Temos que voltar um pouco para a nossa própria história. (...) Por que mudamos de orientação e fizemos com que uma era, que se abria com uma plataforma de interromper a modernização autoritária que nos vinha dos anos 30, não fosse levada adiante? Por que de repente nós aderimos à modernização autoritária? Por que a esquerda aderiu às práticas econômicas dos governos do regime militar?”, questiona.
Embora seja favorável à Operação Lava Jato, Werneck questiona: “Como se sai desse buraco? Colocando 80% dos políticos na cadeia, é isso?” E adverte: “Nós temos que criar mercado de trabalho para 14 milhões de brasileiros, que estão à míngua. Uma coisa é a defesa de programas ético-morais, outra coisa é esse moralismo rastaquera, que está dominando a mídia, a opinião das redes sociais”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line na última sexta-feira (30-06-2017), Werneck analisa a conjuntura política e comenta a escolha da subprocuradora-geral da República Raquel Dodge, que irá substituir Rodrigo Janot à frente da Procuradoria Geral da República a partir do dia 17 de setembro. A decisão, frisa, representa uma “lufada de ar fresco nesse ar viciado que aí está”.
Werneck Vianna, em 2013, no IHU | Foto: Acervo IHU
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012).
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Segundo uma pesquisa recente, a percepção de 95% dos brasileiros é a de que o Brasil não está no rumo certo. Considerando a situação política do país, a sua percepção também é essa?
Luiz Werneck Vianna — Qual é o rumo certo? Essa questão do rumo é complicada; é quase uma questão metafísica.
IHU On-Line — Mas considerando a crise atual em torno do presidente da República e o impeachment da ex-presidente Dilma, era de se esperar que o país estivesse nessa situação de crise continuada?
Luiz Werneck Vianna — O impeachment, como já disse em alguns artigos e em entrevistas para o IHU, é sempre muito traumático, é uma solução extrema e que deixa sequelas, e as sequelas estão aí. Os partidos e as personalidades que foram atingidos pelo impeachment estão respondendo às circunstâncias posteriores de forma muito irracional e sensorial. Mas imagino que isso também vai se esvair, assim como em outras circunstâncias; o tempo ajuda.
Na medida em que a sucessão presidencial se aproxima, novos tempos, novos temas e novas questões vão se impor, inclusive essa com a qual você iniciou a entrevista, sobre os rumos. A sociedade vai definir, entre os candidatos dos partidos, os rumos a seguir. Não vai se voltar à política econômica da época de Dilma; acho isso de uma improbabilidade absoluta. Aquela política nos levou a uma situação muito ruim do ponto de vista econômico, social e político. A sucessão presidencial tende a nos devolver aos trilhos da racionalidade à medida que os novos candidatos vão ter que oferecer plataformas exequíveis, persuasivas e estimulantes. Mas é preciso voltar a crescer.
IHU On-Line — As políticas do governo Temer são muito diferentes das praticadas no governo Dilma?
Luiz Werneck Vianna — As reformas são necessárias; aqui e ali provavelmente, olhando de perto, com lupa, elas poderiam ser melhor apresentadas, mas a reforma da previdência é uma necessidade aqui e alhures — o mundo todo tem discutido isso. O fato é que temos uma previdência orientada para o funcionalismo público. Aliás, esse tema do Estado tem sido um elemento de perturbação. O Partido dos Trabalhadores tem sido — não na sua origem, mas na prática recente — mais representante dos interesses do funcionalismo público do que dos trabalhadores em geral, dada a força do funcionalismo e das corporações de Estado, especialmente de alguns setores muito poderosos que estão encravados no aparelho do Estado, os quais detêm hoje uma força considerável, como é o caso do Ministério Público.
Esta é uma mudança de natureza quase antropológica: pensar a sociedade não a partir do Estado, mas a partir dela mesma. Essa questão, a meu ver, a próxima sucessão presidencial terá como tema de fundo. Não se voltará àquele Estado que nos veio dos anos 30 ao PT: que passou pelo segundo governo Vargas, pelo governo de Juscelino Kubitschek, pelo regime militar e encontrou, espantosamente, a sua forma de consagração no PT, que nasceu com outra origem, outra orientação, orientado, sobretudo, para os interesses dos setores subalternos, do sindicalismo, dos trabalhadores da terra, dos sem direitos. A Teologia da Libertação nasceu aí e veio engrossar esse movimento subterrâneo que o PT encarnou, de uma revolta contra o Estado, do fim da Era Vargas, da denúncia da Consolidação da Lei do Trabalho como o AI-5 do trabalhador.
Esse era um diagnóstico saudável e correto, mas que foi interrompido pelas circunstâncias da política e, sobretudo, por força da predominância do cálculo eleitoral. Voltou-se para essa nossa marca antiga, arcaica, de prevalência do Estado, essa “Estadofilia”, que tem sido a marca da nossa modernização. Acho que agora isso foi interrompido. E esse processo não é brasileiro, é mundial, mas as coisas acontecem aqui de forma muito virulenta, porque o país é muito atrasado cultural, intelectual e politicamente.
Um movimento do tipo desse francês, com Macron, é muito difícil de se imaginar aqui, embora haja alguns movimentos dessa tendência. Mas o nosso sindicalismo e os nossos movimentos sociais se deixaram enredar pelo aparelho do Estado e isso tem sido um inferno. Quando vamos entender que no capitalismo é necessário um sindicalismo autônomo, forte, livre, que lute pelos seus interesses sociais, econômicos e políticos, e que se tenha partidos que sejam representativos? A esquerda desertou desse campo e se tornou um operador do Estado. Cadê a esquerda no mundo popular, nas favelas, na vida popular ela mesma? A esquerda não se faz presente.
Havia, pelos anos 60, a presença da esquerda no mundo popular de verdade e, inclusive, os comunistas tinham organizações nas favelas e a Teologia da Libertação, que nasceu com essa deriva forte à esquerda, implantou-se com alguma força no mundo popular, especialmente nas favelas do Rio de Janeiro. Houve um movimento da intelectualidade católica, com alguns intelectuais relevantes. A isso deu-se marcha a ré por imposição da hierarquia católica. Um dos resultados disso, como está se vendo, foi o avanço dessas ideologias da prosperidade dos cultos pentecostais no mundo popular, quando a esquerda católica se retirou de lá.
Nós temos que reconstruir, temos que ir aos fundamentos nessa hora de caos em que todas as referências estão sendo destruídas. Temos que voltar um pouco para a nossa própria história. O que fizemos antes, que deu certo? O que estávamos fazendo antes e que estava dando certo e paramos de fazer? Por que mudamos de orientação e fizemos com que uma era, que se abria com uma plataforma de interromper a modernização autoritária que nos vinha dos anos 30, não fosse levada adiante? Por que de repente nós aderimos à modernização autoritária? Por que a esquerda aderiu às práticas econômicas dos governos do regime militar?
Há um fenômeno aí que é de natureza, digamos, supraestrutural: houve uma mudança na cabeça que fez com que seguíssemos uma trilha errada, abandonando um bom caminho que vínhamos percorrendo. Um pouco de tudo isso que nos ocorre se dá por atraso cultural, por atraso na reflexão, por falta de autocrítica. Nós não estávamos condenados a ter essa história de ódio, rancor e ressentimento que estamos começando agora. No entanto, estamos distantes da revolução como nunca — de qualquer revolução, inclusive daquelas feitas pelo voto, pelo caminho das instituições. Quais são as instituições através das quais poderíamos fazer avançar um programa de mudanças efetivas a favor de um grande número da população? Com quais partidos? Com que personalidades intelectuais? Em que correntes de pensamento?
Nós agora estamos como se um mar vermelho estivesse nos afastando da nossa história. Nós temos que atravessar a pé esse mar vermelho, com um esforço intelectual, moral e com coragem política de procurar uma solução, um caminho, deixando esse deserto de ódio e tolerância para trás; precisamos pensar para frente. Aliás, é preciso notar que, apesar de todo esse caos na vida política, a sociedade tem se mantido em silêncio, como observadora. Ela não tem reconhecido, entre os antagonistas do ódio, um lado. 2017 não nos trouxe de volta 2013.
IHU On-Line — Por que isso não aconteceu, isto é, por que diante da atual conjuntura, não há um retorno de manifestações como as de Junho de 2013?
Luiz Werneck Vianna — Quem procura agora — e isso é notável de observar — nos devolver o caminho das ruas é a direita, é a mídia. O sistema Globo, por exemplo, da manhã à noite, martela no sentido de que as ruas voltem a ser ocupadas. Em 2013, a conta veio muito alta. Mas agora, se vier, será ainda mais alta e não há quem possa pagá-la, porque o grande número da população não vai se deixar embalar por esse tema da luta contra a corrupção. Como se disse em 2013, as pessoas querem mobilidade, melhores serviços públicos e melhores condições de vida. Isso está se discutindo? É um programa de demolição e ponto. No lugar entra o quê? Derruba-se o governo que aí está, como tantos preconizam, para pôr quem mesmo no lugar? E o que significa, agora, um movimento que interrompa a nossa experiência democrática? Uma amputação na Constituição, como tantos falam, como se essa Constituição fosse um papel já morto.
Na verdade, está-se fazendo um movimento de saneamento da vida política brasileira, mas isso está sendo feito por amadores, por pessoas que estão apaixonadas narcisicamente por si mesmas e que podem, perfeitamente, jogar o bebê fora com a água do banho. Quem é o bebê no caso? A Constituição, a política. O que entendem esses novos salvadores da pátria a respeito do país? Querem passar o Brasil a limpo? Passar o Brasil a limpo é refazer a nossa história, mas a nossa história é a que está aí. E qual é ela? Vou recapitulá-la muito simplesmente.
O Brasil é um Estado criado, criado para as luzes da ilustração, para as luzes da civilização, e que optou por fazer isso de forma compatível com a escravidão que tivemos: liberalismo e escravidão. Vamos passar isso a limpo como? A modernização brasileira foi feita sem que a questão agrária fosse alterada. Tivemos um processo de expansão econômica no país — que não foi pouco — preservando o exclusivo agrário.
Passar o Brasil a limpo precisa mexer nisso, mas com o agronegócio sendo o que é hoje, como atividade econômica, como fazer? Fomos patrimonialistas desde que existimos. Como vamos passar isso a limpo? Essas são marcas que não se apagam. O que temos que fazer em relação a isso? Reconhecer esse vício na hora da partida, esse vício na nossa origem, e trabalhar dentro das instituições para destravar isso, para democratizar a sociedade; esse é o caminho. Mas para isso não há outro jeito senão a política.
IHU On-Line — A quem o senhor se refere quando diz que existem “salvadores da pátria” que não levam em conta a nossa história?
Luiz Werneck Vianna — Eu diria que o Ministério Público tem tido essa tentação, essa política salvacionista de salvar o Brasil. Está bem, vamos colocar os corruptos na cadeia, mas quem vai investir na questão da terra, do trabalho?
IHU On-Line — Essas não são atividades distintas e, portanto, não cabe a atores distintos pô-las em prática? Ou seja, o MP atua nos casos de investigação e os políticos elaboram políticas para o país?
Luiz Werneck Vianna — Eu sei, mas o que digo é que não se pode, estando instalado numa situação dessas, fazer articulação das demais. O que significa agora, por exemplo, o Ministério Público levantar a inconstitucionalidade da Lei da Terceirização? Que tem isso a ver com a luta contra a corrupção? Tem a ver, sim, com uma luta — e eu diria, sem quartel — em favor da preservação do Estado que aí está, inclusive com os privilégios de que essas grandes corporações desfrutam. Esse é um movimento de autoataque ao sistema político brasileiro, de um lado, e de autodefesa, de outro. O peso dessas corporações na cena política brasileira se externa agora em razão da redução dos partidos políticos. Essa perda de vigor dos partidos tem favorecido a abertura de um espaço para essas corporações terem uma desenvoltura cada vez maior na cena política brasileira. Isso não dá em democracia; não pode dar. A democracia não se faz a partir das corporações, embora algumas corporações tenham um papel a desempenhar agora, sem dúvida.
Para que não reste dúvida, quero deixar claro que a Operação Lava Jato tem cumprido um papel civilizatório que deve ser protegido e valorizado. Agora, ela não opera no vazio e, além do mais, eu pergunto: por que a grande mídia tem atuado da forma que tem atuado? Vou ficar apenas com essa observação que, a meu modo de ver, representa bem o que eu quero dizer.
IHU On-Line — Então há contradições e disputas na atuação do MP e do Judiciário?
Luiz Werneck Vianna — Que o MP conhece mais de uma voz, mais de uma interpretação, ficou claro agora com as eleições internas que fizeram para apresentar a lista de sucessão do Dr. Rodrigo Janot. Há controvérsias entre eles sobre os caminhos que a corporação deve seguir. No Judiciário, igualmente, e dentro do Supremo Tribunal Federal aparecem controvérsias muito vivas de trazer de volta a mentalidade constitucional para dentro desses quadros.
É preciso ter cuidado nas declarações porque podemos ser muito mal interpretados, mas há elementos perigosos aí nessas delações, na intervenção do aparato policial sobre a vida política. Há elementos muito complicados, e a sociedade não vai sair dessa crise catastrófica em que está imersa, se não for a partir dela mesma, a partir da sua organização, das suas lutas e interesses.
Um projeto de sociedade não vai surgir dessas contendas entre antagonistas irracionalmente apaixonados que atuam nos tribunais. A vida política não é um tribunal. É preciso devolver a vida política ao seu dono; ela tem sido usurpada por essas corporações, especialmente nessa articulação muito explosiva entre as corporações e a grande mídia. Como fica a sociedade com os partidos pequenos como estão, com os sindicatos reduzidos na sua influência, na sua organização, com os intelectuais macaqueando o que a imprensa vocaliza? Onde está o espírito crítico deste país?
IHU On-Line — Considerando as disputas no MP e no Judiciário, como avalia a indicação do nome de Raquel Dodge para substituir Janot na Procuradoria Geral da República?
Luiz Werneck Vianna — Acho que é uma lufada de ar fresco nesse ar viciado que aí está. Conhecendo um pouco da biografia dela e as posições que ela defendeu nesse debate entre seus pares, me parece uma lufada de ar fresco num ar empesteado.
IHU On-Line — Em que sentido será uma lufada de ar?
Luiz Werneck Vianna — A volta do império da lei.
IHU On-Line – O senhor quer dizer que a condução de Janot à frente da PGR tem sido muito política?
Luiz Werneck Vianna — Acho que não há dúvidas de que ele tinha uma causa de sanear a política brasileira, que o levou de forma inclemente a destruir o sistema político brasileiro. Quer dizer, destruir não destruiu, porque o Congresso está funcionando. Mas o inimigo não é esse. O inimigo é a falta de um projeto, a falta de clarividência, a falta de reflexão.
Eu começo do jeito que você começou a entrevista: o inimigo é a falta de rumo. Nós estamos navegando sem rumo em meio a um mar tenebroso onde mal se consegue distinguir, por causa do nevoeiro, um palmo diante do nariz. O surpreendente é que ainda não tenha havido um naufrágio, de que este país não tenha se transformado num Titanic. Há elementos de saúde que não estão no Estado ou nas forças políticas, estão fora delas, na sociedade.
IHU On-Line — Mas se não houvesse uma interferência mais direta da PGR nas investigações da vida política, haveria um projeto de país ou isso não faz diferença?
Luiz Werneck Vianna — A ideia desses procuradores, como já mencionei numa entrevista anterior, é um projeto de natureza messiânica: basta reparar na origem de alguns deles, nas suas crenças religiosas.
IHU On-Line — Mas ao mesmo tempo eles não contribuem para criar o que o senhor chama de “avanço civilizacional” do país?
Luiz Werneck Vianna — Contribuem, mas o fato é que esse carro perdeu o governo, ele está descendo numa ladeira sem governo. Tudo isso é um macaco solto numa loja de louças: vai quebrando tudo. Há um país a preservar. A nossa história é feita de elementos de trevas também: a escravidão, o exclusivo agrário, o patrimonialismo. Nós não fizemos uma revolução democrático-burguesa; nós avançamos rumo ao moderno por caminhos autoritários, com Vargas e com o próprio Juscelino, que não era autoritário, mas manteve aquelas estruturas do Estado que o antecederam.
Juscelino foi nomeado prefeito de Belo Horizonte pelo Estado Novo; isso não quer dizer que ele fosse um estado-novista, ao contrário, mas ele fez política com “P” maiúsculo numa circunstância difícil em que ele viveu, inclusive quando tomou posse diante de rebeliões militares. Juscelino foi um estadista, mas ele não tinha como interromper e se antepor a essa nossa má-formação de exclusivo agrário, escravidão, patrimonialismo, mas mesmo assim ele foi fugindo para frente, levando o país para outro patamar e até mudou a capital para ver se surgia uma outra sociedade; e surgiu, meio desencontrada, mas surgiu.
O regime militar nos devolveu os anos 1930, nos devolveu o Estado Novo. E, desgraçadamente, o PT, ao longo dos seus governos, acabou dissolvendo essa história e se tornou um elemento de continuidade dela, quando ele tinha nascido exatamente para interrompê-la.
Como se sai desse buraco? Colocando 80% dos políticos na cadeia, é isso? Nós temos que criar mercado de trabalho para 14 milhões de brasileiros, que estão à míngua. Uma coisa é a defesa de programas ético-morais, outra coisa é esse moralismo rastaquera, que está dominando a mídia, a opinião das redes sociais.
IHU On-Line — O senhor sempre tem defendido, diante da crise política, o avanço e a preservação das instituições e agora novamente o senhor fala da importância de fazer política mantendo as instituições. Diante disso, como avalia e qual considera que é o significado político da absolvição da chapa Dilma-Temer pelo TSE?
Luiz Werneck Vianna — Eu poderia fazer a pergunta na contramão: o que significaria o poder judiciário intervir de uma forma brutal sobre o problema e a dimensão política, destituindo a Presidência da República? Pode-se fazer a pergunta desse jeito também. Onde estaríamos? Quem seria o presidente agora? Como estaria a situação da nossa sociedade? Acredito que naquela decisão esteve presente, sim, um cálculo político dos juízes que resolveram absolver a chapa, com uma ética de responsabilidade, pois onde nos teria levado uma ética de convicção estranha e exótica à da responsabilidade? Onde? Está se preparando a sociedade para uma saída à direita, é isso? Ela está aí, rondando.
IHU On-Line — O que é diferente na situação da absolvição da chapa Dilma-Temer e na situação anterior, do impeachment da ex-presidente Dilma? Naquele momento não poderia ter sido feita a mesma pergunta: do que adianta destituir a presidente Dilma?
Luiz Werneck Vianna — À época eu fiz essa pergunta para mim mesmo e respondi que o impeachment não era bom para o país. Manifestei isso nos pequenos artigos de jornal e entrevistas públicas; eu me manifestei contra o impeachment. Mas de repente veio um rio que rolou na nossa vida, não havia mais como segurar. Quando a ex-presidente se elegeu com um programa e começou a governar com outro, ela deixou o país desarvorado. Quem nomeou o Joaquim Levy foi ela; quem não nomeou o Henrique Meirelles, por razões idiossincráticas — porque o Meireles era o homem de confiança do Lula, que é o grande inspirador político da vida dela —, foi ela.
Essas questões formais, como essa com que você agora me provoca, têm que ser olhadas de um ângulo mais largo, pois o formalismo jurídico não vai levar a lugar nenhum. Havia elementos, sim, para a condenação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral, claro que havia. Aliás, aquele ministro [Herman Benjamin] se esforçou — de forma assustadora — para comprovar isso e comprovou. Mas aquele litígio tinha outros elementos para serem observados.
Foi Max Weber — um grande sociólogo alemão — que, em páginas inesquecíveis, estabeleceu a distinção entre ética de convicção e ética de responsabilidade. Essas duas éticas não se contrapõem, ao contrário do que certas opiniões ingênuas formulam, elas se complementam. O estadista, o homem de Estado verdadeiro, é aquele que é capaz de ser fiel a uma ética de responsabilidade sem abdicar das suas convicções, fazendo com que essas convicções estejam presentes na sua tomada de posição, que tem que considerar o mundo; não se pode pensar o mundo de forma abstrata quando se está pensando em termos da "equicidade". Não é faça-se justiça e o mundo que pereça; é faça-se justiça para que o mundo possa vir a encontrar uma melhor solução do que aquela em que ele está encravado.
IHU On-Line — O senhor diria que Gilmar Mendes agiu como um estadista no julgamento da chapa Dilma-Temer?
Luiz Werneck Vianna — Lamento contrariar a opinião disseminada por aí para dizer que sim, ele agiu como um estadista, sim.
IHU On-Line — Por que o cenário atual ainda é melhor do que outro possível? Qual é seu receio em relação a outro cenário, como, por exemplo, o que leva em conta a destituição do presidente Michel Temer? Qual sua maior preocupação em relação a este período de transição até as eleições de 2018?
Luiz Werneck Vianna — O presidente sai e entra quem? Entra o presidente da Câmara dos Deputados [Rodrigo Maia], que também é objeto da Lava Jato, aí mais uma intervenção é feita e lá se vai o novo presidente. O que vai ficando no lugar? O Bolsonaro? Ou, em caso mais brando, o [João] Doria, de São Paulo? Derruba-se o presidente e com ele a reforma da Previdência, é isso? É isso que as corporações querem.
IHU On-Line — Alguns setores empresariais e corporações estão divididos em relação ao apoio ao presidente Temer desde a delação da JBS. A CNI e o jornal Estado de S. Paulo se manifestam a favor da permanência do presidente Temer no cargo. Mas outros grupos, a exemplo da OAB, que inclusive já protocolou pedido de impeachment do presidente, se posiciona pela saída dele, como parece fazer o jornal O Globo também. Como o senhor compreende essas disputas internas entre diversos setores? Por quais razões eles divergem?
Luiz Werneck Vianna — A OAB, no caso, tem agido de forma muito desmedida. Ela é uma presença corporativa, porque é uma organização corporativa, aliás, só admitida pelo regime Vargas, porque o regime liberal anterior não admitia a organização dos advogados em corporação. A propósito, foi Vargas quem trouxe a ideia de corporativismo para o país, que era uma tendência autoritária da época na Polônia e na Itália de [Benito] Mussolini. Essas corporações nascem pela direita — então isso é um pontinho a fazer.
A CNI tem interesses nas reformas, especialmente na reforma trabalhista. Quanto ao jornal O Globo, é um mistério, é um enigma, porque essa posição, para mim, é um enigma. A meu ver, uma hipótese a ser especulada é a de que o sistema Globo está procurando outra audiência, um novo mercado; essa é minha hipótese singela e, provavelmente, equivocada, mas é a única que consigo formular.
IHU On-Line — O senhor percebe essa disputa entre os setores?
Luiz Werneck Vianna — Claro. Mas aí eu fico me perguntando qual é a posição dos trabalhadores do campo e da cidade em relação a isso? Do homem em comum, qual é? Quem está falando com ele? Estão procurando administrar as suas inclinações por cima. Agora, a fonte genuína dos seus movimentos, está onde? Qual é o fio d’água que está alimentando a formação da consciência do homem comum? Que igreja? Que partido? Nós só vamos sair disso quando nos puxarmos pelos nossos próprios cabelos para cima, não vamos sair desse pântano chafurdando nele. Nós temos que sair dele e só tem um jeito de sair: passa pela reflexão e pela política. Como é que Juscelino Kubitschek conseguiu governar por cinco anos no meio daquele inferno e construir Brasília? Foi pelos caminhos da política.
IHU On-Line — A crise política se agravou depois das delações da JBS? Qual tem sido o impacto dessa delação para a política?
Luiz Werneck Vianna — Sem dúvida. Isso é palpável, como tem sido palpável que, a cada momento em que o nosso mundo complicado e caótico vai encontrando um caminho, vai vislumbrando uma possibilidade de saída, aparece mais um pedregulho no meio do caminho. Creio — como uma boa parte da torcida do Flamengo — que esse incidente com o Joesley foi forjado: o Joesley foi “plantado” naquela conversa com o presidente para produzir fatos que fossem comprometedores ao presidente, que voltassem a estimular a sanha dos que querem apeá-lo a ferro e fogo. Quem tem que apear, quem tem que tirar um político de um lugar e colocar no outro, é o mundo da política — os partidos e a sociedade — e não o mundo das corporações.
Eu rezo para que você me proteja contra mim mesmo. Eu não sei exatamente o terreno em que estou pisando, não sei nada; mas é o que tenho que fazer quando sou chamado a opinar.
IHU On-Line — Recentemente alguns membros do PT se reuniram com membros do MTST, sem a presença do ex-presidente Lula, e especula-se que o encontro teve como objetivo criar uma articulação de esquerda para além do PT. Em contrapartida, o ex-presidente Lula tem sugerido que a esquerda se rearticule em torno do PT para fortalecê-lo. Como o senhor avalia essas duas possibilidades? O que é melhor para a esquerda neste momento, manter-se atrelada ao PT ou desvincular-se dele?
Luiz Werneck Vianna — É uma luta que existe nesse campo. O fato é que é incontornável para o país a presença do Lula, a sua força política, a sua grande representação popular, e quem quiser mexer nesse caldeirão tem que considerá-lo.
IHU On-Line — Deseja acrescentar algo ou comentar alguma novidade que percebe na cena política?
Luiz Werneck Vianna — Eu li hoje um artigo do Fernando Gabeira, que é um jornalista muito interessante e corajoso, que nos incita a pensar além do caos, a observar o mundo além do caos em que estamos imersos. Eu li este artigo hoje e considero que a reflexão dele me anima a trabalhar nessa mesma direção. O Brasil não vai acabar. O Brasil é um projeto feito ao longo de décadas, gerações. O Brasil continua sendo um extraordinário lugar para se viver, especialmente se olharmos em volta e vermos como temos sido capazes de viver no meio dessa amargura, desses ódios desencontrados da cena política, com uma sociedade que se mantém firme nas suas posições, que trabalha e que procura atingir seus objetivos. O Brasil não regride; o Brasil segue em frente.
O Brasil continua sendo uma extraordinária sociedade, falta entendermos direito que rumos imprimir a ela. Não tem sido fácil com a história que temos: história de modernização autoritária, de liberalismo compatível com a escravidão e de patrimonialismo. Nós temos nos desvencilhado dessa origem perversa aos poucos, e cada vez mais fortemente temos dado passos decisivos na afirmação de um novo país. Um elemento disso foi a Constituição de 1988, que continua sendo uma âncora segura para um projeto civilizatório de país. Isso que está aí vai passar; é preciso ter coragem, paciência e ética de responsabilidade, que não cancele a de convicção.
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É preciso coragem, paciência e ética de responsabilidade para interromper a modernização autoritária. Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU