Por: Patricia Fachin | Tradução: Moisés Sbardelotto | 13 Setembro 2016
Que relação existe entre a elaboração e aplicação de políticas públicas e a financeirização? Apesar dessa relação ser “implícita” e “não declarada”, as políticas públicas “estão vinculadas pela obrigação de favorecer a extensão da base dos mercados financeiros e de garantir o crescimento das mais-valias, portanto, a renda financeira”, afirma Andrea Fumagalli à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Segundo ele, exemplos dessa subordinação das políticas públicas à financeirização podem ser vistas, na Europa, a partir das “políticas de austeridade no rescaldo da crise das dívidas soberanas”.
Apesar da crise europeia, o economista italiano diz que na Europa, “com algumas exceções”, “discutiu-se pouco a respeito” dessa relação. Mesmo dentro da esquerda, frisa, “muitas vezes prevalece a ideia de que hoje a estrutura de acumulação ainda é separável entre esfera real e esfera monetário-financeira, sem se dar conta de que tal separação é agora apenas um resquício do passado e que os mercados financeiros, da forma como estão estruturados hoje, dificilmente podem ser reformados”.
Para ele, hoje “a ideia de esquerda está em fase de desestruturação e de declínio”, convergindo-se para o centrismo. Nessa reconfiguração, frisa, “é dominante a ideia de que os processos de globalização, financeirização e precarização do trabalho e das existências podem ser controlados e dirigidos. Nessa perspectiva, buscam-se políticas de concertação social em apoio a uma ideia ilusória de globalização com rosto humano. Não nos damos conta de que, hoje, não há mais espaço para políticas reformistas de verdade”. Esse quadro, ressalta, é consequência de uma esquerda que busca o que ele denomina de a “política dos dois tempos”: “o primeiro tempo, de fato, é sempre operacional; o segundo tempo, em vez disso, não começa nunca”.
A financeirização e sua relação com as políticas públicas é tema do IV Colóquio Internacional IHU. Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica, que acontece hoje e amanhã na Sala Ignácio Ellacuria e Companheiros, no IHU. A conferência de abertura, intitulada Compreendendo a financeirização: conceito(s), origens, impactos e (im)possibilidades, será ministrada pelo Prof. Dr. Yann Moulier Boutang, às 9h15min.
Às 14h, a conferência Financeirização e suas estruturas: a transição ecológica para uma sociedade dos comuns? será proferida pelo Prof. Dr. Gaël Giraud, do Centre de la Recherche Scientifique - CNRS - França.
Todas as conferências serão transmitidas ao vivo na página do IHU.
A programação completa do evento está disponível aqui.
Fumagalli, em 2015, durante entrevista ao IHU (Foto: Cristina Guerini | IHU)
Andrea Fumagalli é doutor em Economia Política, professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Seus temas de interesse são teoria macroeconômica, teoria do circuito monetário; economia da inovação e da indústria, flexibilidade do mercado de trabalho e mutação do capitalismo contemporâneo: o paradigma do capitalismo cognitivo, entre outros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que espaço a financeirização ocupa no funcionamento da economia hoje? Como e por que ela foi ganhando um espaço cada vez mais central?
Andrea Fumagalli – Os mercados financeiros são hoje o coração e o motor da acumulação e da valorização capitalista. Eles intervêm e condicionam todo o ciclo de produção, do financiamento dos investimentos à distribuição de renda, tanto direta quanto indireta. Além disso, eles também tendem progressivamente a se substituírem às políticas públicas de bem-estar, intervindo na estrutura previdenciária, educacional e sanitária. Tal papel amadureceu no rescaldo do colapso do sistema de Bretton Woods, em 1971, e da crise do paradigma taylorista-fordista. O desaparecimento da relação ouro-dólar (US$ 35 por onça de ouro) minou a unidade de medida da moeda, convencionalmente fixada com base em uma divisão internacional da produção e do trabalho, que via os Estados Unidos detendo o comando principal dentro dos países de capitalismo avançado, e o dólar americano como o valor internacional de referência.
A partir 1971, a unidade de medida da moeda (portanto, do valor) foi progressivamente determinada pela dinâmica das convenções financeiras baseadas principalmente na atividade especulativa, dentro de uma progressiva desregulamentação dos próprios mercados financeiros. Tal contexto favoreceu um crescente processo de concentração no controle dos fluxos financeiros por parte de poucas grandes multinacionais das finanças, capazes hoje de definir unilateralmente as convenções financeiras especulativas dominantes. É preciso lembrar que tudo isso cria uma instabilidade estrutural, que gera continuamente crises e bolhas especulativas (da net-economy dos anos 1990 aos subprimes de 2008, passando pelas matérias-primas, petróleo em particular) dos anos recentes, passando pela crise da dívida soberana. Essas são todas situações que permitem o desenvolvimento da atividade especulativa de curtíssimo prazo. A crise hoje é fonte de valor para as grandes finanças, apesar dos pesadíssimos custos sociais que ela gera.
IHU On-Line – De que modo a financeirização tem exercido uma ingerência na política?
Andrea Fumagalli – A atividade especulativa, controlada por poucos sujeitos, é capaz hoje de condicionar as escolhas de política econômica em um contexto cada vez mais internacionalizado: de fato, elas exercem um direito de veto às políticas econômicas nacionais, se estas prejudicarem os interesses especulativos das grandes finanças. O caso da Grécia de 2015 é um exemplo evidente de como as oligarquias financeiras são capazes de desenvolver um “biopoder” sobre as condições de vida de algumas populações.
IHU On-Line – De que modo as políticas públicas têm sido projetadas, elaboradas e executadas à luz da financeirização?
Andrea Fumagalli – As políticas públicas estão vinculadas pela obrigação (implícita, não declarada) de favorecer a extensão da base dos mercados financeiros e de garantir o crescimento das mais-valias, portanto, a renda financeira. Exemplos disso são a adoção na Europa das políticas de austeridade no rescaldo da crise das dívidas soberanas (destinadas a precarizar o trabalho e a favorecer a privatização do welfare) ou a adoção de políticas de Quantitative Easing do Japão aos EUA, passando pela Europa até a América Latina, cuja criação de liquidez, de fato, longe de financiar a economia real, em vez disso, sustenta a renda financeira.
IHU On-Line – Quais são as implicações sociais da financeirização?
Andrea Fumagalli – As implicações são inúmeras e se concentram eminentemente em uma crescente distorção e polarização na distribuição da renda em favor das camadas mais abastadas e a despeito das mais pobres, que, diante da financeirização privada da segurança social, encontram-se na impossibilidade crescente de ter acesso aos serviços sociais básicos (saúde, educação, previdência). Segue-se daí uma piora das condições de vida, que, por sua vez, em um círculo vicioso, gera um aumento das chantagens e um processo de subsunção de toda a vida ao capital, via a precarização do trabalho e dívida.
IHU On-Line – É possível pensar um tipo de civilização que não seja regida pelos parâmetros oriundos dos processos de financeirização? Dentro do atual sistema capitalista, o que seria uma rota de fuga à financeirização hoje? Nesse sentido, o que significa dar um “rosto humano” à financeirização?
Andrea Fumagalli – A proposta que levantamos é a de constituir um circuito financeiro alternativo baseado na “Moeda do Comum” (Commoncoin). Com base na abordagem neo-operaísta, autores como Carlo Vercellone, Christian Marazzi e este que escreve, alinhados com a hipótese do capitalismo biocognitivo, concordam em identificar quatro elementos principais que deveriam definir uma moeda do comum:
• Ser não cumulativa e não se tornar objeto de especulação. Em consequência, ela deve perder uma parte do seu valor ao longo do tempo. Portanto, trata-se de uma moeda que fundante ou “monnaie fondante”;
• Atenuar a dependência dos trabalhadores do vínculo econômico à venda da sua força de trabalho e, portanto, à relação salarial, reduzindo a precariedade;
• Permitir, com base nisso, que se libertem tempo e recursos para desenvolver formas de cooperação alternativas fundadas no ato de pôr em comum saberes, resultados da produção e, também, em redes de intercâmbio que excluem a lógica do lucro. A participação na rede em que circula a moeda do comum implica a adesão a esses princípios, quer se trate de indivíduos, de empresas ou de sujeitos institucionais como, em parte, o caso de certos modelos de moedas alternativas experimentadas em bases locais;
• Ser “não propriedade”.
Esses quatro parâmetros implicam que o modo pelo qual a moeda do comum entra no processo econômico não é através da troca ou da sua detenção (como meio de pagamento ou reserva de valor), mas através do financiamento de uma atividade de produção (seja material ou imaterial).
Mais especificamente, a moeda do comum pode representar uma alternativa a uma economia monetária e financeira de produção, se utilizada, em primeiro lugar, como instrumento de remuneração monetária da força de trabalho, inicialmente, por exemplo, como integração supletiva ao salário pago em moeda tradicional.
O paradigma taylorista fordista era a expressão de uma economia monetária de produção, ou seja, de um processo econômico que se desenvolvia ao longo das três fases típicas de uma economia capitalista: endividamento/financiamento, produção/acumulação, realização/distribuição. A primeira fase era desenvolvida pelo sistema creditício, sob o rígido controle do poder de monopólio de emissão de moeda por parte do Banco Central; a segunda era fundamentada na produção padronizada, rígida e material; a terceira operava com base na ideologia do consumismo em massa e do papel de realocação da poupança desenvolvida pelos mercados financeiros.
O capitalismo biocognitivo atual, em vez disso, é expressão de uma economia financeira de produção. Com essa expressão, pretendemos identificar o papel central desempenhado pelo processo de financeirização em todas as três fases: os mercados financeiros ampliam e modificam a própria área de influência até condicionar o financiamento de atividades produtivas cada vez mais imateriais, flexíveis e globalizadas, a intervir como instrumento de assegurador social não universal, mas distorcido e seletivo, capaz de substituir cada vez mais um bem-estar desmantelado e privatizado, e a favorecer a concentração da renda via distribuição dos capital gains. Lembramos que essa transformação que leva os mercados financeiros a serem o motor da acumulação e da valorização capitalista atual ocorre simultaneamente ao maior processo de concentração que os mercados financeiros já experimentaram desde o nascimento do capitalismo até hoje.
A moeda do comum deveria criar um circuito econômico diferente, no qual a produção material e imaterial não é mais financiada pelo mercado financeiro e do crédito. E o modo mais simples é, a partir desse ponto de vista, imaginar uma espécie de instituição financeira comunitária (entendida como instituição do comum), capaz de emitir moeda digital sob a supervisão da comunidade de modo democrático, de modo irredutível e irreconciliável com as hierarquias financeiras tradicionais.
O objetivo desse circuito financeiro alternativo é o de fornecer financiamentos para o desenvolvimento de serviços sociais, a produção de valores de uso (sem fins lucrativos) e a remuneração da cooperação social. A produção do homem para o homem, que, subtraindo-se à lógica da produção de valores de troca, pode permitir, aqui e agora, uma primeira experiência inicial em favor de modelos alternativos de vida e sem depender dos vínculos e das hierarquias financeiras externas. Tal esquema é representado na seguinte figura.
Um esquema alternativo de economia de produção financeira: a moeda comum e bem-estar comum.
Esquema enviado pelo entrevistado.
Segue-se daí que a moeda do comum, para ser instrumento inovador e alternativo, deve financiar aquela que hoje é a base da valorização do comum. E qual é a base da valorização daquele comum de que o capital se apropria e torna seu? São os serviços sociais, a cooperação e a reprodução social e também as produções alternativas ou pseudoalternativas. A moeda do comum entra no processo econômico e, portanto, tem razão de existir no momento mesmo em que se torna financiamento de investimento em valor de uso e da reprodução social da força de trabalho. Em outras palavras, remuneração daquele trabalho vivo que hoje é precário, mal pago e cada vez mais prestado gratuitamente.
A partir desse ponto de vista, a moeda do comum como meio de financiamento e de remuneração é instrumento de autonomia e de autodeterminação, capaz de se contrapor à exploração e às chantagens impostas pelo processo de subsunção vital que hoje governa a relação capital-trabalho.
É a cooperação social que cria a moeda, e não a moeda que cria a estrutura de troca. Em outras palavras, é a potência do trabalho vivo, livre da necessidade da sobrevivência, que gera a moeda do comum. Exatamente o contrário da filosofia que gerou o euro. Na Europa, primeiro, constituiu-se a moeda única, pensando que isso era suficiente para construir uma identidade da Europa, partindo do pressuposto (neoliberal) de que a moeda é neutra, e não o resultado de relações sociais hierárquicas.
IHU On-Line – Como a financeirização tem sido debatida na Europa?
Andrea Fumagalli – Digamos que, com algumas exceções, principalmente deslocadas para fora da academia que interessa, discutiu-se pouco a respeito disso. Dentro da esquerda, além disso, muitas vezes prevalece a ideia de que hoje a estrutura de acumulação ainda é separável entre esfera real e esfera monetário-financeira, sem se dar conta de que tal separação é agora apenas um resquício do passado e que os mercados financeiros, da forma como estão estruturados hoje, dificilmente podem ser reformados.
IHU On-Line – A esquerda tem recebido muitas críticas por adotar um modelo neoliberal quando chega ao poder. Como reage a essa crítica? Quais são as propostas econômicas da esquerda para a economia de modo geral?
Andrea Fumagalli – A ideia de esquerda hoje está em fase de desestruturação e de declínio. E cada vez mais tende a convergir rumo ao “centrismo”: é dominante a ideia de que os processos de globalização, financeirização e precarização do trabalho e das existências podem ser controlados e dirigidos. Nessa perspectiva, buscam-se políticas de concertação social em apoio a uma ideia ilusória de globalização com rosto humano. Não nos damos conta de que, hoje, não há mais espaço para políticas reformistas de verdade.
De fato, a esquerda de governo busca aquela que pode ser definida como a “política dos dois tempos”: um primeiro tempo em que se fazem concessões aos ditames neoliberais em matéria de controle da dívida pública e desmantelamento do welfare e desregulamentação do mercado de trabalho com a ideia de que essas medidas possam favorecer um crescimento econômico que, em um segundo tempo, poderia melhorar a distribuição da renda, aumentar os salários e garantir mais segurança social. A proposta de flex-security é paradigmática. Antes, flexibiliza-se o mercado de trabalho à espera de uma segurança social subsequente, que nunca chega. O primeiro tempo, de fato, é sempre operacional; o segundo tempo, em vez disso, não começa nunca. A partida, assim, é sempre maquiada!
IHU On-Line – Como o senhor avalia o episódio do Brexit? A decisão da Inglaterra de deixar a Zona do Euro foi acertada ou equivocada? O que isso demonstra sobre o atual momento político da Europa?
Andrea Fumagalli – O Brexit provavelmente vai se revelar como um bumerangue para a Grã-Bretanha, e, por isso, eu acredito que, efetivamente, ele nunca vai ocorrer, senão em um longo período futuro, em que a situação política provavelmente será muito diferente, e, portanto, a decisão do referendo poderá ser modificada. Contudo, é um sinal político importante da crise da Europa, sinal da incompletude do projeto de unificação, baseado na ideologia monetarista e neoliberal. Ele também ocorre em um momento de forte ascensão dos movimentos populistas xenófobos e nacionalistas.
IHU On-Line – Na entrevista que nos concedeu no ano passado, quando esteve no Brasil, o senhor disse que tinha esperança de que em três ou quatro anos as experiências do Syriza e do Podemos pudessem “ser fundamentais como ensinamento para a constituição de movimentos europeus que possam ser capazes de incidir mais do que esses movimentos estão incidindo agora”. Mantém a mesma opinião? Como o senhor analisa e a que atribui a vitória do Partido Popular na Espanha? Por que o Podemos não alcançou o resultado esperado?
Andrea Fumagalli – Eu mudei de opinião, depois da parábola do Syriza e das atuais dificuldades do Podemos.
Pessoalmente, acredito que a possibilidade de uma longa viagem para dentro de instituições políticas cada vez menos representativas com o objetivo de uma mudança a partir de dentro tem poucas possibilidades de sucesso. O exemplo grego do Syriza, mas também as dificuldades espanholas, parecem confirmar essa tendência. Os vínculos financeiros e a estrutura do biopoder são fortes demais. Por outro lado, uma estratégia puramente de resistência e movimentista não me parece ser capaz hoje de coagular uma massa de impacto suficiente. A única possibilidade poderia ser a de criar espaços de autonomia constituinte.
Com esse termo, pretende-se criar circuitos produtivos e monetários capazes de não serem submissíveis pelo sistema capitalista. É aquilo que, anteriormente, definimos como a Moeda do Comum. É preciso ser capaz de se dotar dos meios necessários para uma alternatividade de autodeterminação e de auto-organização da existência. Refiro-me à experimentação no campo da autoprodução de valor – valor de uso e não de troca – à construção de circuitos monetários autônomos capazes de apoiar ou financiar não só atividades de câmbio, mas também de intervir em todo o ciclo de produção.
Concretamente, significa investir em formas alternativas de produção capazes de favorecer formas de remuneração do trabalho vivo e da cooperação social e prestar serviços de bem-estar a partir de baixo. É aquilo que definimos como um modelo produtivo do ser humano pelo ser humano. Seria possível criar espaços capazes de se perpetuarem e de se autossustentarem ao longo do tempo, independentes e capazes de contaminar as formas mercantilizadas da produção capitalista, reduzindo as chantagens e a dependência do mercado e garantindo formas de renda que permitam exercer o direito à escolha da própria vida. É um processo longo, mas que tem a vantagem de criar exemplos de alternatividade aqui e agora e, eventualmente, de se dotar daquela capacidade contratual e de interlocução com as instituições políticas e econômicas vigentes.
Em nível de territórios individuais, talvez sejam possíveis algumas experiências que vão nessa direção. Penso, por exemplo, em Barcelona.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A esquerda e a “política dos dois tempos” na era da financeirização. Entrevista especial com Andrea Fumagalli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU