16 Mai 2007
No início do século XX, Freud cria o complexo de Édipo, pelo qual tenta entender a atenção libidinosa da criança dada às pessoas do sexo oposto no ambiente familiar, uma teoria que entende a subjetividade como um elemento fundamental do ser humano, envolvendo seus sentimentos. Por sua vez, Lacan, em seus estudos, entende que o interior da subjetividade envolve, desde o início, a presença da linguagem alheia. No início do século XVI, Charles Melman (1) e Jean-Pierre Lebrun constroem e analisam um outro tipo de homem dentro de novos modos de subjetivação. Esse novo homem, não sabe mais o que é desejar, ou seja, “parece ter sido engolido pelo consumo e pelo gozo”, afirma Lebrun, na entrevista a seguir, cedida exclusivamente à IHU On-Line.
Charles Melman inicia hoje o Seminário Clínico-Psiquiátrico Como alguém se torna paranóico? De Schreber a nossos dias, na UNISINOS. O evento é promovido pelo IHU. Melman também proferirá a conferência de abertura do Simpósio Internacional A autonomia do sujeito. Uma sociedade de indivíduos?, na próxima segunda-feira.
Jean-Pierre Lebrun atendeu à IHU On-Line no hotel Sheraton, em Porto Alegre, onde esteve participando do evento Fronteiras do Pensamento (2). Durante o evento, Jean-Pierre abordou questões como as angústias e os dilemas do homem contemporâneo diante das novidades pós-modernas e das sensações que ele possui diante de um mundo sem limites. Na última terça, Lebrun participou de uma conferência na Unisinos, na qual discutiu "As novas cores do Édipo: o mal estar na subjetivação". Nesta entrevista, Lebrun fala das novas patologias provocadas pelos novos modos de subjetivação, das conseqüências do Second Life e, ainda, faz uma comparação entre o homem analisado por Freud e o homem desenhado por ele e Melman.
Jean-Pierre Lebrun nasceu na Bélgica, onde formou-se em medicina psiquiátrica. Atualmente, é membro da Associação freudiana da Bélgica, que reúne os membros daquele país com os da Associação freudiana, criada por Charles Melman na França. Também é membro da Associação lacaniana internacional. É autor de "Um mundo sem limites" e de uma entrevista em parceria com Charles Melman, intitulada "O homem sem gravidade", ambos os livros publicados pela Companhia de Freud.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Podemos falar de "novas psicopatologias" dentro dos novos modos de subjetivação?
Jean-Pierre Lebrun – Sim. Eu creio que podemos falar de novas patologias porque o discurso social atual não favorece a subjetivação. No fundo, a subjetivação é a reapropriação pelo sujeito da condição humana. Atualmente, no conjunto do que é proposto no discurso social, temos a impressão de que seria possível não ter de passar pelos constrangimentos da condição humana, o que de imediato suscita dificuldades particulares. Isso porque, por exemplo, os jovens tornam-se adultos de uma forma muito precoce e forçada. Assim, esses jovens adultos crescem, mas continuam como crianças, com atitudes e desejos típicos delas, o que cria uma série de dificuldades.
Então, uma forma atual de nova patologia é uma espécie de fuga à subjetivação. Não há forma de passar por um processo que envolve o subjetivo sem sofrer. Precisamos entender que esse é um sofrimento formador. Não há forma de avançar sem escolher, mas o problema está justamente em escolher, porque significa renunciar àquilo que se deixou de para trás, no caminho não seguido. Alguns sujeitos preferem ficar alheios a tudo isso. Isso é o que, de certa forma, se dá quando nos convidam para um discurso consumista. Eis aí a dificuldade de conviver e compreender a subjetivação.
IHU On-Line - Freud criou o complexo de Édipo (3) como representação da fase do crescimento de qualquer ser humano, com o desejo de se desenvolver, sexualmente, com o genitor do sexo oposto. Isso também representaria o sentimento de rivalidade em relação ao genitor do mesmo sexo. A análise sobre esse mito, no mundo contemporâneo, guarda ainda relação com essa interpretação psicológica?
Jean-Pierre Lebrun – Sim, eu afirmo na palestra “As cores do Édipo contemporâneo: O mal estar na subjetivação” que o Édipo continua sendo um personagem contemporâneo. O Édipo para crescer, como você disse, precisa sempre se separar do primeiro objeto, que é a mãe. Para isso, somos ajudados pelo fato de que outro alguém ocupa esse lugar para a mãe, e esse outro alguém é a figura do pai. Então, esse pai ajuda a criança a se distanciar, a se separar da mãe. Esse é o Édipo.
O Édipo freudiano é atribuído, com bastante importância, ao pai, porque no patriarcado esse pai tem uma legitimidade. Esse pai tira a sua autoridade do patriarcado. O Édipo freudiano, entretanto, não é de todo atual porque o patriarcado caiu.
No Édipo, de acordo com Lacan, não é o pai que separa a criança da mãe. É a linguagem a responsável por essa separação obrigatória. É para poder falar que nós devemos, finalmente, renunciar ao fato de estar junto desse objeto primeiro, que é a mãe. Esta representa justamente aquilo do qual precisamos nos distanciar ou abandonar. Isso revela uma dimensão universal à interdição do incesto sempre em vigor. Esse Édipo, portanto, é sempre atual.
IHU On-Line - Em que medida a teoria da subjetivação e sexuação inconsciente, determinada pela constelação representacional fálico-edípica, pode ser considerada como um postulado universal?
Jean-Pierre Lebrun – Isso se une ao que eu respondi a respeito da permanência da proibição do incesto. Porque entrar no fálico, para Lacan, é entrar na linguagem, ou seja, ambos representam o mesmo sentido e movimento. Por isso, a entrada na linguagem supõe a separação com o objeto primordial, e isso para os dois sexos. Logo de princípio, da mesma maneira, sabe-se que menino e menina têm trajetos diferentes. Mas, num primeiro momento, tanto o menino como a menina precisam renunciar a ser o objeto de amor da mãe e renunciar à mãe como objeto. Isso deve acontecer nos dois sentidos.
IHU On-Line - O masculino e o feminino freudianos e suas versões neuróticas continuam a ser moldados pelo Édipo clássico?
Jean-Pierre Lebrun – Sim e não. Sim porque os sujeitos têm sempre relações com as mesmas questões. E não porque não há mais papel social que venha dizer o que deve corresponder homem e mulher, originando uma dificuldade suplementar para ambos. A mulher tinha o hábito de se regular por aquilo que seu homem esperava dela. Essa era, em parte, a sua tarefa. Já o homem se sustentava sobre a idéia genérica do que era ser homem para se dirigir a uma mulher. A mesma atitude ele tomava também para escolher e se aproximar daquela que desejava. Atualmente, não existe mais o homem, pelo menos não aquele homem descrito anteriormente. Conseqüentemente, cada homem procura a maneira de se desvencilhar deste problema. É uma dificuldade para ele, mas também é um grande problema para a mulher, pois, de repente, ela já não sabe mais o que um homem espera dela.
IHU On-Line – Como o senhor diferencia o homem analisado por Freud no século XX e o homem desenhado pelo senhor e por Charles Melman?
Jean-Pierre Lebrun – Com certeza, esses dois homens são comparáveis. O homem de Freud era um neurótico, alguém que não sabia como orientar seu desejo. O homem de Freud era aquele que vinha dizer ao analista: “Eu tenho uma mulher e uma amante e não sei qual escolher”; “Eu não sei qual profissão seguir”; e “Eu não sou bem sucedido na profissão que escolhi seguir”.
Já o discurso atual que o homem contemporâneo passa ao seu analista é diferente do discurso do homem analisado por Freud. Claro que há ainda neuróticos. Há ainda aqueles que vêm dizer isso, mas o sujeito dessa nova economia psíquica vem dizer algo diferente. Esse novo sujeito diz: “Eu não sei mais o que é desejar”. O homem contemporâneo sabe o que é consumir. e está numa relação na qual parece ter sido engolido pelo consumo e pelo gozo, não constituindo essa separação que lhe permite sustentar um desejo. Então, não é mais um simples neurótico.
Por conseqüência, surgem novas questões: “O que esse homem é realmente?”, ou “Será que ele é neurótico?”. Não simplesmente. “Será que ele é perverso?”. Realmente, também não, porque ele não é constituído como o verdadeiro perverso. Ele está mais se protegendo da subjetivação, da qual tem medo, e vive sem pagar o preço dela. Ele se arranja, se protege, se mexe, se vira, mas não se engaja verdadeiramente. E o fato é de que esse homem contemporâneo não sabe que não se engaja verdadeiramente. Não é, de todo modo, portanto, o mesmo sujeito neurótico analisado por Freud.
IHU On-Line - O Second Life é uma conseqüência dos avanços tecnológicos e que conduzem o sujeito a uma ilusão de mundo sem limites. Como analisar e conviver com esse “Second Life” de cada sujeito?
Jean-Pierre Lebrun – Eu me dou conta do que você quer dizer ao se referir a essa segunda vida. A dificuldade está em quando esse sujeito acredita demais nessa segunda vida, iludindo-se com o fato de que ela é a verdadeira. Esse homem não se coloca frente ao trabalho de se confrontar com a alteridade do outro. Ele continua essa segunda vida. Quando esse homem fala com outro pela internet, ele acredita que fala com outro, mas verdadeiramente não é o outro. Eis aí o que verdadeiramente permite evitar a subjetivação de não pagar o preço que se paga na relação com o outro. É exatamente isso que eu chamo de viver "em companhia sem o outro", porque esse outro não existe: foi inventado. Eu sei que existe um outro, mas não há lugar na minha própria cabeça em que ele possa se fazer reconhecer como outrem para mim. Se fosse diferente disso eu seria um psicótico. É exatamente isso que descreve a nova economia psíquica.
Notas:
(1) Charles Melman – Psicanalista francês, aluno de Lacan e um dos principais dirigentes da Escola Freudiana de Paris, fundou a Association Lacanienne Internationale (1982). É membro-fundador da Fondation Européene pour la Psychanalyse. Tem inúmeras publicações na França, traduzidas em vários países, inclusive no Brasil. Charles Melman participou ativamente da École Freudianne de Paris, da qual foi diretor de ensino e A.M.E. (Analista Membro da Escola). Seu trabalho é referência em diversos países, sendo considerado um dos nomes mais importantes da psicanálise lacaniana nos dias de hoje.
(2) Fronteiras do Pensamento – evento para a comunidade que conta com a presença de personalidades exponenciais do pensamento atual no mundo. Os conferencistas participantes do curso de altos estudos fazem alusão aos desafios e aos fenômenos existentes no início do século XX.
(3) Complexo de Édipo - Segundo Sigmund Freud o Complexo de Édipo verifica-se quando um rapaz atinge o período sexual fálico na segunda infância e dá-se então conta da diferença de sexos, tendendo a fixar a sua atenção libidinosa nas pessoas do sexo oposto no ambiente familiar. Freud baseou-se na tragédia de Sófocles,"Édipo-Rei", chamando Complexo de Édipo à preferência velada do filho pela mãe, acompanhada de uma aversão clara pelo pai. O complexo de Édipo é uma referência à ameaça de castração ocasionada pela destruição da organização genital fálica da criança, radicada na psicodinâmica libinal, que tem como pano de fundo as experiências libidinais que se iniciam na retirada do seio materno.
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"O homem contemporâneo não sabe o que é desejar, só sabe o que é consumir". Entrevista especial com Jean-Pierre Lebrun - Instituto Humanitas Unisinos - IHU