Por: Patricia Fachin | 22 Agosto 2016
“Só daqui a cinco ou dez anos vamos ter uma conta real dos custos desse evento, e acho que vamos ver que ele custou muito mais do que imaginamos”, afirma Christopher Gaffney, ao comentar os custos envolvidos na realização dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. O geógrafo tem estudado as maneiras como a política econômica do esporte tem influenciado e alterado as relações sociais em grandes centros urbanos que se tornam cidades sedes dos eventos.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o geógrafo explica que os megaeventos esportivos “andam de mãos dadas com a tecnologia, com os meios de comunicação, com a indústria de armamento e outras peças-chave da economia global” e são organizados a partir de uma “coalização de interesses local e nacional que se articula com o Comitê Olímpico Internacional – COI ou com a Federação Internacional de Futebol - Fifa para realizar os eventos”.
Segundo ele, o atual modelo de realização dos jogos “abre brechas de responsabilidade, onde nem o Estado, nem o comitê organizador, nem o COI precisam assumir a culpa pelas obras ou pela realização do evento. Uma vez que o evento termina, o COI vai para a próxima cidade sede, deixando rastros e buracos financeiros por onde passou”.
Christopher Gaffney também sugere alternativas ao atual modelo e frisa que uma possibilidade seria que “o COI e a Fifa pagassem pela infraestrutura que precisam e garantissem a manutenção das obras construídas por 20 anos; e outra, que o COI e a Fifa revisassem os contratos das cidades sedes para serem menos onerosos”. Entretanto, ironiza, “enquanto houver demanda de cidades para sediar os eventos, não há razão para mudar o modelo de negócio”.
Christopher Gaffney é graduado em História e Filosofia pela Trinity University (EUA), mestre em Geociências pela Universidade de Massachusetts (EUA) e doutor em Geografia pela Universidade do Texas (EUA). Atualmente, leciona e pesquisa no Departamento de Geografia da Universidade de Zurique, Suíça.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por quais razões os grandes eventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, se tornaram um novo modelo de negócio na era global? Por que o capital escolheu, digamos assim, o esporte como um dos motores para garantir a acumulação?
Christopher Gaffney - Na verdade, os megaeventos esportivos andam de mãos dadas com a tecnologia, com os meios de comunicação, com a indústria de armamento e outras peças-chave da economia global. Embora o megaevento seja um motor de acumulação, em comparação a outras indústrias ele ainda é pequeno. A ideia de transformar o esporte em grande negócio segue as mesmas lógicas de crescimento eterno, que estão no coração de modelos de desenvolvimento do capitalismo. Não tem como separar os megaeventos da especulação imobiliária, da tecnologia do doping e antidoping, da arquitetura de ponta etc.
IHU On-Line - Desde quando esse modelo de negócio global está em curso e como ele tem sido desenvolvido?
Christopher Gaffney - Esse modelo se desenvolve em conjunção com o modelo atual do capitalismo. O ano de 1984 foi uma marca importante na mudança dos jogos e na economia global, com a consolidação do modelo Reagan e Thatcher de privatização e neoliberalismo. Esse modelo vai se desenvolvendo agora com mais apelo pelas redes sociais, através da tecnologia de alta definição e das novas tecnologias, inclusive através de medidas de marketing. Mas esse modelo de negócio ainda é favorável somente para o Comitê Olímpico Internacional - COI e seus parceiros.
IHU On-Line - Quais são os atores políticos envolvidos no que você denomina de “coalização de interesses” em grandes eventos como as Olimpíadas e como eles têm contribuído e atuado para que os eventos esportivos se transformassem em megaeventos altamente rentáveis?
Christopher Gaffney - Cada evento tem uma coalização de interesses local e nacional que se articula com o COI ou com a Fifa para realizar os eventos. No caso do Rio de Janeiro, a coalização é composta pela Rede Globo, pelo Comitê Olímpico Brasileiro - COB e pelos interesses de Carlos Arthur Nuzman, das empresas proprietárias de terrenos na Barra da Tijuca e dos grandes construtores civis. A rentabilidade vem dos contratos assinados pelo poder público com os detentores dos direitos. Tais contratos praticamente garantem o lucro para o COI e a Fifa, ao mesmo tempo que transferem dinheiro público para essas iniciativas privadas.
IHU On-Line - Qual é o papel do Comitê Olímpico Internacional nesse modelo de negócio global?
Christopher Gaffney - O papel do COI é determinante uma vez que ele é o detentor dos direitos de um monopólio e pode comandar aluguéis monopolísticos para a realização do seu evento. É um modelo que abre brechas de responsabilidade, onde nem o Estado, nem o comitê organizador, nem o COI precisam assumir a culpa pelas obras ou pela realização do evento. Uma vez que o evento termina, o COI vai para a próxima cidade sede, deixando rastros e buracos financeiros por onde passou.
IHU On-Line - Como avalia o papel do Estado e dos políticos em geral na condução dos megaeventos, ao destinarem recursos públicos para essas obras e compactuarem com esse tipo de projeto?
Christopher Gaffney - Péssimo. Nota Zero. Eles se entregaram totalmente às demandas do COI e da Fifa, sacrificando espaços públicos, recursos públicos escassos, e consolidando o complexo de vira-lata em escala nacional. Ao mesmo tempo que escolheram construir obras faraônicas como se fossem templos, em sua gestão limitada, abriram os cofres para favorecer seus parceiros nos setores de construção civil e especulação imobiliária, aumentando ainda mais a crise de habitação no Brasil.
IHU On-Line - Como você diria que a política econômica do esporte influenciou e, inclusive, alterou as relações sociais e reorganizou a cidade do Rio de Janeiro em relação à infraestrutura de transporte público, à especulação financeira e à segurança, por exemplo?
Christopher Gaffney - Essa pergunta é complexa demais uma vez que a cidade foi atrás de megaeventos esportivos desde a realização da ECO 92. É um modelo que privilegia o automóvel privado, o consumidor acima do cidadão e a privatização da vida pública em todos os sentidos.
IHU On-Line - Por que a entrada de capitais em cidades que sediam os megaeventos não se reverte em melhorias sociais para a população?
Christopher Gaffney – Porque a proposta não é desenhada para isso. A ideia é tomar dinheiro público, dá-lo para a inciativa privada e esperar os benefícios caírem do céu para a população. Se uma cidade tivesse uma redistribuição de renda mais igualitária, poderia até dar certo, mas como há má distribuição de renda no Brasil e, sobretudo, no Rio de Janeiro, é impossível que esse modelo de negócio traga benefícios para a população em geral.
IHU On-Line - É possível estimar qual é o “tamanho” do endividamento do Estado e da cidade do Rio de Janeiro por conta da realização das Olimpíadas?
Christopher Gaffney - Acho que não. Há tantos gastos que são difíceis de ser medidos, que a conta econômica não é clara, mesmo se fosse claramente delimitada, o que não é. Só daqui a cinco ou dez anos vamos ter uma conta real dos custos desse evento, e acho que vamos ver que ele custou muito mais do que imaginamos.
Centro Olímpico de Tênis (Foto: https://pt.wikipedia.org/)
IHU On-Line - Como os países costumam lidar com as dívidas oriundas de megaeventos? Pode nos dar exemplos do que aconteceu em outras cidades sedes após a realização dos megaeventos?
Christopher Gaffney - Montreal demorou 30 anos para pagar a conta de 1976. Vancouver, um ano depois das Olímpiadas de 2010, cortou o financiamento para saúde e educação. Os cortes de verbas nas cidades e estados dependem do contexto. Em geral, quanto maior é a cidade, menor é o impacto, então, talvez por isso, Beijing e Londres tenham tido menos impacto financeiro do que Sochi e o Rio de Janeiro.
IHU On-Line - O que seria uma alternativa a esse modelo de megaeventos esportivos?
Christopher Gaffney - Existem várias alternativas. Uma alternativa seria ter uma sede permanente para a realização dos Jogos Olímpicos; outra, seria que o COI e a Fifa pagassem pela infraestrutura que precisam e garantissem a manutenção das obras construídas por 20 anos; e outra, que o COI e a Fifa revisassem os contratos das cidades sedes para serem menos onerosos. Mas enquanto houver demanda de cidades para sediar os eventos, não há razão para mudar o modelo de negócio.
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Rio 2016: o esporte foi transformado em um grande negócio nacional e global. Entrevista especial com Christopher Gaffney - Instituto Humanitas Unisinos - IHU